É preciso trabalhar em rede para não deixar a democracia ruir

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15 Novembro 2018

Para a presidente da Fundação Rosa Luxemburgo e cientista social Dagmar Enkelmann, é essencial a união entre setores da esquerda e do centro, mesmo com divergências, para enfrentar a onda reacionária que se levanta no mundo

A reportagem é de Andrea DiP, publicada por Agência Pública, 14-11-18.

A onda conservadora que cresce em vários países do mundo também tem se manifestado na Alemanha. A AfD (Alternativa para a Alemanha), partido populista de extrema-direita, se tornou o terceiro maior partido no Parlamento alemão (Bundenstag) nestas últimas eleições. Algo inédito desde a Segunda Guerra Mundial e que tem sido visto por alguns historiadores como um “corte histórico” . O partido ganhou força em 2015 (em 2013 não chegou a 5% do parlamento) principalmente por se colocar como oposição ferrenha às políticas de imigração da chanceler Ângela Merkel (CDU), através de um discurso nacionalista, beligerante, anti-imigração e anti-islâmico.

Em entrevista à Pública, a presidente da Fundação Rosa Luxemburgo Dagmar Enkelmann, formada em ciências sociais pela Karl-Marx-Universität Leipzig, com doutorado em história e passagens pelo parlamento como deputada federal e estadual pelo Partido Social Democrático – que em 2009 se fundiu com o WASG no atual partido A Esquerda (Die Linke) – disse sobre esse momento: “Uma parte grande dos eleitores [da AfD] parece precisar de respostas simplistas para questões complexas”. Também falou sobre o movimento de refugiados na Europa e pregou a união por parte de setores da esquerda para garantir que a democracia se mantenha forte: “A direita existe em rede, mas não existe uma esquerda em rede. Tudo que está acontecendo e se estabelecendo pode destruir as estruturas democráticas, e nós precisamos agir juntos, não só a esquerda, mas também o centro, para não deixar ruir”.

A presidente da Fundação Rosa Luxemburgo Dagmar Enkelmann (Foto: José Cícero da Silva/Agência Pública)

Eis a entrevista.

A senhora tem uma longa trajetória política. Como vê esse crescimento do conservadorismo e da extrema direita na Europa e no mundo? Estamos diante de algo novo?

É novo e antigo ao mesmo tempo porque nós sempre tivemos movimentos de extrema direita – às vezes mais, às vezes menos – nos diferentes países e em diferentes conjunturas. Novo é o fato de isso estar acontecendo no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, na Europa, nos países africanos e aqui na América Latina nós vemos a mesma coisa. Então nós temos esse movimento mundial que cresceu consideravelmente e são forças que parecem estar bem estáveis no poder. Isso é algo que a gente observa com grande preocupação e nos obriga, a todas e todos que acreditamos na democracia, que estamos nos partidos, nos parlamentos, nos governos, a pensar profundamente nas causas desse fenômeno. Na Alemanha, nós por muito tempo dissemos “ah tudo bem, eles vão desaparecer em algum momento”. Isso não aconteceu e o Trump também parece bem estável em seu mandato, então temos mesmo que refletir sobre o que está causando tudo isso. Uma parte grande desses eleitores parece precisar de respostas simplistas para questões complexas, e isso tem a ver com o fato de o mundo estar mais complexo e muitas perguntas não poderem mais ser respondidas facilmente, ou mesmo em âmbito nacional. Para muitas questões nós só teremos as respostas se olharmos através das nossas fronteiras. O mundo está mais próximo, isso é um fato, e nós não podemos simplesmente dizer que não existe mais globalização. A questão é entender como se desenham os conflitos sociais, políticos e econômicos para que eles sejam evitados. E precisamos trabalhar conjuntamente para fortalecer nossas estruturas democráticas. Porque onde não se tem mais essa estabilidade, onde se perdeu a crença nas instituições, as pessoas tendem a seguir aqueles com as respostas mais simplistas e a votar nessas pessoas, nesses populistas.

E imagino que a questão dos refugiados apareça nesses discursos…

Bem, na Alemanha “os culpados são os refugiados” – essa é a resposta simples. Em vez de dizermos “nosso sistema econômico nos países industrializados aqui no Norte contribui para essa situação de monocultura nos países em desenvolvimento, nós criamos essa dependência aos países industrializados, nós temos uma política de desenvolvimento que não propicia a construção de estruturas autônomas, não fortalece as economias locais dos países”. Temos que contextualizar isso. E, como os países industrializados contribuíram para as exportações de armas, essas armas estão sendo utilizadas. Esse contexto tem que ficar claro, e os populistas da direita não fazem isso.

Poderia explicar um pouco para o leitor brasileiro o que está acontecendo na Alemanha? A ascensão da AfD, que é um partido de extrema direita, pela primeira vez desde a Segunda Guerra?

A AfD se criou no âmbito da crise financeira, em 2007-2008. O partido foi constituído como reação ao fato de que não havia uma resposta europeia a essa crise financeira. Cada país teve sua própria reação. A crise financeira que a bolha imobiliária dos Estados Unidos gerou chegou à Europa e, portanto, à Alemanha. Na Alemanha houve um grande programa de investimentos e financiamentos, e por isso os efeitos foram minimizados, mas no entorno a crise gerou quebras nos sistemas financeiros, desemprego. Estruturas econômicas quebraram. A Alemanha resolveu essa questão mais ou menos, mas existia o medo de que isso pudesse acontecer e esse pensamento separatista apareceu, de soluções nacionalistas. E depois veio um segundo conflito, também partindo da crise econômica internacional e dos conflitos no Afeganistão, na África, no Sudão. Isso tudo aumentou o movimento de refugiados no mundo inteiro. E uma pequena parte desses refugiados chegou à Europa.

Hoje mais de 60 milhões de pessoas estão fugindo, e a maioria dentro dos próprios países, apenas uma pequena parte chegou à Europa. Mas esse medo de mudanças na sociedade cresceu na Alemanha e essas forças populistas de direita disseram “eles vão mudar nossa sociedade, nossa religião, impor o islamismo, nós não conhecemos essas pessoas”. Espalhou-se o medo da criminalidade. Uma coisa é certa: a política oficial estava pouco preparada para esse movimento. Esse movimento de refugiados existe desde os anos 1980, 1990, existe há muito tempo e em algum momento eles chegariam à Europa. Era previsível! Mas o governo não estava preparado. O que isso significa? Quando pessoas vêm de outros países, de outras culturas, precisamos pensar em moradia, criar condições para favorecer a integração, empregos, cursos de idiomas. Precisamos não criar um gueto para guardar essas pessoas, mas sim integrá-las à sociedade.

A Alemanha tem experiência nisso, porque teve imigração de italianos, turcos – cuja integração, hoje nós sabemos, foi realizada muito parcialmente. Existem regiões onde temos uma maioria de pessoas migrantes e até crianças que nasceram na Alemanha e dizem não se sentir alemãs. O problema é que acabam não sendo parte de uma sociedade italiana ou turca também! E em 2015 nós tivemos uma grande quantidade de pessoas de países com guerras civis ou com graves problemas econômicos. Elas chegaram à Alemanha e foram levadas para alojamentos provisórios, e a integração foi pouco realizada pelo governo. Existia uma cultura de boas-vindas por parte de organizações civis e pessoas que queriam ajudar, receber.

Essas organizações foram fundamentais, mas estavam sozinhas, sem apoio do governo, e você não consegue resolver tudo no voluntariado. Há momentos em que você precisa de financiamento. E esse medo, que naquela época se fortaleceu com os efeitos dessa globalização e desse forte movimento de migração no mundo, foi utilizado e manobrado pelos populistas. Eles semearam preconceitos contra pessoas de pele mais escura, discriminação, criminalização. Se você pergunta para esses eleitores “você já sofreu alguma violência por parte dessas pessoas?”, vão responder “não, mas eu já ouvi ou li, alguém contou”. Não existem números reais, não existem dados, por exemplo, de aumento da criminalidade. Os problemas sociais que eles atribuem aos refugiados já existiam, como, por exemplo, os problemas de moradia, das aposentadorias muito baixas ou mães solteiras em situação de pobreza. São problemas que aumentaram com a chegada dos refugiados, então essas pessoas dizem “eu não encontro apartamento, mas esse refugiado tem onde morar”. São respostas simplistas para questões complexas.

No Brasil, nós não temos as pautas da extrema direita tão relacionadas à xenofobia ainda, no entanto as respostas simplistas, os preconceitos, a criminalização e a linha de raciocínio me parecem muito similares. A forma de atuação da extrema direita e a forma como essas pessoas compram os discursos pelo medo, pela desinformação, a coisa de apontar um “grande outro” inimigo. Agora no Brasil nós estamos fazendo também uma reflexão sobre o período de transição e abertura democrática pós-ditadura militar que talvez não tenha sido muito bem-feita, de uma justiça de transição, de construção de memória consistente sobre a ditadura militar. A Alemanha parece que fez um trabalho melhor pós-Segunda Guerra, de memória, de justiça de transição. Ou não? Ainda assim você acha que partidos como a AfD são ameaças reais?

Sobre lidar e aprender com a história na Alemanha, tenho um ponto de vista crítico. Sabemos que rapidamente voltaram ao governo pessoas que tiveram responsabilidade no período nazista. Essa conclusão foi feita muito rapidamente. O que causou o nazismo na Alemanha? Muito pouco se fez para proteger e ampliar essa democracia. E fazer muito pouco se refere principalmente a criar alianças contra todas as tentativas de minar a democracia. Eu não gosto muito de comparar esse período de hoje com o período nazista e não quero comparar o final da República de Weimar com a AfD. A AfD não é o Partido Nazista. Existem pessoas ali que têm uma postura abertamente mais radical. Existem alguns elementos, é de extrema direita, mas acho que é um partido mais populista. Mas é claro que os limites são um pouco tênues. São perigosos, sim, porque questionam a democracia, e neste momento, no meu ponto de vista, se faz muito pouco para estabilizar a democracia. Nós temos uma erosão desses partidos mais à esquerda, perderam muito, e esse é um processo que ocorre há algum tempo.

Hoje nós ainda temos essa grande coalizão, no nosso governo, do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD) com a União Democrata Cristã (CDU) [partido da chanceler alemã Angela Merkel], mas, segundo as pesquisas de intenção de votos, hoje isso não seria mais suficiente. As pesquisas mostram que haveria a necessidade da criação de um terceiro partido independente; no mínimo, três partidos seriam necessários para formar um governo. E isso lembra também o final da República de Weimar [que durou até o início do regime nazista], em que também havia um sistema de vários partidos e mudanças constantes. E no final da República de Weimar existia um Partido Comunista forte, a esquerda era forte também. Mas os comunistas evitaram uma aliança democrática com as forças burguesas. São muitas lições que talvez não tenhamos aprendido.

Você vê isso de fato como uma onda única? Com conexões entre os países?

Eu acho que existe essa conexão, isso é muito claro. Existem essas redes de direita. Na Europa nós vemos isso muito claramente. Eles têm concordância, são coesos. Existem declarações sobre uma direita internacional dizendo que o conteúdo é coordenado. Essa direita organizada existe sim.

Que atitudes os partidos de esquerda, os movimentos sociais e as pessoas que não concordam com os governos autoritários devem tomar diante dessa onda que se levanta no mundo, na sua opinião?

Acho que nós precisamos conversar, debater. E acho que é fundamental uma educação política, falar sobre a história, sobre nossa conjuntura, nos conectar com as bases e explicar essas coisas não de forma a fazer discursos acadêmicos, mas uma conversa que chegue aos trabalhadores, às pessoas do campo, aos comerciantes. Nós precisamos acessar as pessoas. Isso é muito importante. Acho que a direita existe em rede, mas não existe uma esquerda em rede. Temos que ver o que temos em conjunto, o que nos une, lutar juntos contra essa extrema direita com seus preconceitos, com seu racismo, com sua xenofobia, com seu antifeminismo. Tudo que está acontecendo e se estabelecendo pode destruir as estruturas democráticas, e nós precisamos agir juntos, não só a esquerda, mas também o centro, para não deixar ruir. Um movimento de defesa da democracia.

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