Chile. A defesa que Francisco faz de Barros pode não contentar as vítimas, mas é o correto a fazer

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24 Janeiro 2018

A defesa do Papa Francisco do bispo Juan Barros no voo que partiu de Lima não é suficiente para contentar as vítimas de lá e seus apoiadores de outras regiões, mas é totalmente consistente com tudo o que já disse e fez até agora.

A reportagem é de Austen Ivereigh, jornalista, foi editor da revista britânica The Tablet e diretor de Assuntos Públicos do ex-arcebispo de Westminster, o cardeal Cormac Murphy-O'Connor, fundador e coordenador do Catholic Voices, publicada por Crux, 22-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.

Mas isso levanta outra questão: se sua postura - nomeando e mantendo o cargo de um bispo acusado do encobrimento de abusos - é consistente com uma política destinada a evitar abusos e lidar adequadamente com falhas para agir contra criminosos.

Embora estivesse repleto de muitos momentos e discursos importantes, a maior notícia na mídia nacional e internacional da visita de Francisco ao Chile, de 15 a 18 de janeiro, estava ligada justamente a estas mensagens aparentemente contraditórias sobre abuso sexual clerical.

A visita não apenas não resolveu a contradição como pareceu piorá-la no último dia, após Francisco ter classificado as acusações de encobrimento contra um bispo chileno como uma "calúnia", desencadeando uma reação furiosa de grupos de vítimas.

Esta dupla "mensagem sobre abuso" foi um foco inevitável das cerca de 12 entrevistas que fiz para TV, rádio e jornal em Santiago, com a questão evoluindo pela visita de três dias do Papa.

Antes de ele chegar, a pergunta era: por que Francisco, o Papa reformador que se comprometeu a reprimir casos de abuso sexual clerical e lidar com seu encobrimento pelos bispos, nomeou Barros para liderar a Diocese de Osorno, em março de 2015, depois que ele tinha sido acusado - juntamente com dois outros bispos - de testemunhar e encobrir o abuso do notório criminoso padre Fernando Karadima?

Enquanto estava no Chile, a pergunta era: como eu explicava o fato de Francisco ter emitido um sincero pedido de desculpas pelas falhas da Igreja em relação às vítimas de abuso numa reunião privada, enquanto, por outro lado, permitia que Barros aparecesse na missa do parque O’Higgins e também na catedral na terça-feira, em que Francisco o abraçou junto com os outros bispos?

Depois, no último dia de Francisco, na quinta-feira, e no dia seguinte, depois de ter chegado ao Peru, tornou-se uma pergunta exasperada: Francisco havia denegrido todo o seu esforço nessa área ao dizer a jornalistas que as acusações contra Barros eram, essencialmente, mentiras?

Muitos católicos no Chile reclamaram que o foco em Barros e nas observações incendiárias do Papa só fizeram com que as mensagens papais mais amplas fossem eclipsadas por esta questão - que, na mídia, em grande parte foram. Se a estratégia era o pedido de desculpas pelos casos de abuso do Papa, no Palácio de La Moneda, na terça de manhã, limpasse o ambiente, em outras palavras, a presença de Barros e o fato de Francisco tê-lo defendido basicamente garantiram que não daria certo.

Mas esta narrativa baseia-se na suposição de que o Papa só poderia ser credível no seu pedido de desculpas e seu encontro com as vítimas omitindo Barros. Essa suposição, por sua vez, baseia-se em outra, geralmente não declarada, de que Barros é culpado de um encobrimento.

A premissa é não declarada porque é presumido, e é presumido porque as acusações foram feitas por três vítimas de Karadima cujas acusações sobre o agressor foram sustentadas em tribunal.

A vitimização não apenas suscita simpatia, mas também dá credibilidade e confere autoridade moral. Portanto, apesar do fato de que os bispos negam consistente e firmemente que tenham testemunhado o abuso de Karadima (e, no caso de Barros, de que recebeu uma carta detalhando esse abuso quando era secretário do cardeal Juan Francisco Fresno, de Santiago) e apesar de não haver até agora nenhuma evidência verificada em qualquer processo civil ou canônico de que os bispos estão mentindo, as acusações contra eles pegaram na mídia.É uma suposição tão grande que qualquer um que tenha familiaridade com os textos sobre o mecanismo do bode expiatório, de René Girard, ouve alguns alarmes soando.

Em Santiago, vi esse mecanismo em pleno funcionamento. A discussão centrou-se em Barros, quase sem qualquer menção aos outros bispos também acusados de testemunhar a abusos de Karadima. Não apenas a culpa de Barros foi presumida, mas ninguém levantou questões sobre o caso contra ele.

Nem foram feitas perguntas sobre a reivindicação legal, até agora sem sucesso, de $450.000, das vítimas contra a Arquidiocese de Santiago, que surgiu em parte porque Karadima não podia ser processado ou julgado por causa do estatuto de limitações. A frustração (compreensível) das vítimas tem se dirigido à arquidiocese.

O caso depende da demonstração de que aqueles que estavam em posição de autoridade sabiam sobre o abuso sofridos e não agiram. A necessidade de estabelecer a narrativa como verdade pode ser por que, embora dezenas de pessoas estivessem ao redor de Karadima, as vítimas fizeram acusações de encobrimento apenas contra os que depois se tornaram bispos.

Há muitas outras perguntas a serem feitas sobre o caso das vítimas, mas poucos se atrevem a fazê-las por medo de serem acusados de "revitimizá-las". Comentaristas preferem dizer "tendem a acreditar nas vítimas" ou que qualquer coisa que Barros diga não importa porque ele é um "símbolo" da cultura que permitiu que Karadima cometesse abusos (que é a principal linha de discurso das três vítimas de Karadima).

Francisco também tem visto este mecanismo do bode expiatório em funcionamento nos principais bispos chilenos que imploraram para que ele não nomeasse Barros para Osorno por medo de que sua sujeira se associasse à Igreja.

Mas o Papa disse no avião, retornando a Roma, que ele avaliou as provas e julga que são inconsistentes e incoerentes.

"Não há provas de sua culpa e parece que não haverá. As [provas] coerentes apontam para a direção contrária [ou seja, inocência]", disse ele a repórteres.

Ele acha que Barros foi condenado pelo que simboliza, não pelo que fez, e que os dois se confundiram na narrativa das vítimas.

Seu objetivo no Chile não era uma estratégia de comunicação concebida para satisfazer a fome pública por sacrifício, mas para forçar a Igreja a lidar com a verdadeira causa da crise de Karadima: o clericalismo e o apego ao poder. Ao mesmo tempo, ele se recusou a aceitar o sacrifício do que vê como um homem inocente.

Longe de ser contraditório, Francisco está agindo em nome de uma preocupação do Evangelho que é consistente com a vítima. A mesma lógica que exige que a Igreja denuncie abusos (sexuais e de todos os outros tipos) sempre que os presenciar, confronte tentativas de encobrimento sem medo e esteja ao lado da vítima com firmeza, também exige a defesa dos inocentes contra a fúria da multidão do bode expiatório.

Claro, nunca é fácil de estabelecer definitivamente a "inocência", mas um compromisso a ela exige tomar cuidado para tirar conclusões razoáveis sobre a veracidade das acusações em que não há nenhuma evidência para apoiá-las. No caso de uma acusação de abuso sexual - que não é o que Barros e os outros bispos são acusados - a suposição deve, naturalmente, ser a favor da vítima, como insistem as diretrizes da Igreja.

Mesmo no caso de alegações de "encobrimento", seria errado presumir que "se não conseguir provar suas acusações, ninguém vai acreditar em você", como o cardeal Sean O'Malley deixou claro em resposta às observações do Papa. E Francisco, a bordo do avião, reiterou esse ponto, desculpando-se pelo uso da palavra 'calúnia'.

Mas também seria errado assumir a culpa do acusado quando a evidência não a demonstra. Ele deixou isso claro também.

Isso significa que, inevitavelmente, às vezes estará em desacordo com as vítimas e seus representantes, assim como esteve com os sobreviventes de sua própria comissão antiabuso.

Esta posição não se fecha para a aprendizagem e a reforma. Ainda há um longo caminho para a Igreja - e para o Vaticano deste pontificado - até que se torne uma instituição modelo em respostas a casos de abuso. Mas isso deixa claro que não estará sempre buscando atalhos para processos judiciais para satisfazer as demandas das vítimas.

Não há nenhuma inconsistência. Ele está agindo para defender um princípio claro do Evangelho, que subjaz a assunção ocidental da inocência em nosso sistema judicial - precisamente para evitar as injustiças que podem advir do mecanismo do bode expiatório.

Não é uma abordagem que lhe renderá aplausos. Mas é, sem dúvida, a única política que um papa pode ter.

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