Doutor Algoritmo será o Frankenstein do século XXI?

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Por: João Vitor Santos | 02 Setembro 2017

Quem nunca sentiu uma dorzinha acompanhada de outros sintomas e correu para internet? Com duas ou três informações sobre o que se está sentindo e não mais do que três minutos é possível descobrir uma infinidade de doenças associadas a tais sintomas. Basta uma rápida consulta ao “Dr. Google”. O mais famoso site de buscas do mundo tem se tornado também uma espécie de médico particular, muitas vezes sendo consultado ainda antes de se procurar um profissional da saúde. Daí o apelido que faz analogia da ferramenta de buscas a um médico. O que pouca gente se dá conta é que essa é também uma das aplicações da chamada Inteligência Artificial no campo da saúde. E essa é apenas uma das aplicações, talvez a mais singela.

O professor Dante Barone, do Instituto de Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, integrante do grupo de pesquisa Robótica Inteligente e Visão Artificial, explica que a base para aplicação da tecnologia no campo da saúde é a lógica algorítmica, a mesma do sistema de buscas da internet. “Com uma base de dados, aplica-se o conceito de sistemas de learning machine [máquinas que aprendem] e se estabelecem conexões em redes de informação. Por isso, pode-se desenvolver sistemas que com algumas informações podem sugerir diagnósticos e tratamentos com mais precisão”, explica.

Segundo o professor, podemos pensar analogicamente com outros aplicativos como Facebook, Waze e mesmo as ferramentas de busca do site da Amazon. Com base nas informações que fornecemos através das escolhas que tomamos dentro desses ambientes se vai criando uma espécie de perfil. “Isso faz com que, quando você acessa um outro serviço, como Netflix, por exemplo, lhe sejam oferecidas opções de filmes que muito provavelmente vão lhe agradar”, destaca Barone, ao explicar que esses sistemas estabelecem conexões entre si, assim “aprendendo” as preferências dos usuários.

 

Barone acredita na IA aplicada à saúde, mas defende atenção para os seus usos 

(Foto: João Vitor Santos/IHU)

Assim, a partir dessa mesma lógica, o conceito de Doutor Algoritmo vai se estabelecendo como uma aplicação dessas tecnologias no campo da saúde. “Na medicina, por exemplo, usam-se os cálculos relacionados à predicação de riscos”, aponta o professor. São, por exemplo, as chamadas análises automáticas de diagnósticos. “Veja o campo da radiologia. Com uma base de dados que compara as imagens e cruza com outras informações, o sistema pode indicar a probabilidade de aparecimento de um câncer. Além disso, há uma infinidade de aplicações por empresas na automação hospitalar”, exemplifica Barone.

O professor ainda destaca que além de aplicação clínica e de cuidados dos pacientes, o Dr. Algoritmo também pode trabalhar para o campo da educação. “A computação gráfica pode construir órgãos que vão passar por cirurgias, demonstrando esses procedimentos para alunos”, aponta Dante Barone, lembrando ainda as possibilidades de ensino a distância. O professor foi o conferencista do IHU Ideias da última quinta-feira, dia 31-8, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos. Na palestra Algoritmos e inteligência artificial nos diagnósticos de saúde e na educação, ele trouxe uma análise dos efeitos da chamada Quarta Revolução Industrial nesse campo da saúde e educação, bem como os dilemas éticos e os riscos envolvidos.

 

 

Inteligência artificial a serviço da saúde

Dante Barone reconhece que o conceito de Inteligência Artificial não é novo. “Os pais da computação já pensavam na Inteligência Artificial”. Mas o conceito vai se desenvolvendo, até que em 1956 Alan Turing (1912-1954), um dos primeiros a formular o conceito de algoritmo, se questiona se as máquinas poderiam pensar. “E esse é o grande enigma que nos persegue até hoje”, aponta o professor Barone. Segundo ele, as máquinas que aprendem não simplesmente jogam com dados a partir da lógica matemática algorítmica, mas são capazes de estabelecer conexões entre si e constituir novos dados entre si. “São conexões muito similares às conexões neurais que nós estabelecemos, mas, em alguns casos, isso ocorre com muito mais precisão. Veja os sistemas de identificação de escrita, muitas vezes nem nós conseguimos compreender uma letra, o que foi escrito, e os sistemas fazem isso com muito mais precisão”, completa.

 

No campo da saúde, o professor defende a aplicação da Inteligência Artificial no auxílio a médicos e outros profissionais. “Pense numa conexão com dados públicos, como dados epidemiológicos. O meu médico vai poder saber como pessoas do mundo inteiro que tiveram a mesma doença que eu reagiram a determinado tratamento. Assim, poderá escolher e avaliar como deve ser o mais eficaz tratamento para o meu caso”. Hoje, além do doméstico Dr. Google, os profissionais já contam com uma infinidade de aplicativos que podem dar essas pistas.

Mas o que Barone destaca é a capacidade de troca de informações entre esses sistemas. “São também sistemas de comunicação e informação. O próprio paciente, com uso de equipamento como pulseiras que medem a pressão, e mesmo a partir das pesquisas que fez em casa, pode ajudar o seu médico a chegar num diagnóstico mais preciso. E essas informações podem servir para outro caso”, detalha.

 

A robótica também tem invadido os hospitais. Não é mais nenhum absurdo vermos cirurgias em que médicos realizam procedimento em pacientes mediado por máquinas. No que diz respeito a cuidados ao paciente, as máquinas também estão presentes em muitos casos. São dispositivos que preparam a dose exata do medicamento que o doente precisa com base nos dados inseridos no sistema do hospital, por exemplo. Além disso, há outros tantos dispositivos que podem auxiliar a equipe de enfermagem no monitoramento de pessoas enfermas. “Claro, só não podemos pensar que a tecnologia vai resolver todos os problemas. Há sempre a necessidade de uma relação humana. Os sistemas devem ser auxiliares. Um exemplo disso são os aplicativos de trânsito que já levaram muitas pessoas a enrascadas”, pondera o professor.

 

Ainda assim, ele acredita que a Inteligência Artificial pode ser um elemento muito interessante para a qualificação da saúde. “É a capacidade de termos diagnósticos e tratamentos muito mais eficazes. Outra questão são os atendimentos do sistema público. É sabido que pessoas esperam um ano por consultas especializadas. A tecnologia poderia vir para auxiliar a reduzir esse tempo de espera”, analisa. Uma dessas possibilidades a que Barone se refere é o atendimento a distância. Para isso, lembra de um caso em que uma fonoaudióloga atende um paciente fora do país e o ajuda em exercícios de dicção através de uma ferramenta acessível a muitas pessoas, o Skype. Além disso, traz o exemplo de uma pesquisa, desenvolvida pela Universidade Federal de Santa Maria, em que pacientes com diabetes têm a possibilidade de um diagnóstico mais precoce. “A partir de uma base de dados de uma comunidade indígena americana, onde há muito incidência da doença, o médico aqui insere uma série de informações e a partir daí o sistema mostra a probabilidade de o paciente desenvolver a doença, além de também poder indicar o melhor tratamento”, conta.

 

O médico e o monstro: alguns dilemas éticos

Entretanto, em meio a tantas possibilidades de aplicação da Inteligência Artificial na saúde, é inevitável que se questione: mas e os riscos? Não temos a chance de reeditar a história de Victor Frankenstein, da escritora inglesa Mary Shelley? No romance de 1831, considerada a primeira trama de ficção científica, Victor, extasiado por inúmeros experimentos, cria um monstro que foge do controle. No caso da Inteligência Artificial aplicada à saúde, Dante Barone argumenta que sempre é usada como forma auxiliar, precisando da interação humana. Na própria pesquisa sobre diabetes, há uma margem de erro. “Sempre terá uma pessoa para calibrar esses dados e também aferir os resultados. No caso das inúmeras opções de medicamentos indicados, o médico ainda avaliará com o paciente qual o remédio mais em conta”, pondera.

Mas Barone reconhece que é um terreno que suscita riscos e, por isso, requer reflexões éticas. “É um campo multidisciplinar e usa muitas áreas para se desenvolver. Por isso é importante a associação com a área de humanas para discutir essas implicações”, destaca. “Nessa relação da Inteligência Artificial ainda esbarramos em questões de sigilo e privacidade”, aponta. Embora não se tenha discutido na conferência com mais vagar a possibilidade do Dr. Algoritmo se tornar um monstro descontrolado, Barone reconhece que há ainda outros problemas éticos que não necessariamente passam pela dominação do ser humano por máquinas. “Sobre profissionais da área da saúde que podem perder o emprego? Bem, mesmo sendo usado como apoio a profissionais, não se exclui a ideia de que a tecnologia elimine alguns profissionais”, problematiza.

 

Já são realidade consultas médicas a distância mediadas pela tecnologia. “Até mesmo cirurgias são realizadas. Uma equipe num grotão qualquer tem condições de iniciar um procedimento com o apoio de equipes extremamente especializadas que estão em outros lugares conectados”, completa. Mas quem é esse profissional que está na linha de frente, no grotão? Não se corre o risco de se ter profissionais menos qualificados em contato direto com o paciente, mantendo especialistas somente em grandes centros? “É um risco”, reconhece Barone. “Mas também precisamos pensar que tem muito a ver com as equipes, com os profissionais envolvidos. A ideia é que usem a tecnologia para se aproximarem. A tecnologia em si não é ruim, mas é preciso estar atento aos usos que se faz dela”, adverte.

Teleconsulta e suas implicações éticas

O argumento de Dante Barone das consultas com equipes multidisciplinares conectadas em diversos lugares é realmente muito interessante. “Imagine o quanto isso poderia diminuir a espera em sistemas públicos de saúde. Sabemos que em muitos lugares não há especialistas”, acrescenta. Entretanto, mais uma vez não temos certeza de que essa tecnologia de fato vai encurtar desigualdades ou se será capaz de aumentar. “Outro risco é o de ter essa tecnologia apenas em grandes centros de referência. Mas isso também tem a ver com pesquisa e recursos investidos para que possam levar isso para as pessoas. A tecnologia está aí. Não é uma discussão de usar ou não. A nação como um todo tem que se mobilizar para que seja usada como um bem comum”, provoca, ao se referir aos cortes de verbas de governos em pesquisas que poderiam servir a sistemas públicos.

 

Barone vê os dilemas éticos em torno das questões da Inteligência Artificial aplicada à saúde numa conexão direta com os dilemas do mundo hoje. “Tem muito a ver com a sociedade, o mundo capitalista que vivemos”. No caso da indicação de medicamentos, por exemplo, é preciso que a indústria farmacêutica repense as questões de patentes”. Abrindo os sabres sobre fármacos, o conhecimento circula e os remédios mais eficazes podem chegar a mais gente. Mas, também, há um risco de essa indústria se apropriar de toda a informação dos pacientes para potencializar seu poder centralizador. “Há muitas questões em jogo, muitos interesses por trás. Mas precisamos discutir essas questões e não ter em perspectiva somente o lucro”, completa o professor.

No sistema público de saúde em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, as consultas a distância são uma realidade. O projeto Teleoftalmo foi lançado recentemente como uma das formas de reduzir a fila pela espera de consultas oftalmológicas pelo Sistema Único de Saúde, através de uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e o poder público. No extremo sul da cidade, região de periferia, o paciente é posto diante de equipamentos enquanto o médico está há quilômetros dali, em seu consultório noutro bairro da cidade. Ministério da Saúde, Governo do Estado e Município comemoram a implantação do sistema. Entretanto, entidades médicas se posicionam com mais cautela. Para eles, a iniciativa só é realmente válida se houver um médico junto com o paciente e apenas não remotamente. “A questão é essa: o uso que se faz da tecnologia. Ela pode diminuir a fila de espera por consulta com oftalmologista, mas não deve ser usada apenas para manter o médico no seu consultório longe da periferia”, reflete Dante Barone.

Entidades reiteram a importância da presença de médico nos atendimento e não somente de forma remota

(Foto: Prefeitura Municipal de Porto Alegre)

 

Quem é Dante Barone?

Graduado em Engenharia Elétrica pela UFRGS, mestre em Engenharia Elétrica pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – USP e doutor pelo Institut National Polytechnique de Grenoble – INPG, na França. Atualmente leciona no Instituto de Informática da UFRGS e é líder do grupo de pesquisa Robótica Inteligente e Visão Artificial.

 

Assista a íntegra da conferência com o professor Dante Barone

 

 

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