Importante aliado papal diz que ‘Amoris Laetitia’ significa uma ‘linha mais dura’ no divórcio

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07 Junho 2017

Ainda que alguns críticos do Papa Francisco se preocupem com que a abertura cautelosa à Comunhão para com os fiéis divorciados e recasados no civil implícita no documento Amoris Laetitia sinalize uma postura mais permissiva no tocante ao rompimento matrimonial, o Cardeal Christoph Schönborn afirma que, se se levar a sério este documento, o convite feito pelo pontífice ao discernimento nos países ocidentais irá, na verdade, contrabalançar uma tendência excessivamente “laxista”.

A entrevista é de John L. Allen Jr. e Ines San Martin, publicada por Crux, 01-06-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Ainda que os críticos do documento do Papa Francisco Amoris Laetitia muitas vezes digam que ele fomenta uma linha permissiva no tocante ao divórcio e a um segundo casamento civil, um importante aliado papal afirma que, se as pessoas realmente o levarem a sério, pelo menos nos países ocidentais isto provavelmente significará uma maior firmeza frente a uma cultura “laxista”.

“Em algumas áreas da Igreja, o discernimento no sentido de Amoris Laetitia, levaria a uma atitude mais rígida”, disse o Cardeal Christoph Schönborn, da Arquidiocese de Viena, ao Crux terça-feira desta semana.

O religioso dominicano de 72 anos, considerado um dos principais intelectuais na hierarquia católica europeia, concedeu uma entrevista exclusiva em sua residência episcopal.

“Em geral nos países ocidentais, somos bastante tentados pelo laxismo”, afirmou. “Em algumas áreas, certas pessoas são tentadas pelo rigorismo. E o Papa Francisco disse uma coisa muito importante: nem os rigoristas nem os laxistas fazem o trabalho do discernimento. O rigorista sabe tudo antecipadamente, e os laxos deixam passar tudo”.

O que o prelado queria enfatizar é que Amoris Laetitia convida a um processo longo e moralmente sério de discernimento sobre o fracasso de um matrimônio, discernimento modelado nos Exercícios Espiritual de Santo Inácio de Loyola, fundador dos jesuítas. Se ele for levado realmente a sério, sugere o cardeal, haverá certamente um processo mais rigoroso para a admissão à Comunhão do que geralmente acontece em muitos países ocidentais.

Schönborn disse também que ele não está preocupado com o fato de que bispos e grupos de bispos diferentes venham expressando interpretações diversas de Amoris Laetitia, visto que a “recepção é um processo demorado”.

Schönborn acredita que a Igreja não deve ter pressa em tirar conclusões práticas imediatas, devendo, isto sim, focar-se mais em se tornar “imbuída” do espírito deste documento e, especialmente, do seu chamado ao discernimento.

“Precisa haver discussão, eu não temo que as vozes dos bispos e dos leigos não estejam em plena concordância”, disse.

Na entrevista, Schönborn ainda tocou em outros assuntos:

  • Ele defendeu a ideia de que o Papa Francisco forma um “tríptico” com os predecessores João Paulo II e Bento XVI, dizendo que eles “tiveram de garantir conceitos básicos do ensino católico, que estavam seriamente ameaçados”, enquanto Francisco traz um sentido apurado de “onde as pessoas se encontram, onde elas estão, como estão suas vidas e para onde precisam ser conduzidas”.
  • Reconheceu que os cardeais que elegeram Francisco não sabiam bem o que estavam escolhendo, embora em certo sentido Francisco acabou sendo exatamente aquilo que ele, o cardeal de Viena, esperava, já que desejava ser surpreendido.
  •  Insistiu que as categorias de esquerda e direita deveriam ser esquecidas ao se tentar compreender a Igreja. São Tomás de Aquino, disse, não foi conservador ou progressista, mas “simplesmente brilhante e católico”.
  • Não podemos achar que a fé não irá desaparecer na Europa ocidental contemporânea do jeito que aconteceu historicamente na Turquia e na África do Norte, segundo Schönborn, porém ele enxerga sinais de esperança, principalmente com os imigrantes que trazem uma fé vibrante ao Velho Continente e com pequenos bolsões de fiéis jovens comprometidos.

Eis a entrevista.

Bispos e grupos de bispos diferentes estão respondendo diferentemente ao que Amoris Laetitia diz em termos de Comunhão aos católicos divorciados e recasados. Esta diversidade, que alguns veem como uma confusão, lhe preocupa?

Não me preocupa. A recepção é sempre um processo demorado, se for algo importante. A recepção do Concílio de Trento levou, pelo menos, 200 anos. A recepção do primeiro concílio ecumênico de Niceia levou 300 ou 400 anos. A recepção é um processo bastante importante, pois é através do debate em torno de um ensino que ele pode penetrar no Corpo da Igreja e se tornar carne e osso para ela. A recepção do Vaticano II está longe de acabar, não está feita ainda...

O senhor sugere que o debate em torno de Amoris Laetitia é um exemplo disso, correto? Significa também que o debate sobre a aplicação pastoral da visão conciliar ainda é um trabalho em curso?

Exatamente. Penso que a atenção que Amoris Laetitia dá àquilo que Francisco chama de “as famílias como elas realmente são” era um dos grandes focos do Vaticano II. É claro que sempre há certa tensão entre a expressão da doutrina, a clareza da doutrina e a integração do ensino da Igreja na vida das pessoas e na nossa própria vida.

Este processo de recepção precisa de tempo. Não temo nem um pouco o fato de haver discussão. No final do primeiro Sínodo em 2014, o Papa Francisco nos disse que ficaria preocupado se tudo tivesse ocorrido de uma forma serena e sem discussões.

Com Inácio [de Loyola], ele chama essas coisas de a obra do Espírito. É o movimento do Espírito. É como uma gravidez, um trabalho em curso. Precisa haver discussão. Eu não temo com que as vozes dos bispos e dos leigos não estejam em plena concordância.

O que peço é paciência. Na conferência dos bispos austríaca, dissemos que preferimos não produzir orientações neste momento porque ainda estamos no tempo de recepção deste documento. Após o Vaticano II, a maioria das conferências episcopais apressaram-se para a realização de sínodos locais e produzir os seus próprios materiais.

A única exceção (...) provavelmente existem outras, mas a que conheço pessoalmente (...) foi um certo arcebispo de Cracóvia.

O que fez o Cardeal [Karol] Wojtyla no final do Vaticano II? Publicou um livrinho com os textos-chave do Vaticano II e breves comentários seus. Imprimiram-se milhares de exemplares da obra, e a arquidiocese inteira entrou num processo sinodal que durou dez anos. O propósito não era a produção de documentos, mas estudar o Vaticano II e interiorizar o seu ensino sobre a liturgia, sobre a Igreja, sobre a revelação divina, sobre a liberdade religiosa, e assim por diante. Ele já era o papa quando, em sua primeira viagem à Polônia, formalmente concluiu este sínodo. Penso que esse modo de proceder foi o correto.

O que tentei fazer em nossa diocese foi ler o texto de Amoris Laetitia com os padres e leigos, e dizer: “Olhem este texto, leiam. Está muito bem escrito”. Não devemos nos apressar em tirar conclusões práticas imediatas, numa espécie de aplicação casuística de Amoris Laetitia. Deixemo-nos nos imbuir com este ótimo documento, e então, aos poucos, ele estará claro.

Algumas conferências dos bispos publicaram orientações, tais como em Malta, na Alemanha, o Vigário de Roma. Pode ser assim, mas estes materiais precisam ser debatidos, penso eu. Ainda é cedo demais. Os bispos de Buenos Aires publicaram orientações, e o papa se posicionou no sentido de que elas estão em conformidade com Amoris Laetitia. Mas, em geral, acho que precisamos de tempo. Precisamos estar em contato com o espírito de Amoris Laetitia antes de tirar qualquer tipo de conclusão prática.

O senhor está aconselhando ter paciência, mas, nesse meio tempo, muitos estão perplexos porque os bispos de Buenos Aires parecem dar uma resposta sobre se os divorciados e recasados podem receber a Comunhão e os bispos de Alberta, por exemplo, dizem outra coisa. Qual a resposta certa?

A resposta certa é discernir. Vejamos o parágrafo 84 de Familiaris Consortio (...), Deixemos de lado a questão da Comunhão, que é, como certa vez declarou o Papa Francisco, “uma armadilha”. As pessoas olham primeiro para a pergunta: “Estas pessoas têm ou não permissão para comungar?” Mas o caminho do discernimento funciona de um modo diverso, e o indicativo principal foi dado por São João Paulo II. Em Familiaris Consortio, ele declara: “Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações”.

O que isso quer dizer? Quer dizer que há uma diferença moral em situações diferentes, e ele traz três exemplos: uma pessoa que foi abandonada pelo cônjuge; a situação das pessoas cujos casamentos estão “irreparavelmente destruídos”; e aqueles que, em consciência, estão convencidos de que o primeiro casamento nunca valeu. No capítulo 8 de Amoris Laetitia, Francisco amplia estes três exemplos dando outros casos e nos convocando a discerni-los e a distingui-los.

E isso deve ser feito, antes de tudo, pelas próprias pessoas. A pergunta principal não é sobre se elas podem ter acesso aos sacramentos, mas como lidam com o fracasso no casamento.

Na Arquidiocese de Viena, durante muitos anos tivemos um programa para os divorciados e recasados chamado “As Cinco Atenções”. Com este método do discernimento me sinto grandemente agraciado por Amoris Laetitia. Por exemplo, uma das primeiras coisas que perguntamos é: “Como você trata seus filhos?” Em Amoris Laetitia, o Papa Francisco insiste que os filhos nunca deveriam ser forçados a carregar nos ombros o peso do conflito entre os pais. Há uma seção muito comovente em que o papa diz: “Peço aos pais separados: ‘Nunca, nunca e nunca tomeis o filho como refém!’” (Amoris Laetitia, n. 245).

Neste documento, Francisco fala sobre o discernimento. Ele diz, por exemplo, sobre a situação do cônjuge abandonado. No fracasso do casamento, como você considera a situação do parceiro abandonado? Qual o efeito do divórcio sobre os amigos, familiares e a comunidade? Já considerou a questão do ódio entre você e a outra pessoa? Estas são as ferramentas do discernimento, e a pergunta principal é como lidar com uma situação onde uma promessa se rompe.

O cerne de Amoris Laetitia é esse convite ao discernimento. O que alguns ouvem na palavra “discernimento” está desaguando em normas morais. Assim, de um ponto de vista pastoral, como se pode ter certeza de que o discernimento não quer dizer falta de clareza?

Vejamos o capítulo 7 de Amoris Laetitia sobre a educação. Aí temos exatamente o quadro do que é o verdadeiro discernimento. O que os pais fazem para os filhos e com eles? O que é o bom e o que é o ruim para eles? Onde precisam ser rígidos, onde precisam ser pacientes? Esse é o trabalho normal dos educadores, e deveria ser o trabalho em todas as situações pastorais. É o discernimento.

Portanto o Papa Francisco não se põe a repetir: “Precisamos de uma melhor formação no discernimento”. Existem regras para o discernimento. Nos Exercícios Espirituais, Santo Inácio de Loyola dá as regras para isso. E, finalmente, numa dimensão ulterior, o discernimento serve para escutar a voz de Deus em nossa vida. É a questão da consciência.

Não lhe preocupa que isto pode enfraquecer o respeito pelo Sacramento do Matrimônio, ou deslindar o nosso compromisso com a ideia da permanência do casamento?

No sentido de Amoris Laetitia, penso que o discernimento iria, em algumas áreas da Igreja, levar a uma atitude mais rígida. Em geral nos países ocidentais, somos bastante tentados pelo laxismo. Em algumas áreas, certas pessoas são tentadas pelo rigorismo. E o Papa Francisco disse uma coisa muito importante: nem os rigoristas nem os laxistas fazem o trabalho do discernimento. O rigorista sabe tudo antecipadamente, e os laxos deixam passar tudo.

Ambos os grupos começam com alguns aprioris…

Sim. E uma educação laxista é tão ruim quanto uma educação rigorista.

O senhor diz que na base, em termos de realidade pastoral, se levarmos a sério Amoris Laetitia nos países ocidentais, na verdade estaremos sendo mais duros na questão do divórcio e de um segundo casamento civil?

Eu diria que estaríamos mais atentos, sim. Seríamos mais cuidadosos.

Mais cautelosos talvez?

Mais cautelosos no sentido de formar a nossa própria consciência. Sim. Porém tenho de acrescentar um elemento muito importante.

Em Amoris Laetitia, há uma passagem apenas onde o Papa Francisco fala da Sagrada Comunhão, e ela não acontece no contexto do divórcio. Está no contexto da realidade social (Amoris Laetitia, n. 186). Ele cita a carta de São Paulo aos coríntios, quando fala sobre discernir o Corpo. E qual é a censura de São Paulo aos coríntios? Que os ricos comem e bebem para se embriagarem, e os pobres estão famintos. E isso não é discernir o Corpo.

Penso que o convite para o discernimento é algo que toca a todos. Não só os divorciados. Ele toca todo mundo: como pratico o discernimento quando trato o meu povo, os meus funcionários, de um modo brutal, desumano, e depois vou comungar aos domingos? Será que isso é o discernimento do Corpo?

Portanto, acho que o Papa Francisco nos convida a ampliar a questão. E, por fim, com as palavras de São Paulo, todos temos de discernir sobre se ele come por seu juízo ou para o seu benefício.

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