Como meio de aproximar essas realidades distintas e como já vem fazendo há décadas, a Pastoral Carcerária poderia contribuir na superação desse fosso ao possibilitar aos cristãos e pessoas de boa vontade conhecer a impactante e desumana situação prisional. Seus inúmeros, detalhados e valiosos relatórios, verdadeiras radiografias do sistema penitenciário, precisam ser comunicados de modo mais acessível ao grande público. As visitas aos presídios precisam ser facilitadas como forma de controle social e apoio no trabalho de transformação das pessoas privadas de liberdade.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
No final de março passado, a Câmara dos Deputados aprovou, com espantosos 311 votos favoráveis e somente 98 votos contrários – no Senado a situação foi pior, 62 votaram pela aprovação e apenas dois reprovaram a proposta – um malfado projeto de lei, o PL nº 2.253/2022, filhote de um punitivismo penal perverso e irracional. Nesta quinta-feira (11), o presidente Lula vetou de forma parcial o texto e a proposição se tornou lei, retirando absurdamente o direito às saídas temporárias de milhares de encarcerados. Expectativas? Presídios mais superlotados e com condições indignas, piora da saúde mental das pessoas presas e duvidoso resultado efetivo no enfrentamento à criminalidade. Vitória do retrocesso!
Fundadas em uma retórica exacerbada e no aumento da sensação de insegurança, o país assiste à escalada da violência policial e do avanço de uma pauta conservadora em matéria de segurança pública no Congresso. O medo nunca foi tão facilmente manipulado como nos dias presentes, com o advento das redes sociais. Chegou-se ao ponto de um bilionário estrangeiro ameaçar descumprir uma ordem de um ministro de Supremo Tribunal Federal, com pavorosas reações de apoio no Congresso! Vídeos estapafúrdios com ameaças imaginárias são compartilhados massivamente gerando pânico e desinformação em uma sociedade amedrontada. O discurso do “bandido bom é bandido morto”, infelizmente, não foi vencido na eleição passada.
O projeto de lei, apresentado em 2011, foi capturado pela base bolsonarista segundo seu já conhecido populismo penal. Uma rápida análise de seus defensores é suficiente para se perceber a falta de profundidade da proposta. Na Câmara Federal foi relatado nada mais nada menos pelo atual secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, responsável pelo aumento de 94% na letalidade da PM paulista, no primeiro bimestre de 2024.
Segundo dados do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) do Ministério Público do estado, 134 pessoas foram mortas em São Paulo em confronto com a polícia, apenas nos dois meses iniciais desse ano. No Senado, a relatoria coube à Flávio Bolsonaro, filho e apoiador do ex-presidente que liberou a circulação de mais de 1,3 milhões de novas armas, durante seu mandato. Esperar o quê?
O instituto da saída temporária, até então aplicável aos encarcerados do regime semiaberto, permitia a visita aos familiares por 7 dias, em cinco ocasiões especiais durante o ano, tais como Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Finados, Natal/Ano Novo. A finalidade do instrumento jurídico era favorecer a ressocialização da pessoa presa e estimular o bom comportamento no estabelecimento penitenciário. Sem qualquer fundamentação jurídica ou base em pesquisas autorizadas, o intuito era restringir as “saidinhas”, como são popularmente conhecidas, apenas aos casos de estudo e para quem não tivesse sido condenado por crime hediondo, com violência ou grave ameaça.
Com os vetos do presidente Lula, permanece a possibilidade de saída para fins sociais e de trabalho, como acontece atualmente, o que é positivo para o caráter ressocializador da pena. Mas, fica mantida a proibição de saída temporária para os crimes supramencionados, bem como a necessidade do uso de tornozeleira eletrônica e o exame criminológico. Acontece que na categoria dos crimes excluídos estão aqueles elencados na Lei de Drogas, responsável pelo encarceramento de mais de 200 mil pessoas. E quem são essas? Em razão de um Estado racista e aporofóbico, na sua maioria são jovens homens negros, pobres e das periferias. Mão de obra barata e insignificante dos grandes chefões do crime organizado.
Segundo dados do Sistema de Informação do Departamento Penitenciário Nacional, até junho de 2023, haviam cerca de 840 mil pessoas presas no país. Trata-se de um crescimento de 44% só na última década. Ou seja, essa política de encarceramento em massa não reflete na diminuição da criminalidade. Por outro lado, segundo dados do próprio Estado de São Paulo, o índice de não retorno do encarcerados que usufruem da saída temporária é baixíssimo, não chegando a 5% do total.
A Pastoral Carcerária Nacional, ligada à Conferência dos Bispos do Brasil (CNBB), divulgou nota alertando, entre outros pontos, que se corre sério risco de violar parte do viés ressocializador da pena e reforçar a discriminação contra a população carcerária:
“Além disso, o texto ainda prevê. a obrigatoriedade do exame criminológico o que, além de inviabilizar a progressão de regime, acarreta um gasto público sem precedentes. Além disso, a ampliação do uso de tornozeleiras eletrônicas pode aumentar a estigmatização das pessoas presas e dificultar sua inserção no mercado de trabalho, prejudicando sua reintegração à sociedade”.
Apesar de importante, o veto parcial do presidente não basta. Mesmo com uma base de apoio diminuta, em meio a um Congresso altamente conservador que ensaiou libertar o deputado acusado de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco, o governo federal não pode se furtar ao bom e responsável debate. Para além de agir com base em momentâneos cálculos eleitorais, cabe ao Executivo aprofundar a questão por meio do esclarecimento à sociedade, com o apoio de campanhas informativas e especialistas reconhecidos.
Como ensinou o filósofo Enrique Dussel, na sua obra “Ética comunitária” (1986, p. 21), “falar de relação ‘pessoa-pessoa’ ou ‘face-a-face’ é, quando se pensa em duas pessoas, algo abstrato”. “(...) O amor cristão se vive no plural, na comunidade, no povo”, assevera. “A comunidade é o sujeito real e o motor da história, nela estamos ‘em casa’, em segurança, em comum”, conclui o pensador da Libertação. Nessa missão de recuperar o sentido profundamente cristão de comunidade e de amizade social, a Igreja do Brasil também é chamada a ir além da Campanha da Fraternidade desse ano.
Como meio de aproximar essas realidades distintas e como já vem fazendo há décadas, a Pastoral Carcerária poderia contribuir na superação desse fosso ao possibilitar aos cristãos e pessoas de boa vontade conhecer a impactante e desumana situação prisional. Seus inúmeros, detalhados e valiosos relatórios, verdadeiras radiografias do sistema penitenciário, precisam ser comunicados de modo mais acessível ao grande público. As visitas aos presídios precisam ser facilitadas como forma de controle social e apoio no trabalho de transformação das pessoas privadas de liberdade.
Para tanto essa longeva e frutífera pastoral necessita ser robustamente fortalecida, com aporte de recursos financeiros e novos agentes. Deve-se romper, inclusive, a resistência de muitos cristãos a esse tipo de apostolado. Isso poderia ser feito por uma ampla campanha nacional, para sensibilizar futuros colaboradores. Impõe-se como fundamental o apoio e a coordenação da CNBB para acionar a mídia de inspiração católica e, principalmente as TVs, nesse particular esforço.
A quem interessa essa indústria do crime, que só se retroalimenta na condições desumanas dos presídios? É preciso vencer a bolha de desinformação e ir além dos estereótipos caricaturais. Do contrário, o Brasil será refém de um sentimento de vingança despudorado e insaciável que o levará cada vez mais para uma sociedade violenta e amargurada. Se as pessoas puderem ir além e se defrontar com a humanidade dos encarcerados, de uma outra forma que não pelo sensacionalismo superficial, então talvez, poderão se perguntar como o Papa Francisco, toda vez que visita o cárcere: por que eles e não eu?