Influenciadores digitais católicos em debate no IHU. Uma comunicação para o amor? Artigo de Gabriel Vilardi

Foto: PASCOM Brasil

13 Março 2024

O idoso cardeal jesuíta, nos seus últimos dias e mesmo em meio a um cenário conturbado, foi capaz de fazer a sua profissão na fé “que é o fundamento da Igreja”. Martini, SJ, insistiu que “só o amor vence o cansaço”. Para Santo Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais, o amor é comunicação recíproca (EE 231). E é exatamente esse amor que precisa ser comunicado pelos cristãos e cristãs nas mídias e redes sociais como verdadeira missão de libertação. Não um amor adocicado, mas um amor que desinstale e leve ao serviço da humanidade ferida.

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e colabora no Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

“A Igreja ficou 200 anos para trás. Como é possível que ela não se sacuda? Temos medo? Medo ao invés de coragem?”, provocou o Cardeal Carlo Maria Martini, SJ, numa entrevista dada em agosto de 2012. De fato, é visível, mesmo para os menos conhecedores dos assuntos eclesiais, quanta resistência setores ultraconservadores têm feito ao pontificado do papa jesuíta e às suas tão necessárias mudanças. Mas também é verdade que sempre existiram e continuam existindo cristãs e cristãos corajosos e abertos a ler e responder aos sinais dos tempos. Entre eles pode-se citar a lúcida e certeira iniciativa de pesquisar e refletir sobre o fenômeno dos influenciadores digitais católicos.

Liderados por um destemido e inteligente presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB (2019-2023), um grupo de três mulheres e dois homens, especialistas em Comunicação e Teologia realizou um sério, longo e profundo estudo, entre os anos de 2021 a 2023. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães é um daqueles bispos com cheiro de ovelha, no melhor estilo do Papa Francisco. Um homem de visão e filho do Concílio Vaticano II, não teve receio de enfrentar a incômoda questão, lançando luz sobre um tema central para os tempos cibernéticos que se vive.

Em debate promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na última terça-feira (5 de março), com o tema Influenciadores digitais católicos. Efeitos e perspectivas, participaram o bispo-auxiliar de Belo Horizonte e os professores Aline Amaro da Silva e Moisés Sbardelotto. Ocasião oportuna para se refletir sobre essa realidade e seus respectivos impactos na Igreja e na sociedade. Encarar essa questão deixou há muito de ser mera curiosidade intelectual para se impor como verdadeira necessidade pastoral para quem quer compreender os processos pelos quais passa a Igreja. 

Conforme constatou Dom Joaquim Mol, “os influenciadores digitais passaram a viver dessa atividade: virou uma profissão”, com todas as implicações que isso traz. Essas pessoas, continua o bispo, “são supra ou infra diocesanos, estão acima ou ‘nos corredores de uma diocese’”. Quer dizer, a atuação regional ou nacional dessas figuras midiáticas, para além das estruturas estabelecidas, tem alterado a própria forma da Igreja se organizar. Em que, como traz Moisés Sbardelotto, “a popularidade se sobrepõe à noção de autoridade”. Com o enfraquecimento da Igreja particular, recuperada pelo Concílio Vaticano II atinge-se também as noções de sinodalidade e eclesialidade.

Ao citar alguns impactos no eixo político Dom Joaquim trouxe a impactante Encíclica Fratelli Tutti que, no seu capítulo 5, trata da importância da melhor política. “O Papa ensina”, diz o bispo, “que o mundo não pode funcionar sem a política” (n. 176) e “que não se encontrará a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política!” Em tempos de autoritarismos e demonização da política, o chamado do pontífice soa contracultural.

Por isso “se precisa entender que o compromisso da Igreja com a dimensão social e política é desde sempre e deve ser na perspectiva do bem comum, da dignidade da pessoa”, arremata com firmeza o bispo que decidiu despertar outros para a complexa situação das celebridades católicas que arrastam multidões nas redes. Quantos líderes na Igreja do Brasil, hoje, estão dispostos a se defrontar com honestidade sobre esses fatos perturbadores, para mais além das paixões que suscitam?

Livro "Influenciadores digitais católicos. Efeitos e perspectivas" (Foto: Ed. Ideias & Letras)

Dom Joaquim Mol seguiu sua exposição trazendo os três modos de atuação política dos influenciadores digitais católicos (IDCs). “O primeiro é o conservador de direita”, explica, não qualquer conservador, mas “um modo ‘muito’ conservador e de ‘muita’ direita”, enfatizou. Esclarecendo que um dos referenciais teóricos do estudo foi o grande filósofo italiano Norberto Bobbio, indicou que a premissa adotada por esse grupo de influenciadores é de que as desigualdades são naturais. Entre as consequências gravíssimas dessa posição, o bispo ressaltou a completa apatia para “transformar social, econômica, política e culturalmente a sociedade”.

“Não há a necessidade de, como gostam de dizer os conservadores de direita, nenhum ‘esforço revolucionário’”, acrescenta o pastor. Contata-se com facilidade que esse grupo está em total desacordo com a advertência do Papa Francisco, quando diz na sua forte Carta Fratelli Tutti (n. 161) que “a superação da desigualdade requer que se desenvolva a economia, fazendo frutificar as potencialidades de cada região e assegurando assim uma equidade sustentável”. Aliás, segundo a cartilha desses IDCs defender ou buscar a justiça social não passa de pura heresia. “Nem a revolução do amor caberia, porque é desnecessário”, conclui com inteligência Dom Joaquim.

A pesquisa verificou que esses influenciadores estão fundados nos extremismos tão em voga nesses tempos sombrios: o reacionarismo, o fundamentalismo e o conservadorismo. Para o bispo-auxiliar de Belo Horizonte, “essas pessoas possuem uma dificuldade enorme para entender que tudo precisa passar pela hermenêutica, pela interpretação porque é uma ciência que ajuda a entender melhor”. Julgam-se os únicos defensores da verdade, não aquela fundada no Deus da Vida, mas uma verdade que é mera autorreferencialidade, sacada de um conjunto de velhas formulações de uma tradição estática que, quando não está estancada na Idade Média, parou no antimodernismo do Concílio Vaticano I, no final do século XIX.

O segundo modo elencado pelo livro é o do ativista no campo progressista do pensamento e da ação. Nesse caso, o influenciador orienta sua atuação e as dos seus seguidores “para potencializar ações de transformação, com pautas de compromisso com as lutas sociais”. Trata-se, pois, de uma ideia oposta ao do primeiro grupo, compreendendo que as desigualdades nada possuem de natural. Dom Mol reafirma que elas “são resultados de mecanismos de injustiças, de sistemas que oprimem, de ‘economias que matam’ como diz o Papa Francisco”.

Por fim, o terceiro é o modo de isenção e neutralidade programadas, a famosa “ideia de ficar em cima do muro e não se posicionar”. Infelizmente, uma postura bastante comum na Igreja, diga-se de passagem. O que já é em si “um posicionamento pernicioso, porque geralmente favorece uma visão mais conservadora e a manutenção do status quo”, confirma Dom Joaquim. “Nesse caso”, discorre o bispo, “os influenciadores buscam uma programação de conteúdo para se distanciar dos temas polêmicos com uma única finalidade: ser atendida a natureza publicitária, monetária, comercial da relação”.

Com muita propriedade, o prelado desmascara uma realidade desconfortável e amarga para o cristianismo brasileiro: o silêncio omisso e conivente de uma maioria de personalidades midiáticas católicas. “Isso torna os influenciadores espaços áridos sobre temas sociais candentes, como por exemplo, em relação às guerras”, aponta com perspicácia. Quantos influenciadores se posicionaram a favor da paz em suas redes, condenando os conflitos em Gaza, na Ucrânia e no Haiti, por exemplo? Ou seus círculos de oração estão fechados em um egoístico bem-estar pessoal?

Assim, o ex-presidente da Comissão Episcopal Pastoral de Comunicação alerta com autoridade: “os influenciadores se tornam distantes das posições históricas da CNBB, que se coloca evangelicamente do lado dos pobres”. Daqui a algum tempo, com o fosso entre a Igreja e esse grupo aumentando a cada dia, resta a dúvida, permanecerão em comunhão com quem e com o quê?

A autora do estudo, Aline Amaro da Silva, da Sociedade Brasileira de Teologia Sistemática, concordou com o bispo-auxiliar ao frisar que os influenciadores digitais têm provocado profundas consequências teológicas, eclesiais e pastorais com implicações na própria forma de compreender a Igreja. Esse fato leva a uma preocupação pertinente para os cristãos: as comunidades eclesiais e suas lideranças, incluindo os bispos e a própria Conferência Episcopal, estão conscientes e de acordo com essas mudanças? Quais têm sido as estratégias para se reagir a esse processo? As respostas têm sido suficientes?

A pesquisadora questionou também se a comunicação católica está realmente lançando boas notícias, ao ressaltar os discursos de ódio que chegam através das redes integradas por cada um e que espelham o cenário mais amplo. Afinal, indaga a teóloga: é possível que “Jesus, o Príncipe da Paz que transforma realidades, seja comunicado pelas mídias e redes sociais nesse contexto?” Certamente a divisão é diabólica!

A especialista em comunicação social denuncia ainda o “magistério paralelo ao magistério oficial”, em que “existe um dizer sobre Deus, mas não acontece um processo integral de evangelização que leve à comunidade”. Aquilo que começou como uma economia do dom hoje está capturado pela lógica capitalista de mercado, com todos os seus jogos típicos de competição e busca desenfreada pelo lucro. Por isso, alerta com uma clareza que infelizmente muitos não possuem: “influenciador digital nem sempre é evangelizador”. Ou poderia se dizer, quase nunca é um evangelizador. Por isso, como “todo cristão e toda cristã é um microinfluenciador, é preciso que haja uma formação mínima para que se possa exercer essa missão com responsabilidade”.

Além de uma análise crítica, o livro buscou ser propositivo trazendo critérios para guiar essa comunicação. Para isso, Aline Amaro discorreu sobre as cinco “primazias”, ou seja, aquilo que não se pode faltar quando se quer evangelizar. A primeira primazia é a do Evangelho, sendo o evangelizador digital chamado a beber na fonte da Palavra, que revela quem é Jesus de Nazaré. Um pouco de formação bíblica de qualidade, não faz mal a ninguém... Por incrível que pareça muitos influenciadores parecem ater-se mais a manuais empoeirados da velha escolástica do que à riqueza das Sagradas Escrituras.

A segunda primazia é a da caridade, o mandamento do amor. Ou seja, “o evangelizador digital é chamado não só a falar e ensinar sobre o amor de Deus, mas principalmente a vivê-lo, praticá-lo”, aponta a estudiosa. Parece quase uma tautologia dizer que o cristão deve agir baseado no amor. Mas nesses tempos de desinformação, que nem o próprio papa é poupado da fúria digital, o óbvio precisa ser reafirmado.

A graça consiste no quarto sinalizador, “em que mesmo em espaços desérticos do meio digital o evangelizador pode ser pessoa-cântaro para dar de beber a outros”. Aline Amaro ressalta que “em muitos discursos se percebe a possessão da verdade, mas como o Papa Francisco traz, a verdade é um encontro com a Pessoa de Jesus”. Nesse sentido, observa que “é preciso humildade para perceber que Deus age por meio de cada um”. E infelizmente, a arrogância parece imperar nesse meio, onde os algoritmos apenas reforçam convicções intolerantes e definitivas.

A tão falada e combatida sinodalidade consiste na quarta primazia, como desejo de se caminhar junto como comunidade, para além do clericalismo e do individualismo exacerbados. A estudiosa insiste que “todo discurso que desintegra e polariza o Corpo que é a Igreja contraria essa primazia”. E, por fim, a quinta se refere a cada vez mais enfraquecida unidade eclesial. Não uma unidade que busque a empobrecedora e violenta uniformidade, mas uma unidade na pluralidade.

Moisés Sbardelotto, estudioso das Ciências da Comunicação, reconhecendo uma evidente midiatização da fé e do próprio cotidiano, trouxe entre os interessantes aspectos positivos do fenômeno dos influenciadores digitais católicos o desenvolvimento de uma nova linguagem e o diálogo com nichos específicos e inalcançados até então. Reinventar e atualizar a linguagem é imprescindível se a Igreja pretende se manter relevante nesse novo milênio.

O colaborador do Instituto Humanitas Unisinos – IHU ressalta ainda que essas pessoas são transformadas em influenciadores e uma vez nessa posição se veem condicionadas a produzir conteúdo para conservar a atenção do público conquistado. Isso têm acarretado sérias consequências para a saúde mental dos envolvidos. Os influenciadores se tornam cativos da notoriedade alcançada e a ameaça permanente de perda de interesse dos respectivos seguidores torna-se uma condição cruel dessa atividade.

Em meio a uma vida programada segundo essa lógica, os algoritmos e a busca por impacto levam à conteúdos polêmicos para se gerar emoções fortes e o almejado engajamento do público. Há assim, como traz Sbardelotto, um processo de celebrização dos influenciadores. “A vida cotidiana vira espetáculo, o foco é a persona digital e a sua performance”, ocorrendo o fenômeno da mercantilização da pessoa e o grande risco de mercantilizar a própria fé. O deus dinheiro sempre encontrando novas formas de escravizar mentes e corações, mesmo tendo Jesus advertido seus seguidores que o templo não é lugar de comércio (Jo 2, 16).

De acordo com o filósofo Emmanuel Levinas, em sua obra Totalidade e infinito (1961), uma ética da alteridade ou da não indiferença não pode reduzir o Outro ao Mesmo. No seio da interioridade existem dois estágios distintos que formam uma zona fronteiriça. O primeiro refere-se a uma interioridade complacente consigo, chamada de animalidade racional. Nesta separação entre o “Eu” e o mundo há fruição prazerosa daquele que está voltado para si.

No segundo estágio, acontece uma subversão em que, na radicalidade do encontro, irrompe a humanidade. Só então, com esse evento, em que, no surgimento do heterônomo o Mesmo se implica, se instaura uma nova possibilidade. Como sintetiza Nilo Ribeiro Júnior, “diante do Rosto, viver significa ‘um-para-o-outro’ na justiça, antes de ser um viver-com-o-outro no ser ou em vista do Bem”[1]. Uma vida individualista e fechada em si não pode se pretender cristã.

Nesse sentido como muito bem ensinou o Papa Bento XVI em Deus caritas est (n. 1), “no início do ser cristão não há uma decisão ética, ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”. Não se trata, pois, de uma adesão intelectual a um conjunto de regras morais, a uma rubricista ritualística ou a uma doutrina monolítica, calcada em rigorismos e idiossincrasias.

Oxalá seja possível um verdadeiro testemunho do amor de Deus na internet como propugnam em nota inicial as instituições que apoiam a obra:

Que esta obra inspire e motive todos os membros da Igreja a se tornarem testemunhas autênticas do amor de Deus na internet, não apenas como influenciadores, mas também – e principalmente – como evangelizadores digitais, motivados a ‘anunciar a Boa Notícia aos pobres; proclamar a libertação aos presos, aos cegos a recuperação da vista, libertar os oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor (p. 14).

O idoso cardeal jesuíta, nos seus últimos dias e mesmo em meio a um cenário conturbado, foi capaz de fazer a sua profissão na fé “que é o fundamento da Igreja”. Martini, SJ, insistiu que “só o amor vence o cansaço”. Para Santo Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais, o amor é comunicação recíproca (EE 231). E é exatamente esse amor que precisa ser comunicado pelos cristãos e cristãs nas mídias e redes sociais como verdadeira missão de libertação. Não um amor adocicado, mas um amor que desinstale e leve ao serviço da humanidade ferida.

Pretender influenciar outros se não for fundado no amor que transforma as estruturas injustas e opressivas do mal, não passa de egocêntrico projeto pessoal, que não se encontra em comunhão com a Boa Notícia de Jesus de Nazaré. Que as lideranças da Igreja e cada membro do Povo de Deus assumam com responsabilidade e coragem essa ameaça à unidade da comunidade de discípulos e discípulas, para de fato comunicar com ousadia o Projeto do Reino de Deus!

Nota

[1] RIBEIRO JÚNIOR, Nilo. Sabedoria de amar: a ética no itinerário de Emmanuel Levinas. São Paulo: Loyola, 2005, p. 17.

Leia mais