09 Outubro 2023
O Papa Francisco está tentando ajudar o catolicismo a passar do período medieval e do início da modernidade para a pós-modernidade.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por La Croix International, 05-10-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um dos intelectuais mais importantes do século passado, o historiador alemão Reinhard Koselleck (1923-2006), disse que o período que vai de meados do século XVIII a meados do século XIX foi fundamental para a compreensão das mudanças trazidas pela modernidade. Ele o chamou de Sattelzeit – um “tempo de sela”.
Essa foi a fase da transformação histórica durante a qual a linguagem medieval e moderna, e as condições políticas e sociais a ela associadas, foram substituídas pela modernidade: a era das revoluções democráticas, culturais e atlânticas (na América do Norte, França, Haiti e América Latina), com a transição de uma ideia de ordem social para uma sociedade de indivíduos rumo ao progresso.
A Igreja Católica tem se defrontado com a transição dos tempos medievais e do início da modernidade para a modernidade e a pós-modernidade. O Concílio Vaticano II (1962-1965) foi o início do esforço para abordar essas mudanças massivas e tentou fazê-lo, em primeiro lugar, levando a história a sério.
Mas o Vaticano II foi apenas “o início do início” (como disse o teólogo jesuíta alemão Karl Rahner) neste atrasado e prolongado “tempo de sela católico”.
O Sínodo sobre a Sinodalidade de 2023-2024 é um momento particularmente importante neste período católico. Em certo sentido, isso ocorre porque é hora de metaforicamente “montarmos a sela”. São tempos turbulentos, até mesmo sombrios, para muitas mulheres e homens que caminham nesta terra em áreas devastadas pela guerra, pela agitação, pela pobreza e pelos efeitos das mudanças climáticas.
Esta assembleia sinodal dividida em duas partes (a primeira sessão está atualmente em curso, e a segunda será realizada em outubro de 2024) não pode se beneficiar de uma certa “mística do Vaticano II” – o otimismo da era do presidente Kennedy, do secretário Khrushchev e tudo isso. Sinais emblemáticos dos nossos tempos políticos são Donald Trump e Vladimir Putin, os movimentos migratórios massivos de povos e a normalização das fake news. Nestes dias, é mais uma questão de esperança do que de otimismo.
Mas é um “tempo de sela” também porque, ao longo dos últimos anos, ficou claro que o Vaticano II foi um debate inacabado. O catolicismo ainda está buscando acompanhar a tentativa do Concílio de lidar com a modernidade e a pós-modernidade. Esse é um desafio que deve ser enfrentado com algo novo ou pelo menos algo que estava emergindo no Vaticano II: o fim do eurocentrismo e da ideia da Igreja como uma fortaleza contra o mundo.
O Sínodo recapitula essa era na história da Igreja, com muitos finais e inícios sobrepostos, sem uma clara linha de demarcação entre o velho e o novo. É o fim da ilusão de que a questão do papel das mulheres na Igreja está limitada aos católicos na América do Norte, na Europa ou no Ocidente e não é uma preocupação global. Quem não acredita nisso deveria conversar com as alunas dos programas de teologia que vêm de países não europeus e não ocidentais. As mulheres em muitos países fora da Europa ocidental e da América do Norte acreditam que o comunismo realmente fez mais do que o catolicismo para libertar as mulheres das restrições do patriarcado e da sociedade tradicional.
É também o fim da ilusão de que o escândalo dos abusos é uma crise temporária. Esta é a primeira assembleia sinodal, desde a última fase da história dos escândalos iniciada em 2018, cuja preparação contou com um papel para o tema dos abusos na Igreja (sexuais, espirituais e de autoridade). Do ponto de vista de uma “política eclesial”, neste ano de 2023 é difícil dizer o que está acontecendo em Roma na luta contra os abusos – não apenas no caso do ex-jesuíta Marko Rupnik.
Nesta fase do pontificado de Francisco, não está claro quem é o responsável por lidar com a crise dos abusos e como os diferentes órgãos de governo da Cúria Romana estão trabalhando (ou não) em conjunto nessa questão no nível central.
Mas é evidente que o escândalo dos abusos já não é visto mais como um incômodo efêmero, como um problema de relações públicas, como uma estatística ou como uma conspiração midiática. O abuso não é mais percebido como uma questão ocidental que não afeta a Igreja global. É um dos sinais do fim de um catolicismo monocultural e do início de um catolicismo verdadeiramente multicultural – com seus paradoxos e contradições. É um dos efeitos da Igreja Católica global, cujas trajetórias não seguem o enquadramento ideológico preguiçoso das coisas como “direita versus esquerda”, que ainda afeta grande parte da cobertura noticiosa dos assuntos católicos.
É o fim da ideia de que a reforma da Igreja parou (ou deveria ter parado) no Vaticano II. Não sabemos como o atual assembleia sinodal irá se desenrolar ou como poderá (ou não) ajudar a Igreja a encontrar seu caminho para o futuro. E não sabemos se será um caminho de reforma e de recuperação das formas de sinodalidade antigas, medievais e modernas.
O teólogo católico tcheco Tomáš Halík disse recentemente que a Igreja precisa urgentemente de uma “nova reforma”, mas é mais provável que – aconteça o que acontecer – ela será marcada por aquele estilo católico extremamente peculiar – “e”, e não “ou”.
Talvez, a coisa mais importante que esta assembleia sinodal oferece à Igreja é a oportunidade de pôr fim à percepção e à autopercepção do catolicismo como um corpo hiperpolitizado, envolto em antipatias intracatólicas mútuas sobre diferentes formas de catolicismo. O Sínodo não tem a ver com as manchetes, com quantas pessoas comparecem às suas liturgias na Praça São Pedro ou com o fato de se ver “do lado certo da história”.
Como disse Timothy Radcliffe, ex-mestre dos dominicanos, no primeiro dia do retiro de 1º a 3 de outubro que ele pregou aos participantes do Sínodo, “se estamos verdadeiramente no caminho rumo ao Reino dos Céus, será que realmente importa se você se alinha principalmente com os chamados tradicionalistas ou progressistas? Mesmo as diferenças entre dominicanos e jesuítas empalidecem em insignificância”.
O Sínodo e toda a Igreja receberam das palavras de Radcliffe uma bússola que oferece coordenadas espirituais e emocionais para o caminho que deve ser seguido. Razões e racionalidade não são a única coisa necessária para a mudança que Francisco espera. Também precisamos de afeto – um amor que vem de Cristo e um abraço ao discipulado – e parar de brincar de teologia e de política da Igreja como um esporte sangrento.
Não sabemos o que esta assembleia sinodal sobre a sinodalidade irá realizar agora e entre suas duas sessões de outubro de 2023 e outubro de 2024. Mas sabemos que nunca houve uma assembleia sinodal como esta, nem antes do Vaticano II, nem depois.
Aqueles que acham que não está acontecendo nada na Igreja Católica ou que está já tudo roteirizado simplesmente não estão prestando atenção.
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A sinodalidade e o “tempo de sela” na história da Igreja. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU