26 Setembro 2023
Evgeny Morozov aborda temas científicos complexos com habilidade analítica e erudição. Propôs-se a pesquisar o ponto de encontro entre a tecnologia e as decisões políticas, o papel onipresente das Big Techs nos Estados nacionais e a governança dessas gigantescas corporações no ambiente digital, mas a partir do caminho oposto da fábrica do conhecimento do Vale do Silício.
A entrevista é de Gustavo Veiga, publicada por Página/12, 24-09-2023. A tradução é do Cepat.
Não em vão, este bielorrusso, nascido em 1984 e doutor em História da Ciência pela Universidade de Harvard, escolheu o Projeto CyberSyn como objeto de estudo. Um modelo cibernético criado para coletar informações sobre as empresas públicas nacionalizadas e impulsionado pelo governo de Salvador Allende no início dos anos 1970.
A ditadura de Augusto Pinochet truncou aquela estratégia socialista inovadora que seduziu o autor de El desencanto de Internet (2011) e La locura del solucionismo tecnológico (2013). Por isso editou uma série de nove podcasts que chamou de Santiago Boys, que veio apresentar em Buenos Aires há poucos dias.
Do que se trata o seu trabalho sobre essa experiência chilena?
Iniciei o projeto para conhecer um pouco mais da história do CyberSyn, que nasceu na Corporação para o Desenvolvimento da Produção (CORFO), um órgão público muito importante no Chile que pretendia usar a tecnologia, os computadores, para compensar a ausência de gestores, de managers, durante o governo de Salvador Allende. Muitas empresas foram nacionalizadas, mas não dispunham de recursos humanos adequados.
Hoje o CyberSyn é uma referência global internacional muito forte, porque na Europa e nos Estados Unidos é apresentado como um dos poucos projetos de esquerda que teve esta visão construtiva do mundo tecnológico digital. Queriam criar algo novo utilizando a rede telex e o software desenvolvido pelo inspirador do projeto, Stafford Beer. Este foi o início do meu podcast.
Em que consistiu sua pesquisa?
Em quase dois anos fiz duzentas entrevistas com mais de 150 pessoas. E o ponto de partida foi o CyberSyn. Ao fazer esta pesquisa, entendi que o governo Allende tinha uma visão mais ampla e ambiciosa também no campo da tecnologia. Até porque se viu na luta contra a ITT, a gigantesca empresa tecnológica que causou muitos problemas a Allende antes das eleições e durante o mandato da Unidade Popular.
Também descobri um esforço institucional de Allende para criar uma organização dentro do Pacto Andino que facilitasse o acesso a tecnologias avançadas em países como o Chile, que não poderiam pagar todos os encargos que a ITT e outras empresas multinacionais queriam.
Então, esta teoria da dependência que influenciou muitos programas de governo socialista, para mim é muito relevante hoje, porque nos mostra como pensar e repensar a inteligência artificial e outros projetos digitais numa perspectiva mais geopolítica do que econômica.
Quem foi Stafford Beer e quem levou adiante seu modelo no governo chileno?
Quando falo dos Santiago Boys é como se fosse um grupo de técnicos. Alguns eram economistas, outros eram especialistas em cibernética ou engenheiros com experiência e perspectiva de esquerda. Eles queriam usar a tecnologia para criar outra forma de gerir a economia.
Descobri que na Universidade Católica havia um grupo em torno de Fernando Flores, um político chileno muito jovem dessa época, que sabia muito de cibernética. Tinha lido muitos livros e também um do especialista inglês Stafford Beer, um consultor e teórico da gestão que desenvolveu sua própria abordagem, sua própria disciplina acadêmica que se chamada management cybernetcs.
Beer não tinha tido nenhum contato com a América Latina, nem com o Chile, nem com o mundo de esquerda. Mas um dia recebeu uma carta escrita por Flores, que na época trabalhava na CORFO, que administrava as empresas nacionalizadas.
O projeto CyberSyn pode ser considerado avançado para a época e principalmente para um país periférico?
Claro que foi muito avançado, mas para entender um pouco melhor o contexto é importante considerar que existiam empresas privadas que utilizavam a cibernética, instrumentos muito semelhantes aos desenvolvidos por Beer. Ele aprendeu e desenvolveu muitos dos métodos porque tinha trabalhado em uma empresa global, na Inglaterra. Uma das maiores da indústria siderúrgica.
Mas o que não existia era a sua utilização no setor público. No Chile, para fazer algo deste tipo, os recursos computacionais eram limitados. Quando os analistas dos Estados Unidos leram sobre este projeto em 1973, pensaram que se tratava de notícias falsas, de uma fake news, porque era impossível que isso pudesse ser criado no Chile.
É possível ter soberania tecnológica sem soberania política e vice-versa?
Não, e nesse período no Chile era impossível porque os sistemas de comunicação, a telefonia, estavam nas mãos da ITT. Havia dispositivos eletrônicos que permitiam escutar as conversas de Allende e do governo como fazia a CIA. Hoje é ainda mais problemático.
Os chilenos que participaram do CyberSyn acabaram perseguidos pelo regime de Pinochet?
Para Fernando Flores este projeto foi uma forma de progredir no governo. Allende o nomeou ministro da Economia e mais tarde das Finanças. No dia do golpe, ele era um dos funcionários que estavam com o presidente no ataque ao La Moneda. Passou três anos em campos de concentração (Nota da redação: mudou 180 graus de ideias e acabou como funcionário de Sebastián Piñera. Hoje tem 80 anos). Outras pessoas importantes emigraram para a Europa e continuaram o trabalho cibernético com Stafford Beer.
O que o Vale do Silício significa para você?
É uma combinação de fundos de risco capitalistas, de pequenas empresas, mas também grandes multinacionais. Uma mistura de ideologias muito estranhas. Tem um lado muito neoliberal mas também outro lado quase humanitário, onde se fala da necessidade de resolver os problemas do mundo: a fome, a luta contra a mudança climática, e esta mistura entre o neoliberalismo feroz, clássico dos Estados Unidos, e o mais humano produziu uma ideologia que chamo de solucionismo.
Podem ser de esquerda, de direita, mas são todos solucionistas que apresentam o mercado como a solução ideal para todos os problemas do mundo sem pensar em respostas coletivas, sociais, públicas. Eles nunca falam do mercado. Falam de tecnologia, porque para eles ela é neutra.
É possível contrastar isto com um socialismo digital?
Mas, claro que sim? Escrevi muitas páginas sobre socialismo digital. Tenho também um ensaio muito longo que foi produzido em espanhol. É necessário repensar os erros do planejamento soviético neste campo porque acredito que esta é também a relevância do Projeto CyberSyn, que não se tratava de planejar a economia, mas de administrar empresas e processos socioeconômicos. Gerenciar é diferente de planejar.
O que é o projeto The Syllabus, desenvolvido para democratizar a informação científica para pessoas leigas, mas que não possuem conhecimento desenvolvido?
O The Syllabus é um projeto que tem como objetivo mostrar que o setor público está perdendo tempo. Porque se eu, com uma equipe muito pequena, posso construir uma plataforma para organizar o conhecimento de forma diferente da estrutura ou visão do Google, eles também poderão fazer isso. Os governos, os ministérios da Educação... A minha motivação inicial com este projeto foi mostrar que outro mundo digital é possível.
Dentro das grandes corporações, onde você situa as Big Techs?
Elas oferecem infraestruturas essenciais para o resto da economia. Portanto, eu as descrevo como uma metainfraestrutura para a sociedade. O Vale do Silício produz novos meios de produção, digitais, mas o resto da economia não pode continuar sem estes meios porque é o modo de produção mais eficiente.
Os imperativos do capitalismo concorrencial impõem a redução dos custos e então temos de introduzir a inteligência artificial, a computação em nuvem, o 5G, o microchip. O Pentágono, por exemplo, não pode confrontar a China sem envolver o Vale do Silício. Há um ano criou o cargo de chief techonology officer ou chefe da inteligência artificial.
Que explicação daria às pessoas comuns sobre a IA em perspectiva para a humanidade?
Penso ser um erro falar de Inteligência Artificial em geral. É como falar sobre economia. Existe uma economia popular, uma economia monopolista, uma economia de mercado, e cada setor tem os seus lados positivos e negativos. Hoje, a IA que temos é muito neoliberal, intimamente ligada aos imperativos capitalistas do Vale do Silício.
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“Outro mundo digital é possível”. Entrevista com Evgeny Morozov - Instituto Humanitas Unisinos - IHU