Professor reconhece o ressurgimento do lulismo como resposta às forças fascistas, mas observa que esse é outro lulismo, com avanços e novos desafios
Se o segundo turno das eleições presidenciais foi cercado de tensão e medo, se o período de transição foi de dúvidas e incertezas, a festa da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter lavado todas essas nuvens com esperança. Pensar naquele mar de gente na frente do Palácio do Planalto é como corporificar a afirmativa do professor Moysés Pinto Neto: “a eleição de Lula foi o maior levante popular do Brasil contemporâneo pela via do voto”. Em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele observa este momento como o fim de um ciclo. “Certo é que os muitos povos brasileiros se insurgiram pela tática mais eficaz para o momento, e ela era o voto. Vencemos não apenas uma eleição, mas o maior levante organizado do inimigo, uma fusão altamente financiada e violenta entre poderes pastoral, militar, econômico, rural e policial no Brasil”, avalia.
E quando um ciclo se fecha, outro se abre. Para Moysés, é uma nova fase do lulismo. “O lulismo se reergueu no dia em que Lula saiu da prisão e, sobretudo, quando teve as absolvições. Ali, foram impressionantes a resiliência e a capacidade de mobilização lulista. Mesmo com um grande esforço midiático, foi impossível para a terceira via se impor”, observa. Mas se engana quem pensa que essa é uma reedição do lulismo de 20 anos. “Hoje, o lulismo é bem distinto daquele anterior – e Lula terá que conversar com muito mais gente para conseguir ampliar o movimento”, ressalva.
Pois é justamente neste movimento que residem, para o professor, os maiores desafios do novo governo. Que movimento é esse? Segundo Moysés, é como se os levantes de 2013 e toda a onda de insurgência e surgimento de novas lideranças começassem a ser assimilados. “Novos quadros, como Anielle Franco, encontraram um espaço político aberto a partir da explicitação radical da aliança miliciano/policial/militar/econômica no Brasil”, exemplifica. Em outra frente, a ambiental, o lulismo desenvolvimentista do pré-sal, que flertava com o getulismo do passado, parece estar superado. “A entrada de Marina Silva como um nome relevante no governo pode abrir caminhos interessantes, sobretudo na possibilidade da chamada ‘economia verde’”, destaca.
O terceiro mandato de Lula tem, portanto, o desafio de assimilar a experiência do passado e os sinais dos tempos presentes, além de responder às forças fascistas que seguem presentes na sociedade brasileira. “A vantagem é que Lula conseguiu trazer para seu campo quase todo mundo – com exceção dos ogros e dos fascistas de sapatênis. O resto, constrangido pela destruição bolsonarista, já percebeu que terá que apoiar medidas populares, pelo menos por um tempo, para evitar ser corroído na história”, sintetiza Moysés.
Moysés Pinto Neto | Foto: arquivo pessoal
Moysés Pinto Neto é doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, tendo estudado no Centre for Research in Modern European Philosophy, na Inglaterra. É mestre em Ciências Criminais e Especialista em Ciências Penais pela PUCRS e possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. É professor do PPG em Educação da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, além de lecionar nos cursos de graduação de Direito na Ulbra e diversas especializações em direitos humanos e violência.
IHU – Quais os três sinais a serem destacados dos discursos de Lula na posse e que devem dar o tom para o novo governo?
Moysés Pinto Neto – São muitos os sinais, mas entre os três principais eu colocaria a confrontação dura com o bolsonarismo, nomeando-o como fascista e genocida; a posição mais incisiva em relação ao meio ambiente e aos povos indígenas; e a crítica acirrada ao teto de gastos, chamado de “estupidez”.
Quando vejo Lula usando palavras tão incisivas, penso que há vontade política ali, o que você chama de “dar o tom”.
Quando me perguntam se vale a pena chamar Bolsonaro de genocida ou o bolsonarismo de fascismo, eu pergunto se vale a pena chamar um círculo de círculo ou um quadrado de quadrado.
IHU – Analistas apontam que a diversidade, na posse em 2003, era um discurso e que agora, em 2023, ela estava encarnada. Significa que o governo e a esquerda nacional compreenderam o que é diversidade nesses tempos?
Moysés Pinto Neto – Penso que a comparação vai além disso.
É verdade que o PT, na sua tradição “basista” que Celso Barros e outros têm destacado, sempre teve a participação ativa do Movimento Negro, do feminismo, da população LGBTQI+, do ambientalismo, entre outros. Mas, hoje, essas questões ganharam maior dimensão. Não se trata de apenas afirmar uma “diversidade” em termos de um neoliberalismo progressista em que a “representatividade” seria tudo – terminando pela substituição “meritocrática” dos brancos sem mudança nas peças e na estrutura.
Trata-se de um entrechoque com lógicas novas e emergentes entre a sociedade civil, oriundas das lutas urbanas, das lutas de gênero, raça e orientação sexual e, sobretudo, dos desafios cósmicos que colocam em xeque a lógica da branquitude ocidental.
Tudo isso, obviamente, em um contexto mitigado, negociado, mas ainda assim presente – nomes como Sonia Guajajara e Silvio Almeida, entre outros, outras e outres, traduzem-no.
Pertenço a uma esquerda que, embora nunca tenha negado a existência do apodrecimento democrático no Brasil, a ascensão fascista pela profusão de atividades de extrema-direita (entre elas, além do bolsonarismo/olavismo, a Lava Jato e o MBL), e, também, o golpe parlamentar de 2016, nunca aceitou a posição conspiracionista e autoritária do PT em relação aos movimentos autonomistas que explodiram em 2013. Hoje, podemos assistir seus efeitos em profusão.
Efeitos que passaram pelos rolezinhos, pelas ocupações das escolas e universidades e até chegaram a uma nova geração de lideranças, novos arranjos. Novos quadros, como Anielle Franco, encontraram um espaço político aberto a partir da explicitação radical da aliança miliciano/policial/militar/econômica no Brasil (e sua irmã, infelizmente, perdeu a vida em função da mesma luta).
A jornalista Anielle, irmã de Marielle Franco, é a nova ministra da Igualdade Racial | Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil
Ou, ainda, Erika Hilton, com a capilarização das lutas de gênero e suas transformações internas. A sociedade civil de 2022 não é a mesma que em 2003, e isso partindo de um conceito mais ou menos simplório como de “sociedade civil”.
Erika Hilton é vereadora em São Paulo e tem sua luta focada nas questões de gênero | Foto: Wikipédia
Colocar a palavra “diversidade” em pauta é sempre positivo em todos os contextos (mesmo no interior da malha neoliberal), mas, nesse caso, podemos entendê-lo em sentido mais estrutural: como uma diversificação de imaginários e projetos, ações e performances, enfim, outros mapas de sentido e referência que são introduzidos no poder. Nisso, parece ter havido uma mudança muito positiva em Lula no sentido de perceber a importância desses movimentos para a vitória eleitoral. E é isso que seu governo está, ao menos no momento, traduzindo.
IHU – Quais devem ser os principais desafios do governo no campo político, no campo econômico e no campo social?
Moysés Pinto Neto – No campo político, será o enfrentamento do fascismo. Infelizmente, é a tarefa mais urgente e precisa ser realizada para ontem. No campo econômico, será lutar em um tabuleiro diferente de 2003, com inflação alta mundial, economias beirando à recessão e o país burocraticamente destruído.
Além disso, boa parte dos agentes econômicos de peso hoje, sobretudo relacionados ao agro, são fascistas fanatizados. Não podemos subestimar o tamanho do impacto que o boicote inicial produzirá. O mesmo vale também, por exemplo, para os gestores do mercado financeiro que irão constantemente pressionar o governo a voltar ao neoliberalismo estrito dos governos Temer e Bolsonaro.
Lula precisará inventar alternativas. A boa notícia é que ele, de certo modo, ele já encontrou saídas imanentes – e talvez ainda encontre outras. Teremos muito que acompanhar, mas a entrada de Marina Silva como um nome relevante no governo pode abrir caminhos interessantes, sobretudo na possibilidade da chamada “economia verde” – aliás, um conceito bem problemático – e alavancar algum desenvolvimento em um cenário de penúria. Isso pode e deve ser articulado como política internacional. A vantagem é que, desta vez, a ideia parece estar sendo levada mais a sério por Lula do que foi no segundo mandato, quando, diante da descoberta do pré-sal, começou a abandonar um projeto ecológico diferente e sucumbiu ao discurso neogetulista e seus sonhos de “Brasil Grande”.
A aposta do mercado interno com a utilização de programas sociais, sobretudo o Bolsa Família, e a valorização do salário-mínimo já mostraram ter efeitos propulsores com a dinamização do mercado interno. Aí entra o desafio social, pois sabemos que foi exatamente neste ponto em que o lulismo estagnou em parte. Depois de alavancar a economia interna e permitir um salto na qualidade de vida dos mais pobres, o lulismo ficou sem resposta para a etapa seguinte, e com isso boa parte desses emergentes acabou depositando seus afetos e ideias políticas na religião ou, pior ainda, no bolsonarismo. O grande desafio social do lulismo será enfrentar e desconstruir o bolsonarismo popular.
IHU – Lula e seu novo governo têm desafios políticos, entre Câmara e Senado, mas como esses desafios surgem na relação com as chamadas elites? Embora o senhor já tenha comentado, gostaria que detalhasse qual deve ser o caminho para vencer as resistências político-sociais?
Moysés Pinto Neto – O “bolsonarismo de cima” não tem como ser enfrentado. Ele precisa ser pressionado, confrontado, até emergir uma resposta como efeito de uma negociação. Mas, com a parte da elite que sujou as mãos com a vida de 700 mil brasileiros, enchendo a cabeça de cloroquina e que hoje se comporta como “elite ogra”, não tem diálogo. A vantagem é que Lula conseguiu trazer para seu campo quase todo mundo – com exceção dos ogros e dos fascistas de sapatênis. O resto, constrangido pela destruição bolsonarista, já percebeu que terá que apoiar medidas populares, pelo menos por um tempo, para evitar ser corroído na história.
IHU – Pessoas que acompanharam a solenidade gritavam “não à anistia”, em referência a possíveis responsabilizações de agentes do governo anterior. Qual sua leitura dessa manifestação e de como Lula responde a ela? Em que medida isso corrobora com o ideal de pacificar o Brasil?
Moysés Pinto Neto – Lula foi muito feliz em retomar esse ponto, para o qual vinha insistindo desde a campanha.
Aliás, nos primeiros dias após as eleições já tinha gente com medo dizendo que Lula faria um grande acordão, com gente do Arthur Lira na saúde, com a suspensão do Ministério dos Povos Indígenas, com Marina Silva e Simone Tebet fora do governo, ou – ainda pior – Tebet no meio ambiente.
Mas Lula foi muito enfático nessas pautas – as demarcações indígenas, o ministério, as políticas contra o racismo, a centralidade das mudanças climáticas e a recusa da anistia. Esse Lula menos conciliador esteve presente o tempo todo e está bem claro, para a sociedade civil democrática, que é impossível varrer para baixo do tapete a catástrofe que foi preciso suportar.
Cada bolsonarista que praticou crimes precisa ser punido, sim, e, se pudesse sugerir algo, começaria criando uma nova Comissão da Verdade voltada para a pandemia.
A professora Deisy Ventura demonstrou em diversas manifestações que o governo brasileiro não foi negacionista, mas sim aplicou uma política deliberada de imunização de rebanho baseada no darwinismo social e que, portanto, pode ser acusado de genocídio. Não excluo a hipótese de que Bolsonaro venha a responder em Haia – tornando-se o segundo Milosevic do Tribunal Penal Internacional. Há interesse da comunidade internacional institucionalizada em rechaçar o crescimento do mal que ele representou e representa.
Além disso, o levantamento dos sigilos e a liberação das perseguições a servidores devem apresentar muitos crimes praticados ao longo da gestão. Que todos sejam punidos, inclusive e especialmente os militares que creem piamente na anistia de novo.
IHU – Já na posse, o governo assinou uma série de decretos e medidas provisórias. O que esses atos revelam?
Moysés Pinto Neto – Os atos revogados em geral tinham o mesmo padrão: a infiltração de forças antirrepublicanas na máquina pública com o intuito de desativá-la por dentro. Ricardo Salles, Abraham Weintraub, Damares Alves, Sérgio Camargo, Eduardo Pazuello, enfim, a tenebrosa equipe bolsonarista era composta por sujeitos cuja única finalidade era impedir o máximo possível, dentro ou fora da lei, que as atividades legais fossem levadas a cabo. É esse tipo de ato que está sendo revogado.
IHU – O que a massa de gente em Brasília na posse e uma maior delegação de líderes de governos estrangeiros revelam do novo governo Lula?
Moysés Pinto Neto – Um alívio. Alívio entre os brasileiros, por poder acordar do pesadelo, e alívio mundial, porque um dos principais nomes ativos da extrema-direita mundial – talvez o principal, pelo nível de grosseria e a relevância geopolítica do Brasil – está saindo do poder.
IHU – Quais serão as maiores fragilidades deste governo?
Moysés Pinto Neto – Como sempre, o “passo seguinte”. Depois da alavanca inicial, que tipo de transformação política e social vamos passar que não seja a repetição dos erros do petismo ao longo dos mandatos anteriores? Vou dar um exemplo. Se é verdade que Tebet foi cogitada para o meio ambiente, isso é bem preocupante. Afinal, ela representa originalmente o setor que é um dos principais causadores do problema. Quer dizer que seria mais uma “antiministra”? Não necessariamente. Mas quer dizer que o papel estratégico do meio ambiente pode ceder a outros – e hoje ele é questão de sobrevivência.
Ainda na mesma toada, podemos ler o gesto de Marina Silva ao supostamente “vetar” Tebet. Em vez da sua atividade inovadora pensada como uma ministra transversal, a autoridade climática precisou ceder ao arranjo conservador de poder porque sabe o peso da caneta. O que o Brasil pode e deve fazer é articular os ministérios para inventar novos arranjos coletivos. Por exemplo, juntar Ciência e Tecnologia, Agricultura, Integração Racial, Povos Indígenas, Educação e Meio Ambiente para elaborar um plano que reconheça as cosmotécnicas indígenas e quilombolas, quando possível, em escalas maiores, reduzindo também a pegada humana.
A boa notícia é que penso que hoje o Brasil está bem mais próximo de realizar isso do que há dez anos, por exemplo. Mas a má notícia é que parte da oposição, inclusive oposição social, é fascista.
IHU – Depois do que vimos na posse, podemos considerar que o lulismo se ergueu? E o bolsonarismo?
Moysés Pinto Neto – O lulismo se reergueu no dia em que Lula saiu da prisão e, sobretudo, quando teve as absolvições. Ali, foram impressionantes a resiliência e a capacidade de mobilização lulistas. Mesmo com um grande esforço midiático, foi impossível para a terceira via se impor – sobretudo pelo que foi o governo Temer. Entretanto, hoje o lulismo é bem distinto daquele anterior, e Lula terá que conversar com muito mais gente para conseguir ampliar o movimento.
Sobre o bolsonarismo, ele é uma incógnita, porque, de um lado, existe a emergência de um arranjo social simetricamente inverso ao bolsonarismo. Chamei isso, em um artigo que escrevi, de “liberação das forças destrutivas” em contraponto àquilo que vejo como mais potente no lulismo, que foi exatamente, por meio da renda, “liberar as forças produtivas” do imaginário social brasileiro. Ou seja, trata-se de algo muito forte, que mobiliza um contingente gigantesco de pessoas, coincidente com seu modo de ver e pensar o mundo, e que ressoa com poder. De outro lado, o movimento era muito dependente da figura personalista de Bolsonaro, como as eleições mostraram. Quem rompeu com ele, mesmo os principais nomes do MBL e do próprio bolsonarismo anterior, foram rechaçados totalmente. É difícil enxergar uma reorganização rápida do movimento, embora nem um pouco impossível.
A punição aos representantes também deve arrefecer o movimento. Os próximos seis meses devem ser devastadores para o bolsonarismo, na medida em que devem ser levantados os sigilos, e todo trabalho de ilegalidade sistemática, produzido pelos antiministros, deve ser exposto.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Moysés Pinto Neto – A eleição de Lula foi o maior levante popular do Brasil contemporâneo pela via do voto. Embora não seja um entusiasta do Estado, da soberania e mesmo de uma visão ortodoxa e institucionalista da democracia liberal, o certo é que os muitos povos brasileiros – reduzidos por uma ficção autoritária e fascista a um único povo cristão, heteronormativo, conservador e patriarcal – insurgiram-se pela tática mais eficaz para o momento, e ela era o voto. Vencemos não apenas uma eleição, mas o maior levante organizado do inimigo, uma fusão altamente financiada e violenta entre poderes pastoral, militar, econômico, rural e policial no Brasil.
Vencemos também a violação de todas as regras democráticas, do questionamento das urnas aos programas que favoreciam um candidato às vésperas da eleição, da profusão de mentiras à Polícia Rodoviária Federal descumprindo ordem judicial do Supremo Tribunal Federal para evitar votos a Lula no Nordeste. Foi uma vitória maiúscula, expressiva, uma vitória da mobilização social. Temos que aproveitar esta energia agora.