Médico e pesquisador analisa atual gestão e aponta a necessidade de pensar a recuperação da saúde em sentido mais amplo, a partir de uma ideia de intersetorialidade
“Como disseram os membros do Grupo Técnico de Saúde do gabinete da transição: um verdadeiro caos”. É assim que José Noronha, médico e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, classifica a gestão do governo de Jair Bolsonaro na área da saúde. Mas, apesar do cenário catastrófico, ele não se resigna. Mesmo reconhecendo que esse futuro governo tem o desafio de reformar o Estado e acumular muitos interesses dessa coalizão de forças políticas que acabou capitaneando, aponta: “Pelo que se anuncia na área econômica e para a saúde, acho que começaremos uma boa trilha. A jornada não será fácil, mas estou confiante que saímos do horror e para entrar na esperança”.
Ele destaca, na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, uma série de ações que devem ser tomadas pela nova gestão. E todas, essencialmente, passam por uma perspectiva de políticas integrativas, ampliando o senso comum de que a saúde é responsabilidade apenas do Ministério da Saúde. “O primeiro ponto é a intersetorialidade”, reitera. “Políticas econômicas e sociais são fundamentais para a melhoria da saúde de um povo. Trabalho, renda, casa, comida, transporte, educação, são absolutamente vitais e o componente saúde está presente nelas”, acrescenta.
Noronha amarra a recuperação da saúde a ações como a volta do desenvolvimento econômico e a erradicação da fome. Espera-se, segundo ele, um “retorno a um desenvolvimento econômico que faça aumentar a riqueza do país, que garanta trabalho e emprego e que distribua a riqueza”.
José Carvalho de Noronha (Foto: Fiocruz)
José Carvalho de Noronha é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestrado em Medicina Social e doutorado em Saúde Coletiva , ambos pela pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, onde coordena a iniciativa de Prospecção Estratégica do Sistema de Saúde Brasileiro "Brasil Saúde Amanhã". `Diretor do Cebes - Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Ex-Presidente da Abrasco - Associação Brasileira de Saúde Coletiva.
Confira a entrevista.
IHU – Que diagnóstico faz da gestão de Jair Bolsonaro na área da saúde?
José Noronha – Absolutamente desastroso. Em todos os sentidos. A começar pela sua proposta nuclear de governo: necropolítica, no sentido de [Achille] Mbembe em estado alargado. Culto da morte e da destruição que, no caso da saúde, teve uma das manifestações mais exuberantes.
Para Noronha, o livro Necropolítica (Nº1 Edições, 2018), de Mbembe, é nuclear para compreender o governo Bolsonaro.
Em suas próprias palavras, “o Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa”. A epígrafe de Arnaldo Antunes, que abre o memorável artigo de Renato Lessa publicado na Revista Piauí, intitulado “A Destruição”, sintetiza o projeto do Inominável: “O nome do destruidor é Destruidor, é o nome do destruidor”.
Vejamos os dois marcos celebratórios de sua necropolítica na saúde, em suas palavras:
1) “Arma é liberdade para vocês, povo armado não será escravizado.” Naquele ano, o Brasil ocupava a 14ª posição em taxas de mortes por homicídios entre 172 países. Duas vezes e meia a taxa do Iraque, quatro vezes a taxa do Peru, cinco vezes e meia a taxa de Cuba e 356 vezes superior à da Alemanha e de Portugal. 142 mil brasileiros morreram assassinados naquele ano, a maioria pretos e pobres.
2) “Brasileiro pula em esgoto e não acontece nada.” “Isso é uma gripezinha.” “Eu não sou coveiro.” “E daí, lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre.” Qual a aposta? Que morram velhos, imunossuprimidos, doentes. Que se produza a “imunidade de rebanho” defendida pelo ex-comunista Osmar Terra, membro do Ministério da Saúde “paralelo”, combatendo as medidas de isolamento e o lockdown segundo ele, lockdown e quarentena “não têm nenhum impacto”.
Ele também voltou a afirmar que a imunidade de rebanho “é como terminam todas as epidemias”. Naquela altura, a pandemia já havia ceifado 504 mil vidas e o deputado ficava calado com seu chefe ideológico (triste um ex-comunista virar bolsonarista, não?) quanto à eficácia da cloroquina.
3) Repeliu seus ministros de direita, alinhados a políticos de direita, alinhados política e ideologicamente com presidente a agirem até que recrutassem um general (Eduardo Pazuello) que calasse a boca e atendesse o Ricardo Barros na compra de vacinas (fracassada) e depois [Marcelo] Queiroga (que os cardiologistas sérios desse país bem conhecem) continuasse a garantir a omissão do Ministério da Saúde no combate à pandemia e no atraso de compras de vacinas que resultou, nas estimativas mais modestas, 400 mil mortes desnecessárias.
4) É preciso mais?
IHU – Além dos erros de gestão ao longo da pandemia, que outras áreas revelam o descaso e a falta de planejamento do governo na área da saúde?
José Noronha – A começar pelos cortes orçamentários em áreas políticas importantes do Ministério. O orçamento atual de 2022, nas estimativas do Conselho Nacional de Saúde, não previu quase 60 bilhões de reais para essas áreas críticas, em particular para o enfrentamento das consequências do represamento de atendimentos por conta da covid e para a cobertura das necessidades de compensação pela inflação na área da saúde. O projeto de lei encaminhado para o Congresso Nacional para 2023 não previu essas coberturas e está sendo encaminhado pela PEC da Transição para começar o ano com um acréscimo de 22,7 bilhões.
Além disso,
1) Houve uma omissão completa do Ministério na articulação federativa, fragmentando ainda mais a unidade do Sistema Único de Saúde – SUS que foi minimizado pela articulação política dos governadores.
2) O Programa Nacional de Imunizações, de prestígio internacional e de relevantes repercussões para o controle das doenças infecciosas, sofreu consequências da incapacidade administrativa do Ministério.
3) Programas específicos para mulheres, negros, indígenas, LGBTIAQP+ foram desestruturados.
4) O programa de saúde mental sofreu retrocessos na política antimanicomial. A rede hospitalar sob responsabilidade direta do Ministério foi completamente sucateada.
5) A assistência farmacêutica foi fortemente atingida pela desorganização e subfinanciamento.
6) A implementação de uma agenda de costumes retrógrada ficou manifesta na abordagem da conduta nos casos de abortamento e no conteúdo da caderneta da gestante.
Além de nada fazer para estabilizar o quadro de servidores, em grande parte precarizados. Há vários cargos de gestão ocupados por pessoas sem a devida qualificação técnica. Em resumo, como disseram os membros do Grupo Técnico de Saúde do gabinete da transição: um verdadeiro caos.
IHU – Quais os caminhos possíveis para rever esses déficits na saúde pública do Brasil?
José Noronha – A seguir, aponto algumas áreas críticas que necessitarão de particular atenção do novo governo.
O primeiro ponto é a intersetorialidade. A saúde, como expresso no Artigo 196 da Constituição Federal, é um “direito de todos e dever de Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Políticas econômicas e sociais são fundamentais para a melhoria da saúde de um povo. Trabalho, renda, casa, comida, transporte, educação, são absolutamente vitais, e o componente saúde está presente nelas. O retorno a um desenvolvimento econômico que faça aumentar a riqueza do país, que garanta trabalho e emprego e que distribua riqueza é nuclear, sendo preciso também que as políticas sociais sejam coerentes com o compromisso redistributivo em busca da redução das iniquidades sociais.
O combate à fome e à pobreza são essenciais. O presidente Lula expressa isso quando diz claramente: “Temos que colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda.”
E temos que estruturar uma forte política de desarmamento e combate à violência. Isto certamente deverá passar, como está fazendo o presidente Petro, da Colômbia, por uma profunda revisão da política de guerra às drogas. E devemos, ainda, ter ações não apenas no nível das macropolíticas, mas também em nível local. Unidades de Saúde têm que operar integradas com escolas, pontos de cultura, centros de assistência social, unidades de controle ambiental, como exemplos.
O segundo ponto é um grande desafio: as tensões nas relações entre o público e o privado na intermediação do financiamento e na prestação dos serviços de saúde. É gigantesca a iniquidade no setor privado e a captura de recursos físicos, humanos e, até mesmo, ideológicos. Isso cria enormes obstáculos ao fortalecimento da oferta pública, inclusive prestada por agentes privados para a população não vinculada aos planos de saúde.
O terceiro ponto é a distribuição da oferta e acesso de serviços à disposição do SUS. Há déficits importantes de oferta, sobretudo em serviços de alta complexidade, e a má remuneração de prestadores públicos ou privados pelos serviços compromete sua expansão e qualidade dos serviços. Por exemplo, cerca de metade das internações de casos menos complexos são feitos por santas casas e hospitais filantrópicos que poderiam ser parceiros importantes para a garantia do acesso de uso. Uma parte importante da oferta consiste em hospitais de pequeno porte cujo papel no atendimento deve ser repensado.
Em quarto lugar, é preciso garantir um financiamento adequado de fontes estáveis e sustentáveis e que se avance progressivamente no volume de recursos à disposição do setor público. Hoje, os gastos do governo atingem 3,8 % do PIB, valor irrisório comparado com a média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, de 6,5% e, sobretudo, com a de países com sistemas mais equitativos como o Reino Unido, 8% ou França, 9,3%.
Em quinto lugar, é preciso rever as relações entre a União, estados e municípios na organização e gestão do SUS, sobretudo se considerarmos as diferenças em tamanho, distância, população, problemas de saúde e oferta de serviços dos entes subnacionais.
Em sexto lugar, é preciso fazer com que a assistência farmacêutica seja finalmente incorporada ao SUS. A Conta Satélite da Saúde de 2019 revela que 93% dos gastos com medicamentos são das famílias. E onera particularmente as famílias de baixa renda. Ridícula e lamentável a cobertura pública.
Em sétimo lugar, é preciso rever a questão do serviço público em geral e no SUS, em particular. A multiplicidade de arranjos administrativos contribui para aumentar a fragmentação do cuidado: administração direta, organizações sociais, fundações públicas e privadas de apoio, empresas estatais; carreiras distintas de profissionais em cada modalidade e em cada ente federado requerem um equacionamento progressivo para a garantia de serviços adequados às populações.
Em oitavo lugar, é preciso haver um adequado investimento aos desafios da chamada “saúde digital” e dos sistemas de informação e integração dos megabancos de dados que facilitam a integração e coordenação dos cuidados.
Em nono lugar, temos que ter uma rearticulação das redes de pesquisa e inovação no campo da saúde e o impulso e articulação do complexo econômico da saúde, industrial e de serviços como motor do desenvolvimento e da geração de empregos.
IHU – Pelas informações e movimentações da área na equipe de transição, por que caminhos o novo governo Lula parece estar seguindo? Como avalia esse caminho?
José Noronha – Penso que o horizonte é alvissareiro. Mas, como salientou o presidente Lula, não será um governo do PT nem das forças de esquerda. Portanto, é de se prever muita disputa pelos espaços que enumerei acima. Porém, pelo que foi anunciado na área econômica e para a saúde, acho que começaremos uma boa trilha.
A jornada não será fácil, mas estou confiante de que saímos do horror e para entrar na esperança. Para citar Silvio Almeida, estou confiante de construir um Brasil que nunca existiu. Venceremos!