Na rede pública, docente de Educação Física é remanejado para Mundo do Trabalho, professor de Biologia assume Matemática, ex-lojista se prepara para dar Administração.
A reportagem é de Luís Gomes, com colaboração de Duda Romagna, publicada por Sul21, 01-08-2022.
Em teoria, o Novo Ensino Médio, em vigor desde o início do ano letivo, incorpora à grade curricular novas disciplinas e permite o aprofundamento em itinerários escolhidos pelos alunos. Na prática, as escolas públicas da rede estadual do Rio Grande do Sul se mostram incapazes de oferecer opções, professores são obrigados a ministrar disciplinas para as quais não estão aptos e alunos deixam as escolas ainda mais despreparados para disputar uma vaga nas universidades. Tudo isso em meio a um problema crônico no ensino público: a falta de docentes.
A matriz curricular que instituiu o Novo Ensino Médio na rede estadual do Rio Grande do Sul foi publicada oficialmente pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc) em 30 de dezembro de 2021, por meio da Portaria nº 350. O documento dividiu o Ensino Médio em Formação Geral Básica — que comporta Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Ciências da Natureza — e em Itinerários Formativos, em que o estudante terá aulas voltadas para o desenvolvimento pessoal e profissional.
De acordo com a Portaria, as disciplinas de Arte, Educação Física, Ensino Religioso, Sociologia e Filosofia só serão ministradas em um único ano do Ensino Médio, com um período semanal. As disciplinas de História e Geografia serão ministradas duas vezes por semana no 1º ano e uma vez por semana nos 2º e 3º anos. Já as disciplinas de Biologia, Física e Química terão dois períodos semanais, mas apenas nos dois primeiros anos, não sendo ministradas no 3º ano.
Além disso, estabelece como novas disciplinas obrigatórias Projeto de Vida (dois períodos semanais em todos os anos), Mundo do Trabalho (dois períodos no 1º ano), Cultura e Tecnologias Digitais (dois períodos no 1º ano) e Iniciação Científica (dois períodos nos 2º e 3º anos).
Prevê ainda, a partir do 2º ano, oito períodos semanais em áreas de aprofundamento escolhidas pelo estudante, os chamados Itinerários Formativos. No terceiro ano, o número de períodos destinados ao aprofundamento curricular sobe para 14.
De acordo com a organização curricular estabelecida por meio das resoluções 364 e 365 da Seduc, os estudantes terão ao longo dos três anos de Ensino Médio 1.800 horas de Formação Geral Básica, composta por 15 componentes curriculares obrigatórios de quatro áreas de conhecimento: Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.
Além disso, terão outras 1.200 horas de currículo diversificado, em que poderão optar pelo Itinerário Formativo que desejarem. Estes itinerários são divididos em componentes obrigatórios (as disciplinas de Projeto de Vida, Mundo do Trabalho, Cultura e Tecnologias Digitais e Iniciação Científica), trilhas de aprofundamento curricular (divididas em duas áreas de conhecimento e um componente de formação técnica e profissional) e disciplinas eletivas.
O aprofundamento curricular consiste em priorização de disciplinas em duas das quatro áreas de conhecimento oferecidas na rede: Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Cada uma dessas áreas é dividida em duas temáticas, sendo cada temática novamente dividida em três trilhas de aprofundamento, totalizando 28 possibilidades [ver quadro abaixo], das quais cada estudante deverá escolher duas ao longo do Ensino Médio. Além das áreas de conhecimento, o estudante terá disciplinas de educação profissional, que inicialmente serão oferecidas pela rede estadual em quatro áreas: Informática, Administração, Eletrotécnica e Agropecuária.
Itinerários formativos oferecidos na rede estadual de ensino (Foto: Reprodução | Seduc)
No entanto, os alunos não terão todas essas possibilidades em cada escola estadual. No caso da Presidente Roosevelt, escola-piloto visitada pela reportagem, é oferecida apenas a opção de formação em Administração. A Seduc realizou uma consulta pública entre os meses de março e abril com o objetivo de definir quais itinerários formativos serão desenvolvidos em cada escola em 2023.
O Novo Ensino Médio prevê ainda a ampliação progressiva da carga horária, das atuais 1.000 por ano letivo para 1.400 horas em cinco anos. Isso significa que a carga horária diária deverá passar das atuais cinco horas para sete.
Geovana Rosa Affeldt, diretora Escola Estadual de Ensino Médio Tuiuti, de Gravataí, que possui cerca de 450 alunos de Ensino Médio divididos em nove turmas pela manhã e outras seis pela noite, avalia que a Seduc disponibilizou pouco tempo para as escolas se adaptarem aos novos currículos que entrariam em vigor neste ano.
“A nova base que nós estamos cumprindo neste ano, com os três componentes curriculares novos, foi passada para as escolas em dezembro de 2021 e já tinha que ser colocada em prática em fevereiro de 2022”, diz.
Contudo, por fazer parte do Grupo de Estudos em Políticas Públicas para o Ensino Médio (Geppem) da Faculdade de Educação (Faced) da UFRGS, Geovana já conhecia um pouco dos currículos que vinham sendo adotados nas chamadas escolas-piloto, que implementam o novo EM desde 2020. Se sentido “aflita” com a mudança iminente, ela passou então a estudar o tema a fim de garantir um “mínimo de organização” para sua escola.
A primeira medida que decidiu tomar foi pedir à Seduc professores para ministrarem as novas disciplinas básicas criadas para os primeiros anos: Projeto de Vida, Mundo do Trabalho e Cultura e Tecnologias Digitais.
“Eu fiz a tentativa de pedir esses professores para o governo do Estado, porque os professores não têm essa formação específica. Não existe professor que seja formado em Projeto de Vida, em Cultura e Tecnologias Digitais e em Mundo do Trabalho. A resposta que eu tive da Seduc é que eles negaram, justamente porque não tem”, conta Geovana.
A solução sugerida pela Secretaria foi que a diretora buscasse dentro da própria escola professores que tivessem o perfil adequado. Uma súmula encaminhada pela pasta indicava que esse perfil era de professores que estivessem aptos a “aprender a aprender”.
Geovana foi então à “caça” desses professores. Identificou um perfil que imaginava aproximado para a disciplina de Cultura e Tecnologias Digitais em uma professora que ministrava Informática no curso técnico noturno em Logística oferecido pela Tuiuti. Já a professora que ministra Administração no mesmo curso técnico ficou encarregada de Mundo Trabalho. Projeto de Vida ficou a cargo de outra que já ministrava a disciplina desde que ela foi implementada no Ensino Fundamental, há alguns anos.
“Ela, por conta dela, fez uma pós-graduação e alguns cursos de extensão nessa área para entender como funciona esse novo componente curricular e dar o mínimo de qualidade para ele. Mas é bem complicado dar conta disso, o mínimo que o Estado deveria ter fornecido são os professores para esses componentes curriculares”, diz a diretora.
Coordenadora do Geppem, Mariângela Bairros explica que o grupo foi criado em 2017 justamente para acompanhar a implementação do Novo Ensino Médio no Brasil. Ela lembra que essa foi uma das primeiras propostas aprovadas pelo governo de Michel Temer, em 2016. Inicialmente, foi criado pela Medida Provisória 746, que viraria a lei 13.415 em fevereiro de 2017.
“A Lei 13.415 estabeleceu para os três anos do Ensino Médio supremacia do Português, da Matemática e da Língua Inglesa. Então, hoje nós temos todo um empenho de priorizar, ainda que faltem quadros, essas disciplinas e distribuir os professores a partir das suas cargas horárias dentro desses itinerários formativos, destas disciplinas”, diz.
Contudo, como a responsabilidade de reorganizar o quadro funcional ficou a cargo das próprias escolas, Mariângela diz que pode-se perceber uma série de conflitos e dificuldades, notadamente no caso de professores que não tinham o “perfil” desejado pela Seduc para as novas disciplinas oferecidas. “Nós temos acompanhado no nosso grupo de pesquisa coisas trágicas. Professora de Educação Física que trabalhava dentro de uma proposta deslocada também para o Mundo do Trabalho, com grandes dificuldades de implementar”, exemplifica.
Um dificultador para o processo, na opinião de Geovana Affeldt, é que o Novo Ensino Médio foi implementando em meio a uma crônica falta de professores na rede estadual de educação. A professora que assumiu Culturas e Tecnologias Digitais na Tuiuti engravidou neste ano. Como é uma gestação de risco, precisa, com frequência, tirar licenças para repousar. A escola não tinha outros docentes disponíveis com “perfil adequado”.
“Todo ano é a mesma coisa, mas se agravou nos últimos anos porque não temos mais quem nos dê apoio. As escolas do Estado já não têm mais biblioteca há alguns anos. Quando esse governo assumiu, ele tirou todos os professores das bibliotecas com a justificativa de que eles estavam em desvio de função. Aí seria um professor que poderia dar apoio e não tem. Não tem professor itinerante, aquele que poderia substituir. Não tem rede de apoio para o aluno de inclusão”, diz.
Com isso, a responsabilidade por identificar os perfis adequados que a Seduc colocou sobre os ombros das direções resultou em uma tentativa de encaixar professores que perderam carga horária de disciplinas reduzidas nos vazios criados pela falta de docentes.
“Sobrou dois períodos do professor de Educação Física, que perdeu carga horária, então, para ele não perder, vai pegar qualquer uma dessas [novas disciplinas], porque qualquer um dá, já que não tem formação específica. Então, o que tem acontecido é isso, eu tenho uma carga horária no noturno que eu não tive professor e o de Educação Física pegou para completar a carga horária. Sem formação, mas é daquele jeito, fazendo o que dá, da melhor forma que ele consegue”, relata a diretora.
A professora Marina Vargas ministrou períodos de Artes durante 18 anos na rede estadual. Atualmente na escola Walter Jobim, em Viamão, ela assumiu neste ano a disciplina de Mundo do Trabalho no 1º ano do Novo Ensino Médio. Ela diz que a maior dificuldade não foi iniciar o ano letivo, uma vez que a formação, ainda que rasa, e a minuta permitiram que ela desse a largada de uma forma minimamente organizada. As dificuldades reais surgiram, conta, a partir do meio do ano. “A gente tá meio no escuro, vai atirando e vendo o que vai dar certo, o que que não vai dar”, diz.
Ela conta que, antes de assumir a disciplina, conversou com uma colega de uma escola-piloto, que já tem turmas encerrando do 3º ano do Novo Ensino Médio, e a questionou sobre como estavam lidando com a questão da continuidade dos conteúdos nas novas disciplinas. “Ela disse que não tem continuidade. De um ano para o outro, eles veem o que foi importante, o que não foi e desmembraram. O que aconteceu agora, no terceiro ano, eles pegaram coisas do primeiro e do segundo ano que a Seduc mandou dar como sendo um módulo, desmembraram em dois e mandaram dar agora no terceiro de novo a mesma coisa. Ela é professora de Matemática, então mandaram colocar, por exemplo, estatística. Ela trabalhou todo um conceito de estatística. Chegou no segundo ano, estatística II. Mas o que é para fazer? ‘Tu pega um pouquinho do primeiro e aprofunda’. Aprofundou. Chegou no terceiro não tinha mais o que dar, mas tá lá estatística de novo. Aí ela tá pegando tabela de lucro de empresa, de estatal, de privado, estudando e tentando dar uma realidade para o aluno entender”, relata.
Ao fim e ao cabo, Marina avalia que recai sobre os professores a responsabilidade de procurar conteúdos para ministrar nas novas disciplinas. “Eu queria falar com eles sobre profissões que já deixaram de existir em decorrência das novas tecnologias, para tentar fazer com que eles pensem sobre isso. Eu fui pesquisar sobre isso e tive que trazer vídeos que foram feitos por instituições de ensino superior privadas de São Paulo e Minas Gerais. A gente está buscando até materiais de instituições privadas de outros Estados para poder usar com eles, vídeos que tem na internet”, relata.
Professor de História na escola estadual Monsenhor Leopoldo Hoff, localizada no bairro Chácara das Pedras, em Porto Alegre, Jardel Azambuja de Borba Cunha explica que o Novo Ensino Médio também mexeu profundamente com a configuração de disciplinas básicas. No seu caso, significou um expressivo aumento de carga horária.
“Eles diminuíram a hora período, que era hora relógio 60 minutos, para 50 minutos. E aí isso acarretou num aumento da minha carga horária. E aí como eu sou o único professor de História da escola, tive ampliação. Por exemplo, até o ano passado, eu não tinha todas as turmas. Esse ano, eu tenho todas. São dois sextos, dois sétimos, dois oitavos, dois nonos, três primeiros, dois segundos e dois terceiros. Então, do fundamental ao médio, eu tenho todas as turmas”.
Jardel pontua que, para enfrentar a falta de professores e aproveitar as “sobras” de horários criadas pela redução de períodos de outras disciplinas, a Seduc também passou a permitir que docentes da área das ciências exatas possam ministrar Matemática, que teve carga aumentada. No caso da Monsenhor Leopoldo Hoff, períodos da disciplina foram assumidos por uma professora de Biologia, por exemplo.
Por outro lado, ele avalia que a própria ampliação da carga horária de Português e Matemática é algo que pode ser problematizado, pois, em sua avaliação, amplia o abismo entre as escolas públicas estaduais e a rede privada.
“O que parece é que a formação é cada vez mais para um aluno que saiba contar o troco e dizer: ‘por favor, em que posso lhe servir’. Com todo respeito a todas as profissões, tu pode ser gari, tu pode ser garçom, mas desde que tu tenha escolha, né? Eu quero ser isso. Pronto. O que acontece, na realidade, é que as pessoas são empurradas e cada vez mais entrarmos numa espiral, um treinamento para isso mesmo. É uma objetivação dessa coisa que ela é disfarçada em ciclos formativos, como se alguém fosse escolher. É como eu te convidar para um buffet e te dar à la minuta. Tu vai escolher o que tu quer comer, desde que seja isso aqui”, diz.
Procurada pela reportagem, a Seduc nega que professores tiveram perda de carga horária e diz que os docentes serão alocados para lecionar novos componentes curriculares quando for compatível com a “formação profissional e vocação deles”.
“É importante ressaltar que os novos componentes curriculares que compõem os itinerários formativos abrangem as quatro áreas do conhecimento do currículo, contemplando assim o Referencial Curricular Gaúcho do Ensino Médio (RCGEM) e as habilidades previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Serão ofertadas, pela Seduc, formações específicas dos novos componentes curriculares aos professores”, diz nota da Secretaria.
Presidente interino do Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul (CPERS), Alex Saratt pontua que o sindicato já avisava antes da implantação do Novo Ensino Médio que a reorganização curricular resultaria em professores de História, Geografia, Filosofia e Sociologia sendo deslocados para outras áreas em razão da perda de carga horária e que um dos saldos disso seria uma “sobra” de professores dessas áreas.
“Mudou o currículo, o cara tem que pegar uma segunda escola para completar a carga horária. O que estava na segunda escola perde carga horária. Nós chegamos numa situação em que a coordenadoria de educação estava chamando os professores que não fechavam 20 horas ou não fechavam 40 horas para que esses professores pedissem demissão. ‘Ah, tu não pode ter 30 horas, tem que ter 20 ou 40’. Mas a escola precisa de 30 horas”, diz.
Saratt avalia que as mudanças em curso tendem a resultar em uma desprofissionalização da carreira docente. “Há uma dificuldade tremenda dos professores de se adequarem num espaço de tempo muito curto, o CPERS fez várias sugestões junto à secretaria de educação, à secretária Raquel Teixeira, pedindo o adiamento da implantação do Novo Ensino Médio”, diz.
Em 30 de maio, o CPERS publicou um levantamento amostral sobre a falta de professores com 316 escolas da rede estadual de educação. Nestas escolas, foi identificada a falta de 509 educadores, sendo 176 professores, 146 especialistas e 197 funcionários.
Questionada sobre o número o número de vagas em aberto na rede estadual, a Seduc diz que as solicitações das escolas referentes à falta de professores estão sendo atendidas por meio de contratações emergenciais e pela ampliação da carga horária dos docentes. Segundo a pasta, a avaliação dos quadros de recursos humanos é constante e as demandas são supridas por meio do banco de cadastro reserva.
Paralelamente, a Seduc diz que recebeu a autorização do governo para realizar um concurso público com 1,5 mil vagas a serem distribuídas nas 30 Coordenadorias Regionais de Educação (CREs). A previsão é de que o edital de abertura seja publicado nas próximas semanas, com o concurso sendo homologado após as eleições e que as nomeações ocorram em 2023.