O Programa Médicos pelo Brasil e as consequências do avanço dos modelos semiprivatizantes ou desestatizantes da saúde pública. Entrevista especial com Heleno Corrêa Filho

Foto: Jornal Médico

30 Setembro 2019

A Medida Provisória nº 890, de 2019, que institui o Programa Médicos pelo Brasil em substituição ao Programa Mais Médicos, criado no governo Dilma, “tem bons aspectos” quando trata da formação médica e “corrige defeitos do programa anterior”, afirma Heleno Corrêa Filho, médico e diretor do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes. De outro lado, pontua, a nova proposta “restringe a população assistida, restringe as áreas populacionais que seriam cobertas pela proposta, restringe o financiamento e tem uma proposta muito ruim acoplada, que é a criação de agência”.

Na avaliação dele, o ponto mais problemático da MP proposta pela Presidência da República é a criação da Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Adaps, que é vista como um “cavalo de Troia”. “A MP 890 colocou um tremendo ‘cavalo de Troia’ dentro do Programa Médicos pelo Brasil, que foi a criação de uma agência privada para privatizar toda a atenção primária brasileira e, com isso, destroçar o Sistema Único de Saúde - SUS. Esse ‘cavalo de Troia’ se chama Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde”, diz. De acordo com Heleno Corrêa Filho, se a criação da Adaps for aprovada, será possível “abrir, em hospitais públicos, uma porta para atendimento de convênios”. Para ele, isso “significa, na prática, que vai se dar preferência por atender as pessoas que pagam convênio em lugar daquelas que não possuem convênio”. E acrescenta: “Criar agências é uma maneira de tirar do domínio público e do controle social qualquer iniciativa em relação à saúde pública”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, o médico explica as implicações da MP n° 890, os conflitos existentes entre a lei de responsabilidade fiscal e a lei social, e reflete sobre a importância da formação de médicos de família e comunidade e de outros quadros profissionais para garantir a presença do SUS nos locais em que não há assistência à saúde.

Heleno Corrêa filho (Foto: Divulgação)

Heleno Corrêa Filho é médico formado pela Universidade de Brasília – UnB, doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo – USP e é livre docente em Epidemiologia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Trabalhou como sanitarista na rede de serviços do estado de São Paulo e atualmente leciona na UnB.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line — Por que, na sua avaliação, há um desmonte das políticas públicas de saúde? Desde quando e por que esse desmonte teve início?

Heleno Corrêa Filho — Em primeiro lugar, a saúde pública brasileira vem num processo de construção e sempre com resistência, porque, depois que a Constituição de 1988 foi promulgada, o Congresso Nacional teve momentos contraditórios. De 1990 até 2013 houve iniciativas favoráveis e iniciativas desfavoráveis ao SUS. Uma das iniciativas desfavoráveis mais fortes e contrárias ao SUS foi a inserção, por contrabando, de um artigo na redação da própria Constituição, o qual determina que é prioritário pagar juros bancários e, depois, cuidar da seguridade social. Esse artigo foi inserido na Constituição, sem que fosse votado nas comissões constituintes da época, pelo então ministro [Nelson] Jobim, que depois foi ministro da Defesa do governo Lula. O próprio ex-ministro confessou que o artigo foi obra dele, mas não disse quem mandou acrescentar esse artigo à Constituição. Essa mudança constitucional determinou que medidas de caráter fiscal do Estado — beneficiando especialmente as decisões do Banco Central — tivessem prioridade em relação à saúde, educação, justiça, segurança e tudo aquilo que interessa a quem paga imposto.

Essa traição inicial à própria Constituição deixou a porta aberta para uma guerra de posições que, no ano de 2013, repercutiu no Brasil. O mundo inteiro viveu uma crise dos países capitalistas centrais, que começaram a cortar benefícios que tinham conquistado depois da Segunda Guerra Mundial. Essas medidas atingiram fortemente países como a Grécia. Vimos muitas notícias de aposentados gregos perdendo o recebimento das suas aposentadorias, se suicidando na porta dos bancos, queimando-se em praça pública etc. No Brasil, essa situação chegou em 2013, com a versão das chamadas “revoluções coloridas” que, com muita força, questionaram o Estado enquanto provedor do Estado de bem-estar social em favor de uma instituição de políticas de austeridade. O que se chama de austeridade, na verdade, é a retirada de todas as condições do Estado de bem-estar social. Quem atacou, a partir de 2013, a chamada corrupção do Estado, entrou nessa conversa e eu não posso acusar apenas a ultradireita de ter feito isso porque, no campo da esquerda e dos defensores da saúde pública, muita gente entrou nessa onda dizendo que finalmente as revoluções coloridas iriam chegar e acabar com a corrupção. Na verdade, elas acabaram, a partir de 2016 até 2019, com o Estado de bem-estar social. Resumindo: o desmonte das políticas públicas de saúde vem numa esteira mundial que, no Brasil, se intensificou a partir de 2013 e se concretizou em 2016, com um golpe de Estado.

IHU On-Line — O senhor tem dito que há um desmonte específico nas áreas de saúde mental e segurança alimentar. Em que consiste, na prática, o desmonte dessas duas áreas?

Heleno Corrêa Filho — A saúde mental e a segurança alimentar e nutricional foram as duas áreas em que o Brasil, como nação, mais avançou em relação ao mundo inteiro. No planeta, os olhos estavam voltados para os governos social-democratas e de coalizão que reduziram a fome e retiraram pessoas da miséria — quem viveu no país nesses anos viu o desaparecimento virtual dos mendigos pedindo esmola na rua, com crianças desnutridas no colo. Agora, no início de 2019, estamos vendo isso novamente: na semana passada, em Brasília, vi uma senhora com uma criança suja, sem tomar banho, pedindo esmola, numa cena semelhante ao que se via nas fotografias de Bangladesh nos anos 1990.

A segurança alimentar e nutricional ficou famosa porque o Brasil implantou o Programa Fome Zero. Quem for a Roma, no prédio da Organização Mundial para a Agricultura e Alimentos – FAO, verá muitas fotografias do Brasil sobre o Programa Fome Zero e isso não é obra do último administrador da FAO, que foi um brasileiro; é apenas uma continuidade da admiração do mundo pelos programas de segurança alimentar que o Brasil implantou junto com políticas genéricas como o Programa Bolsa Família. Essas políticas tiveram uma forte repercussão na diminuição da diarreia, na diminuição da mortalidade por doenças transmissíveis e por desnutrição. Quem trabalhou e trabalha no serviço de saúde vivenciou isso.

Saúde mental

Na área de saúde mental, como o povo brasileiro é pobre e não tem condições de pagar serviços asilares de saúde mental, houve uma redução dos asilos e das prisões psiquiátricas em favor da abrangência de programas vinculados à rede de atenção à saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS, os quais também receberam ataques muito fortes de médicos ligados aos hospitais psiquiátricos, que ganham dinheiro com isso e que perderam, nos últimos 30 anos, uma política asilar e carcerária em relação à doença mental. O Brasil era liderança em relação a essas duas políticas e por isso elas são alvo de contra-ataque.

IHU On-Line — Recentemente a Presidência da República editou a Medida Provisória n° 890, para instituir um novo Programa Mais Médicos, chamado Programa Médicos pelo Brasil. Como avalia essa MP e em que aspectos o novo Programa Médicos pelo Brasil proposto pela MP 890 se diferencia e se aproxima do Programa Mais Médicos instituído no governo Dilma?

Heleno Corrêa Filho — Em primeiro lugar, falo como vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes, que sempre apoiou criticamente a iniciativa do Programa Mais Médicos implantado no governo Dilma. Esse apoio crítico custou ao Cebes o desamparo e o desfavor na hora em que a instituição procurou políticas públicas de financiamento para pesquisa e estudos na área da saúde pública. O Cebes nem por isso se retraiu e continuou criticando e apoiando o Programa Mais Médicos naquilo que ele tinha de importante, que era levar a assistência médica a locais remotos e distantes do Brasil.

Esse apoio crítico significava que criticávamos algumas características do Programa, dentre elas a falta de vínculos trabalhistas, a falta de uma estrutura para profissionais de outras categorias, como enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes públicos de saúde. Por outro lado, o programa tinha aspectos positivos muito fortes, como a extensão de cuidados de saúde a locais onde eles jamais haviam chegado, como aldeias indígenas, distritos sanitários indígenas, lugares onde nenhum brasileiro que mora na região urbana jamais vai. Assim, o Programa Mais Médicos tem o mérito de ter levado assistência a mais de 50 milhões de brasileiros que nunca tinham visto um médico ou nunca tiveram acesso a cuidados.

O lado negativo foi aproveitado pelo governo golpista de Michel Temer e pelo novo governo eleito para dizer que o Programa Médicos pelo Brasil corrigia as falhas do antigo programa e, de fato, o governo fez uma proposta que inclui vínculos empregatícios, salários estáveis e programas vinculados a um aprimoramento permanente com supervisão. Entretanto, a MP 890 colocou um tremendo “cavalo de Troia” dentro do Programa Médicos pelo Brasil, que foi a criação de uma agência privada para privatizar toda a atenção primária brasileira e, com isso, destroçar o Sistema Único de Saúde - SUS. Esse “cavalo de Troia” se chama Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde – Adaps.

IHU On-Line — Por que a Adaps será prejudicial na sua avaliação?

Heleno Corrêa Filho — Essa agência será tocada por administradores egressos de programas de saúde pública do RS, que classifico como os “Cabo Anselmo” da saúde pública. Esses traidores da saúde pública estão criando, com o Programa Médicos pelo Brasil, a abertura de uma segunda porta nos hospitais públicos para a colocação de características privadas na administração da agência que, basicamente, exclui qualquer possibilidade do controle social. Esse programa vem em desfavor da possibilidade de organizar o SUS. Se passar, levaremos décadas para voltar a construir um sistema, se é que conseguiremos algum dia.

IHU On-Line – O que seria uma alternativa à criação da Adaps?

Heleno Corrêa Filho — O modelo que temos, que é o modelo da extensão pública por fundações públicas de direito público nos municípios ou por fundações públicas de direito privado em algumas cidades ou capitais, ou até mesmo pelas transferências das chamadas Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público - Oscips e outras — que o Cebes critica muito —, visa alternativas paliativas, porque os municípios e os estados estão oprimidos por uma legislação que impede a extensão da saúde pública. Essa legislação foi criada no final dos anos 1990, no final dos governos de coalizão do PSDB: criaram uma lei de responsabilidade fiscal que favorece o pagamento de juros bancários e o que eles chamam de acúmulo de receita primária, e que desfavorece o pagamento do funcionalismo público, que é o que mais deve ser pago em saúde e educação. Não existe educação sem professor nem saúde sem médico, enfermeiro, psicólogo, nutricionista e agentes comunitários de saúde. Como a lei restringiu o pagamento de pessoal de forma sufocante, na prática, ela impediu a extensão do Estado de bem-estar social nos municípios e estados, levando os prefeitos e governadores e seus secretários a desejarem saídas alternativas.

Mas todas essas saídas evitam tocar no problema: há décadas estão tramitando no Congresso Nacional várias propostas de lei de responsabilidade social que punem administradores municipais e do estado que não fazem o que a Constituição determina em termos de saúde e educação. No entanto, essa lei de responsabilidade social não avança no Congresso porque não interessa ao lobby de banqueiros e rentistas que estão comandando as atividades legislativas no país.

Então, existe um conflito de que a forma de sair dessa camisa de força se vincula à possibilidade de votar uma lei de responsabilidade social e de não criar agências, porque essa é uma maneira de tirar do domínio público e do controle social qualquer iniciativa em relação à saúde pública. Esses modelos semiprivatizantes ou desestatizantes da saúde pública avançam na condição de conflito entre a lei de responsabilidade fiscal e a legislação social, mas é possível desdobrar outras alternativas por meio de pesquisas na área de saúde pública. Só que o dinheiro para essa área foi cortado.

IHU On-Line — A MP propõe ainda que hospitais universitários federais firmem convênios com planos privados. Para críticos, essa mudança abre caminho para a implantação da dupla porta de entrada nos hospitais universitários, e deve ampliar iniquidades e injustiças no atendimento. Como o senhor vê essa proposta?

Heleno Corrêa Filho — A agência pode contratualizar com entes privados em qualquer momento. Abrir a porta dos hospitais públicos para contratação privada é algo recorrente toda vez que alguém tenta destruir o SUS e privatizar ainda mais o orçamento fiscal da saúde. Não é novidade querer abrir dupla porta. Toda legislação nova que passa nessa área e que vem de propostas da área central do governo ou do próprio Congresso, em geral, embute o que se chama de um “jabuti”, uma possibilidade de contratação privada por entes públicos. Não é novidade quando, nas universidades, o Programa Future-se faz isto: por um lado, ele abre a porta para a contratação privada e, por outro, retira o financiamento público. Ou seja, praticamente se induz à privatização de temas como saúde e educação. Então, a dupla porta é tão nociva para as pessoas comuns que pagam impostos, que elas só percebem isso quando recorrem ao serviço público e ficam na fila esperando um atendimento que pode demorar dias, enquanto quem paga pelo atendimento é passado na frente. No entanto, pagar pelo atendimento não significa ser bem atendido, porque dentro do hospital a infraestrutura está tão ruim, tanto para quem pagou quanto para quem veio do sistema pré-pago — que é o SUS —, que todos terminarão sendo mal atendidos. A dupla porta é ruim para a estrutura pública e é perversa para quem paga. Mas as pessoas só descobrem isso quando são atendidas.

Convênios

A palavra convênio se refere a serviços de várias naturezas. Existem convênios públicos, quando são serviços complementares, que é o serviço público conveniado com a Santa Casa, por exemplo. Isso nada mais é do que o atendimento do SUS dentro da Santa Casa. Esses convênios já são uma prática desde os anos 1990 e esse tipo de convênio não tem agido contra o SUS. Tem havido, na verdade, um subfinanciamento dessa área e as Santas Casas vivem reclamando que elas prestam mais cuidados do que o dinheiro que recebem. Mas, do ponto de vista da privatização, abrir, em hospitais públicos, uma porta para atendimento de convênios significa, na prática, que vai se dar preferência por atender as pessoas que pagam convênio em lugar daquelas que não possuem convênio. Isso é uma discriminação de um público diante do outro. Os que defendem essa proposta dizem que não vai ser feita essa distinção, mas entregar a essas pessoas o juízo sobre quem deve ser atendido é muito perigoso, porque sabemos que eles vão fazer isso. E já estão fazendo nos locais onde a dupla porta foi implantada.

IHU On-Line – Onde, por exemplo?

Heleno Corrêa Filho — Temos notícias disso em hospitais públicos do estado de São Paulo e de hospitais da rede EBSERH (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares). Agora, especificamente, não tenho um exemplo para citar, porque essa é uma área de política e gestão na qual falta muita pesquisa e o dinheiro da pesquisa foi cortado. Então, até para saber onde as coisas acontecem e quando elas dão certo ou errado, precisamos de pesquisas, mas não temos essa informação por falta de relatórios mais detalhados.

IHU On-Line — O Programa Médicos pelo Brasil propõe suprir a demanda de médicos no país e formar especialistas em medicina de família e comunidade. Nos moldes em que a MP é proposta, isso será possível?

Heleno Corrêa Filho — A formação de médicos de família e comunidade é extremamente necessária, desde que ela se vincule aos objetivos do SUS e às necessidades do controle social e da saúde coletiva. Formar médicos para que o sistema privado contrate e privatize o serviço de atenção primária no país é traição, é descontrole e destruição do SUS. É possível usar essa formação tanto para o bem quanto para o mal e isso vai depender de quem dirigir o programa. O programa em si, em relação à formação médica, tem bons aspectos e, em relação à contratação médica, corrige defeitos do programa anterior, mas restringe a população assistida, restringe as áreas populacionais que seriam cobertas pela proposta, restringe o financiamento e tem uma proposta muito ruim acoplada, que é a criação de agência. Então, é aquela história: não adianta fazer pequenas propostas boas, e colocar um excelente glacê e uma cereja em cima de um bolo estragado.

IHU On-Line — Como a MP está sendo discutida pelos profissionais da saúde?

Heleno Corrêa Filho — Em primeiro lugar, a posição de instituições como o Cebes e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva - Abrasco, que sempre foram críticas e contrárias à privatização do SUS, não mudou: como porta-voz dessas organizações, percebo que a crítica à MP 890 foi feita pelo lado da agência e não da melhoria na contratação de médicos para o serviço de saúde. Mas a maior crítica talvez seja a de que, ao se falar em contratar médicos, não se fala em contratar outros profissionais de saúde e se joga a responsabilidade da atenção à saúde apenas para o médico. Esse era um erro já cometido no Programa Mais Médicos.

As outras associações da sociedade civil, como a Associação Médica Brasileira, a Federação Nacional dos Médicos e o próprio Conselho Federal de Medicina vêm recuando das posições iniciais de apoio irrestrito ao golpe de Estado de 2016. A primeira a recuar foi a Federação Nacional dos Médicos, que tem caráter sindical. Eles já apoiam a necessidade da formação multiprofissional em saúde e não estão com um discurso privatizante. A Associação Médica Brasileira começou timidamente a fazer uma proposta de formação multiprofissional, argumentando que o médico sozinho não resolve as questões de saúde. Ou seja, ela voltou a uma posição que já teve no passado e deixou de ser uma apoiadora irrestrita das medidas privatizantes, particularmente das mais recentes do último governo. O Conselho Federal de Medicina persiste com posições de ultradireita, mas é questão de tempo, porque os médicos como corporação vão perceber que vão pagar um custo muito elevado por ter apoiado iniciativas desse tipo.

Outras associações, como a que representa os agentes comunitários de saúde, que foram bajular o ex-ministro de Temer no final do seu mandato porque ele prometeu benefícios para essa categoria, já perceberam que estão fora do Programa. É questão de tempo para que eles se vejam forçados a adotar novamente uma posição crítica. Ou seja, gradualmente as associações que têm caráter corporativo ou que representam profissões isoladas vão se ver obrigadas a denunciar o caráter privatizante e restritivo das medidas da MP, principalmente pelo fato de ela focar especificamente na formação médica e por abrir a possibilidade de privatizar ainda mais o sistema, com a criação de uma agência que está fora do Conselho Nacional de Saúde e de outros conselhos.

IHU On-Line — Profissionais de que áreas deveriam ser contemplados pelo Programa?

Heleno Corrêa Filho — O Programa restringe o apoio às periferias das grandes cidades e grandes capitais brasileiras que têm bolsões de pobreza. Essa é uma característica perversa da MP, porque como ela foca em cidades e municípios distantes, distritos sanitários indígenas, locais de difícil acesso e populações extremamente vulneráveis, o critério que o IBGE tem para classificar bairros pobres de Porto Alegre, de São Paulo, do Rio de Janeiro, desaparece. Somente quem estava chegando e ficando nessas regiões eram os profissionais do Programa Mais Médicos. Como eles foram retirados, pois havia a acusação de que eram cubanos e incompetentes e outras coisas que o governo criou para desmontar o Programa, não há ninguém para atender nessas regiões e vai continuar sem ninguém, porque o governo atual não propõe atendimento na mesma extensão que o Programa anterior fazia. Então, trata-se de fazer mais do mesmo e em menos locais. Essa é a maior restrição desse Programa hoje.

IHU On-Line — Recentemente, o relator da MP no Congresso, o senador Confúcio Moura, propôs a reincorporação de cubanos do Programa Mais Médicos ao novo programa. Como avalia essa possibilidade?

Heleno Corrêa Filho — Acho positiva a contratação não só de cubanos, mas de médicos de qualquer país estrangeiro. Todos os países desenvolvidos têm programas de absorção de mão de obra médica para trabalhar quando não conseguem formar médicos e profissionais de saúde suficientes. Na Inglaterra, 30% da mão de obra médica é estrangeira, e mais de 15% da mão de obra médica dos EUA é estrangeira. Há mais de 50 anos esses países têm programas de revalidação de diplomas para atrair profissionais médicos. Existe uma denúncia, dos anos 1960, de que havia migração de cérebros para países desenvolvidos: países da América Latina e da África formavam, com muito sacrifício, médicos durante dez anos, médicos excelentes para o atendimento e para a pesquisa e, depois de formados, esses médicos migravam para o exterior. Temos inúmeras histórias assim.

O fato de o Brasil não ter um revalida compatível com o Mercosul, por exemplo, é uma vergonha. O fato de o exame de revalida ter sido impedido de funcionar durante muitos anos pela corporação médica é outra vergonha, porque o exame foi montado para reprovar todo mundo, exigindo perguntas de especialidades quando se pretendia aprovar médicos generalistas. Nesse sentido, o Programa Mais Médicos apresentou uma quebra dessa tradição e esse é um dos pontos positivos do programa que o governo atual destruiu.

IHU On-Line — O senhor já mencionou a necessidade de levar não apenas mais médicos para o interior do Brasil, mas o SUS. Quais são as dificuldades nesse sentido?

Heleno Corrêa Filho — As dificuldades são as mesmas de alocar profissionais em regiões remotas de qualquer natureza. Se você envia alguém para ficar isolado na selva, essa pessoa resiste durante um certo tempo, mas depois ela sai de lá. Tem que haver — e isso já é uma tradição na Amazônia — equipes móveis, os barcos de atendimento à saúde que a Marinha brasileira sempre manteve, os quais andam por regiões em que apenas a Marinha, a Aeronáutica e o Exército chegam. Quando os médicos cubanos foram enviados para distritos sanitários, eles tinham apoio e podiam sair de lá para fazer suas compras e levar suas famílias para as cidades próximas. Tem que oferecer estruturas para que o apoio social do profissional chamado interiorizado não seja uma prisão, e sim uma perspectiva de aprimoramento profissional.

Na carreira judiciária brasileira existiu isso; não sei se ainda existe. Mas os juízes de primeira instância, quando fazem concurso, são enviados para comarcas distantes do interior e quando crescem na carreira, podem ir para as grandes cidades. Poderia ser assim com a questão da medicina de família e comunidade, desde que se desse apoio, porque não se pode exigir que uma pessoa que não tem gosto por ficar no interior tenha que ficar ali eternamente. Então, a maior dificuldade é prover esse apoio e o antigo Programa Mais Médicos fez isso. O novo programa não informa se vai manter esse apoio.

IHU On-Line – O Programa Mais Médicos permitiu a criação de novos cursos de medicina em regiões que necessitam de atendimento e assistência à saúde. A criação desses cursos pode, de fato, garantir uma melhora na assistência à saúde nas regiões em que foram criados?

Heleno Corrêa Filho — A criação de cursos universitários em regiões desfavorecidas sempre melhora a região e modifica as relações de poder coronelísticas ou impositivas que existem, às vezes, por décadas nesses lugares. Então, criar novos serviços de educação superior é essencial e os governos anteriores, no período de 2003 a 2015, fizeram isso. Infelizmente, agora, nós estamos refluindo, porque várias dessas instituições criadas estão perdendo financiamento, como a Universidade Federal da Fronteira Sul - UFFS, entre outras, que estão ameaçadas de fechar e ser extintas.

Não se trata apenas de ter curso de medicina; levar cursos universitários onde não há é uma questão de desenvolvimento social e de desenvolvimento do país. Temos informação de que a China pretende criar, nos próximos 30 anos, 1.800 universidades — estou falando de universidades, não de cursos universitários isolados. Portanto, levar educação favorece em parte a assistência à saúde, mas isso por si só não garante a fixação dos novos profissionais na região: é possível educar 300 médicos novos numa região distante no Amazonas e 299 saírem de lá se não houver condições de trabalho para eles.

IHU On-Line — Alguns críticos à atuação dos planos de saúde afirmam que os planos não querem extinguir o SUS, mas pretendem controlar, ajustar e subordinar o funcionamento do SUS à lógica de acumulação privada. Como vê os avanços dos planos de saúde sobre o Estado e como esse avanço compromete o SUS?

Heleno Corrêa Filho — Os planos de saúde não têm esse poder; quem tem o poder de abrir as portas e viabilizar uma legislação que possa vender tudo é o Congresso. Boa parte dos 81 senadores, à exceção de uns dez de caráter popular, são empresários e têm interesse pessoal na privatização do sistema de saúde. Na Câmara dos Deputados, há picaretas ou lobistas que não são empresários, mas que defendem interesses e são pagos por pessoas que defendem o empresariamento do Estado. Temos um Congresso altamente desfavorável às políticas públicas; a parcela de senadores e deputados que defendem um Estado de bem-estar social é muito pequena. No caso do Rio Grande do Sul é notório o trabalho do senador Paulo Paim, que defende causas populares; é muito raro encontrar senador e deputado defendendo o Sistema Único de Saúde e a educação. Essa é uma condição desfavorável gerada a partir da composição política instalada em Brasília, mas que vem dos estados e das eleições dos estados.

Para poder melhorar isso, temos que ter movimentos nos municípios, especialmente no sentido de apoiar os secretários municipais para que eles encontrem saídas e não se deixem derrotar facilmente. É fundamental que eles não acreditem na atual proposta da Adaps, que foi gerada a partir de um modelo implantado em Brasília em janeiro de 2019. Essa agência é destinada ao fracasso e vai levar junto, no abraço dos afogados, os secretários municipais de saúde de todos os municípios brasileiros que aderirem a isso.

IHU On-Line — Qual é o desafio para conceber um sistema universal de saúde que assegure a sua viabilidade financeira?

Heleno Corrêa Filho — A primeira questão para garantir a viabilidade financeira do SUS é retirar a atual legislação que dá ao Banco Central a primazia para a condução da política fiscal. O Banco Central determina o quanto vai pagar de juros amanhã num comitê reunido hoje e define quem vai receber os juros. Esse negócio de “amarrar cachorro com linguiça” tem que ser cortado. Não podemos ter uma política fiscal subordinada ao interesse bancário. Enquanto o mundo inteiro está pagando taxas negativas de juros, aqui no Brasil o interesse é dizer que o Banco Central vai continuar pagando altas taxas de juros e, para isso, está retirando dinheiro da saúde e da educação. Essa história de dizer que o Brasil vive uma crise fiscal é uma questão do modelo do Banco Central, em que a população, o Congresso e quem paga imposto não têm nenhuma condição de gerenciar a política monetária do Estado. Dentro da questão da saúde, voltando à questão interna, nós temos que fortalecer a administração pública, principalmente dos prefeitos e secretários municipais de saúde.

IHU On-Line — Deseja comentar mais algum ponto da MP?

Heleno Corrêa Filho — Se retirarmos da Medida Provisória 890 a criação da Adaps, o governo perde o interesse nela, porque boa parte da motivação governamental para propor esta medida estava na criação de uma agência privatizante para o setor do SUS. Se retirar isso, o governo não tem tanto interesse — como não teve quando destruiu o Programa Mais Médicos — em propor novas medidas, como o programa que agora é chamado de Médicos pelo Brasil, que é essencialmente o antigo Programa Mais Médicos com algumas correções. O governo vai reduzir, definhar esse programa, vai focalizar só na profissão médica e vai esquecer que tem que levar cursos universitários de todas as profissões para as áreas mais pobres do Brasil. Então, há a possibilidade de que se a Adaps não for criada, o programa pode até melhorar, mas se a agência for criada, esqueça, o SUS acabou. Temos aí uma questão essencialmente política, que não depende de pesquisa nem da formação de novos profissionais, mas que decide o que vai acontecer no futuro.

IHU On-Line — Pelas negociações em curso, é possível que a Adaps seja criada ou não?

Heleno Corrêa Filho — Concretamente, não sei. Achei interessante que o senador Confúcio Moura tenha respondido às vozes do Nordeste, porque os estados do Nordeste já tinham se reunido e decidido fazer o que ele aparentemente está querendo incorporar na Medida Provisória, que é permitir o regresso dos ex-intercambistas médicos cubanos e de médicos de outras nacionalidades para trabalhar no Brasil. Se ele está cogitando inserir isso na MP, está na verdade colocando na boca o doce que os nordestinos prepararam na proposta. E o senador, como é uma pessoa de caráter político e inteligente, não vai deixar isso de lado; ele ouviu os estados do Nordeste e do Norte.

A possibilidade de criação da agência é uma incógnita quando mais de 70 senadores são empresários ligados a ramos de seguradoras privadas, a áreas de bancos e a áreas interessadas em privatizar o sistema de saúde. Eles não costumam ouvir as vozes das ruas, será que dessa vez vão ouvir?

IHU On-Line — Deseja acrescentar algo?

Heleno Corrêa Filho — Nós estamos, para variar, em uma encruzilhada. Eu falo, como médico, como vice-presidente do Cebes e também como associado da Abrasco, que as políticas públicas poderão avançar se tivermos recursos para a pesquisa, para descobrir novas formas de fazer gestão pública sem criminalizar o gestor, e criar novos sistemas mais baratos e mais fáceis de serem administrados.

 

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