O projeto anticrime agiganta o poder persecutório e punitivo do Estado. Entrevista especial com Adriano Pilatti

Conflito com a Polícia na favela da Rocinha | Foto: CartaCapital

Por: Ricardo Machado | Edição: Patricia Fachin | 14 Março 2019

O pacote anticrime do governo federal, enviado à Câmara dos Deputados no mês passado, que tem como meta combater a corrupção, o crime organizado e os crimes de violência contra a pessoa, é formulado “a partir de premissas simplórias e argumentações nebulosas” e “constrói um programa policialesco para o suposto enfrentamento da criminalidade, um programa que é uma espécie de antologia das fantasias mais obtusas e equivocadas do chamado punitivismo”, diz Adriano Pilatti à IHU On-Line, em entrevista por e-mail.

Na avaliação do professor do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, a redação do projeto de lei anticrime não demonstra a interligação e a interdependência entre os três crimes a serem combatidos. “Demonstrar essa delirante tese da interligação e interdependência entre disputas de facções de narcotraficantes por territórios, feminicídios e fraudes em licitações de obras públicas, por exemplo, ou entre alhos e bugalhos, é algo que evidentemente ali não se faz. Nem mesmo a necessidade e a adequação das medidas propostas, em relação aos seus objetivos declarados, são demonstradas satisfatoriamente, na maioria dos casos”, opina. E acrescenta: “A ‘exposição de motivos’ carece de dados e evidências factuais, carece de competente domínio do ‘estado da arte’ sobre as questões envolvidas”.

Na avaliação de Pilatti, a aprovação do projeto anticrime terá como consequência a violência contra um estrato da sociedade: “mais pobres serão mortos e feridos; mais pobres confessarão, ainda que inocentes, e mais pobres cumprirão a pena inicialmente em regime fechado. O resultado inevitável será o aumento da já gigantesca população carcerária, da população carcerária pobre e negra”, assegura. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o professor comenta os pontos mais polêmicos do projeto que propõe alterar 14 leis.

Adriano Pilatti (Foto: Luísa Boéssio - IHU)

Adriano Pilatti é graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro - PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, com estágio pós-doutoral em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, assessor legislativo concursado da Câmara dos Deputados, assessor jurídico do Gabinete do Prefeito do Rio de Janeiro, consultor jurídico do Instituto Brasileiro de Administração Municipal - IBAM e chefe da Assessoria Jurídica da Reitoria da PUC-Rio. É professor do Departamento de Direito da PUC-Rio. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: Lamparina, 2015). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se caracteriza o pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro? Quais são as 14 leis que Moro pretende alterar?

Adriano Pilatti – O PL 882/19 se propõe a alterar o Código Penal (Decreto-Lei 2.848/1940), o Código de Processo Penal (Decreto-Lei 3.689/1941), e as leis que dispõem sobre execução penal (Lei 7.210/1984), crimes hediondos (Lei 8.072/1990), enriquecimento ilícito de agentes públicos (Lei 8.429/1992), interceptações telefônicas (Lei 9.296/1996), lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998), armas (Lei 10.826/2003), drogas (Lei no 11.343/2006), prisões de segurança máxima (Lei 11.671/2008), identificação criminal (Lei 12.037/2009), organizações criminosas (Lei 12.850/2013) e denúncias por telefone (Lei 13.608/2018). A partir de premissas simplórias e argumentações nebulosas, o PL 882/19 constrói um programa policialesco para o suposto enfrentamento da criminalidade, um programa que é uma espécie de antologia das fantasias mais obtusas e equivocadas do chamado punitivismo.

O segundo parágrafo de sua rasa exposição de motivos, que tem o caráter explícito de um alerta, involuntariamente se apresenta mais como um alerta para a fragilidade cognitiva que parece ter caracterizado a elaboração da proposta, e dispensa comentários. Confira-se: “A primeira e essencial observação é a de que este projeto tem por meta estabelecer medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência à pessoa. Ele enfrenta os três aspectos, corrupção, organizações criminosas e crimes com violência, porque eles são interligados e interdependentes. Portanto, de nada adiantaria enfrentar um deles sem que os outros fossem objeto de idênticas medidas. Feito o alerta, passa-se à exposição dos motivos.”

Demonstrar essa delirante tese da interligação e interdependência entre disputas de facções de narcotraficantes por territórios, feminicídios e fraudes em licitações de obras públicas, por exemplo, ou entre alhos e bugalhos, é algo que evidentemente ali não se faz. Nem mesmo a necessidade e a adequação das medidas propostas, em relação aos seus objetivos declarados, são demonstradas satisfatoriamente, na maioria dos casos.

A “exposição de motivos” carece de dados e evidências factuais, carece de competente domínio do “estado da arte” sobre as questões envolvidas. Nada traz além de referências banais a dois ou três especialistas, a subsídios de órgãos subordinados ao ministro que reivindica a autoria intelectual do pastiche (Departamento Penitenciário Nacional, Polícia Federal e Secretaria Nacional de Segurança Pública), à Transparência Internacional e ao site O Antagonista (!), além de jornais. Aliás, o desdém do ministro pelas reflexões mais avançadas e consistentes no campo das ciências penais, do processo penal, da criminologia, da política penitenciária e da segurança pública ficou muito bem retratado quando ele disse que o projeto não foi feito para agradar professores da área.

Talvez por isso mesmo, a exposição de motivos que assinou pouco mais contém além de crenças e superstições surradas e desmentidas pelos fatos, como as de que há relação de causa e consequência entre elevação da truculência policial, endurecimento do cumprimento de penas (com o consequente aumento do encarceramento), cerceamento de direitos e garantias individuais, embaraçamento do exercício da advocacia, restrições aos efeitos de recursos e destruição da presunção de inocência, de um lado, e redução da criminalidade de outro. Temos as polícias que mais matam, a terceira população carcerária do mundo, brutalidade policial permanente contra os pobres, grampos a granel, e nem por isso temos segurança. Essa realidade terrível, que o projeto só vem agravar, é a maior demonstração de sua ineficácia anunciada em relação aos seus objetivos declarados. É só mais do mesmo, só que muito mais. Resta especular sobre eventuais objetivos ocultos. Pois a verdade é que o projeto agiganta o poder persecutório e punitivo do Estado, dá superpoderes aos ministérios públicos, usurpando até competência do Congresso, e também aos juízes criminais, transformando-os em verdadeiros juízes de execução penal. Ao mesmo tempo, pouco se avança em matéria de capacitação do Estado e de seus agentes para a investigação criminal, num país em que a esmagadora maioria dos homicídios sequer tem autoria identificada. Pouco se avança em matéria de ampliação do perdimento de bens nos crimes típicos dos donos do capital.

Algumas coisas realmente impressionam nessa iniciativa. Impressiona que uma figura que se notabilizou por sua aparente obsessão pelo combate à impunidade proponha agora legalizar a impunidade de agentes do Estado (e não só) em seus excessos e nos crimes de sangue que praticarem contra sua clientela habitual. Impressiona que um ex-juiz seja tão irresponsável diante do quadro insustentável do sistema penitenciário, produzido pelo incontestável e desumano encarceramento em massa, a ponto de se dispor a agravar esse quadro, ampliando o número de presos e o tempo de cumprimento das penas. O ardente desejo de cortejar a ignara facção punitivista da “opinião pública”, a falta de disposição para punir o capital com a perda do capital, e a “opção preferencial pelos pobres” como alvo (em certos casos, alvo fatal) das medidas propostas, tudo isso somado trai os interesses e endereços de classe do malfadado projeto.

Mas também há algumas propostas igualmente graves, que ainda não foram objeto da devida atenção, como a ampliação indiscriminada das hipóteses de uso de meios de prova previstos na lei de organizações criminosas, que passam também a poder ser utilizados na investigação de quaisquer crimes com pena superior a quatro anos, ou crimes conexos. Com essas e outras medidas, abre-se a possibilidade de utilização, em quantidades industriais, de interceptação de comunicações, escuta ambiental, quebra de sigilos, infiltração de policiais e realização de ações controladas, além de se promover um descomunal alargamento da captação forçada de dados genéticos e biométricos de presos e condenados. Coisa de ficção científica, ou distopia. Há, ainda, uma formidável ampliação das atribuições no Ministério Público, inclusive para extrair confissões por meio de “acordos”. Se pensarmos nos usos que essas medidas poderão vir a ter na repressão aos movimentos sociais num país em que conservadores e reacionários são amplamente majoritários na polícia, no MP e no Judiciário, então o quadro é mais do que preocupante. Aliás, o único caso de majoração nominal de pena é justamente para o crime de resistência. Mas o grande impacto qualitativo e quantitativo será o aumento dos abusos e injustiças na apuração e no julgamento dos crimes comuns.

IHU On-Line – No projeto, um dos trechos que mais chama atenção é o que se refere ao “excludente de ilicitude”. Do que se trata exatamente? Quais podem ser as consequências?

Adriano Pilatti – O Código Penal, em seu art. 23, caput e incisos, ao estabelecer que “não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”, está definindo os chamados excludentes de ilicitude, situações e circunstâncias em que, embora se pratique uma conduta definida como crime, se considera que o crime não ocorre. Ainda assim, o parágrafo único do mesmo art. 23 prevê o chamado “excesso punível”, ao dispor que “o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.” Definindo uma dessas excludentes, o art. 25 estabelece que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”. Tudo muito equilibrado.

O que o PL 882/19 faz é escancarar a porteira. Primeiro acrescenta mais um parágrafo ao art. 23, para beneficiar os que incorrerem em excesso punível, ao prever que “o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Para deixar de punir, ou cortar pela metade a punição de quem o praticar por “medo, surpresa ou violenta emoção”. Atenção: a impunidade do excesso se aplica às três excludentes, e beneficia quem quer que seja o autor do excesso, e não apenas os policiais, como alguns pensam. É uma norma geral. Conjugue-se isso com a facilitação da posse de armas e se poderá perceber a destrutividade dessa porta aberta ao desvario. Quem quer estado de natureza, terá. O excesso poderá ocorrer dentro de casa, no shopping, na rua, no restaurante e, mesmo quando dirigido “apenas” a supostos delinquentes, poderá alcançar também terceiros. Qualquer um de nós. É uma medida que agravará a insegurança em geral.

Mas não é só isso. O PL 882/19 acrescenta um parágrafo único ao art. 25, da legítima defesa, para ampliar sua abrangência, ao dizer que “considera-se em legítima defesa o agente de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e o agente de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. E, como se não bastasse, o projeto ainda prevê a alteração do Código de Processo Penal para permitir que a autoridade policial deixe de efetuar prisão nesses casos todos, mesmo havendo flagrante. É a licença ilimitada para o Estado ferir, matar, mutilar, sequelar. É a garantia prévia de impunidade à matança indiscriminada. É o estabelecimento da pena de morte por decisão monocrática, sumaríssima e de execução imediata, tudo isso a cargo de “sua majestade, o agente de segurança pública”. Sua majestade, sim, pois isso representa o restabelecimento e a socialização corporativa de uma prerrogativa monárquica de impunidade, de uma imunidade real. O policial, assim como o rei, não pode errar, não pode fazer mal, pois é inviolável — esse é o axioma oculto. É mesmo de causar estupor. A consequência será a rotinização da matança, do “abate” pelo qual anseiam os mais perturbados.

IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre essa “excludente de ilicitude” com o caso do jovem morto por segurança de um supermercado no Rio de Janeiro?

Adriano Pilatti – Se a mudança for aprovada, o segurança do caso poderá alegar “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”, já que a lei penal pode retroagir para beneficiar o réu. Mas lamentavelmente esse é apenas um caso, numa sequência aparentemente interminável de casos anteriores e posteriores. No âmbito da ação policial, o país tem vivido em permanente regime de excesso contra os pobres, especialmente jovens e negros. E aqui cabe uma observação concernente tanto aos agentes públicos como aos agentes privados de segurança: a quem se dedica profissionalmente a essas ocupações não é obviamente justo exigir que não sinta medo, que não seja surpreendido, que não se emocione; mas é justo e necessário exigir que saibam o que fazer com o medo, a surpresa, a emoção, de modo a utilizar apenas os meios efetivamente necessários ao cumprimento de seus deveres e à defesa de sua própria pessoa. Para isso são pagos.

IHU On-Line – Qual o perfil social que mais deve ser atingido pelo pacote anticrime do atual governo?

Adriano Pilatti – Como disse, os mais pobres, certamente. Antes de mais nada porque são eles os alvos preferenciais, senão exclusivos, dos excessos policiais, que se quer legalizar. Mas também porque representarão de longe o maior número de atingidos pelo endurecimento do regime de cumprimento das penas e outras medidas. Cerca de dois terços das denúncias criminais que chegam à Justiça concernem a três tipos de delitos: furto, roubo e tráfico de drogas. Por aí se vê tanto o recorte econômico do sistema penal quanto o desastre da guerra às drogas. Quando se fala de tráfico, a imensa maioria dos acusados, todos sabemos, é de pequenos varejistas. Ou então, como sempre alerta Drauzio Varella (por sua experiência com o sistema carcerário, por sua sensibilidade e por sua inteligência, esse admirável médico e mestre tem muito mais a dizer sobre o assunto do que muito togado ou ex-togado), muitas vezes se trata de pobres mulheres que tentam entrar em presídios para visitar seus parceiros presos, trazendo pequenas quantidades de droga na vagina, e acabam presas em flagrante, deixando os filhos ao deus-dará, um verdadeiro absurdo.

Ao tentar (a constitucionalidade é mais que duvidosa e contraria posição do STF) endurecer o regime de cumprimento de pena e dificultar sua progressão, o PL 882/19 estabelece que, em qualquer caso de reincidência, com ressalvas insignificantes, e também em crimes de roubo ou contra a administração pública, o regime inicial será fechado. No último caso, a clientela penal é mais “selecionada”, e a proposta é puramente demagógica, pois não há razão efetiva para o encarceramento. A reincidência é quase inevitável no âmbito da pequena delinquência dos pobres, dada a falta de oportunidades de ressocialização e trabalho para o egresso do sistema penal. O roubo, tal como tipificado no Código Penal, não é um crime frequente entre os ricos, as expropriações típicas praticadas por esses são outras. Além disso, o projeto pretende permitir que, em qualquer caso, o juiz fixe um mínimo de pena a ser cumprida em regime fechado ou semiaberto, antes de qualquer progressão. Juízes têm classe, sensibilidade de classe, empatia de classe, simpatias e antipatias de classe, valores de classe. Uma pequena e admirável parcela consegue se imunizar contra a influência de sua condição social-econômico-cultural no exercício de suas funções, mas essa não é a regra. Se a “cara do freguês” for de “gente diferenciada”, muitos juízes já tendem a endurecer; se a proposta subsistir aos crivos do legislativo e do judiciário, poderão fazê-lo à vontade.

Os pobres tendem a se tornar também a clientela habitual da confissão por meio de “acordo” com o Ministério Público, o chamado “plea bargain”. Nos Estados Unidos, o resultado foi esse, com consequente aumento de encarceramento de pobres e negros. E veja-se que lá não se aceita que o depoimento do policial responsável pelo flagrante seja aceito como prova suficiente para uma condenação, ao contrário do que acontece aqui. Lá o Estado não pode contar apenas com uma informação do próprio Estado para encarcerar alguém. No Brasil, aceita-se que um depoimento de policial baste para fundamentar uma condenação, e a imensa maioria das denúncias criminais são resultantes de supostos flagrantes, não de investigações policiais. Dá para prever o que promotores e policiais, “colaborando” uns com os outros, poderão fazer para extrair confissões de réus apavorados e desassistidos, ainda que inocentes.

É preciso sempre lembrar que são pobres a quase totalidade dos mortos e feridos por “excessos policiais”, são pobres os que carecem de assistência jurídica adequada, são pobres a grande maioria dos presos e denunciados em supostos flagrantes, são pobres os que mais incorrem em supostas reincidências. Com a aprovação da proposta, mais pobres serão mortos e feridos; mais pobres confessarão, ainda que inocentes, e mais pobres cumprirão a pena inicialmente em regime fechado. O resultado inevitável será o aumento da já gigantesca população carcerária, da população carcerária pobre e negra.

Como se não bastasse, o PL 882/19, ao pretender combater as organizações criminosas, propõe que “o condenado por integrar organização criminosa ou por crime praticado por meio de organização ou associação criminosa não poderá progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional ou outros benefícios prisionais se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”. Isso é proposto, segundo a exposição de motivos, para que os condenados “se sintam desestimulados a manter vínculo, com as organizações criminosas, visto que estarão impedidos de receber os benefícios”. Ora, para a grande maioria dos “soldadinhos” das organizações criminosas, sobretudo quando presos, integrá-las não é propriamente um ato de livre escolha. Entre a vida e a progressão, optarão por continuar a integrar essas organizações vivos. Isso significa que ficarão mais tempo presos e, portanto, mais tempo submetidos ao poder absoluto dessas facções nos presídios, com o consequente aumento de suas “dívidas” para com essas organizações. É a antevisão do inferno. Inferno pelo qual as facções ficarão eternamente gratas ao Estado.

IHU On-Line – Até que ponto as propostas apresentadas por Moro rompem com o paradigma da Constituição de 1988? Há propostas que podem ser consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal?

Adriano Pilatti – Grande parte das medidas não se compatibiliza com a Constituição e contraria decisões do STF. O desmonte da garantia de presunção de inocência, traduzido na possibilidade de execução imediata da pena após condenação em segundo grau ou pelo júri, é proposto como adequado a um entendimento do STF que, até as pedras sabem, está em vias de ser superado. Restrições à progressão de regime já foram invalidadas antes pelo STF, bem como o desmembramento de processos em caso de foro privilegiado, e o alargamento ilimitado de interrogatório de réu preso por videoconferência, com todos os constrangimentos e ameaças que isso pode representar para o(a) interrogado(a). O PL 882/19 pretende até suprimir o controle congressual sobre acordos internacionais de interesse do Ministério Público, tentando permitir que sejam aprovados por decreto presidencial, a pretexto de “evitar a burocratização de tais iniciativas”… Para os autores da proposta, portanto, procedimentos democráticos e devido processo parlamentar significam “burocratização”, o que diz muito sobre o caráter eminentemente autoritário do projeto como um todo.

IHU On-Line – Moro, como juiz de primeira instância, ficou conhecido como implacável paladino contra a corrupção, inclusive classificando, em uma conferência nos EUA, o chamado “caixa 2” como crime mais grave que o de corrupção. O que levou o ministro a retirar a pauta do caixa 2 do pacote anticrimes?

Adriano Pilatti – Só ele pode responder. Talvez tenha aprendido, com um ex-ministro, que “a vida é dura”. De todo modo, ficam evidentes, mais uma vez, a incoerência do ex-magistrado e a seletividade de sua postura persecutória e punitiva: duríssima com os pequenos e os “caídos”, leniente com quem tem poder aqui e agora. O leão miou, o pitbull pode se transformar num poodle conforme o caso, e isso é tudo.

IHU On-Line – No projeto, Moro cita textualmente organizações criminosas como Comando Vermelho e PCC, mas esquece de citar o “Escritório do crime”. Qual o significado de o Estado citar nominalmente essas organizações criminosas em um texto da lei? E o de não citar, como no caso do “Escritório do crime”?

Adriano Pilatti – Enumerar e nominar algumas organizações e não outras é mais uma bobagem seletiva, inspirada em fetiches norte-americanos e italianos produzidos por inquisidores em que Moro parece se espelhar. Mais uma vez, mas principalmente pela vedação de progressão de regime aos “soldadinhos”, já mencionada, as facções agradecem.

IHU On-Line – O Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo. O crime organizado se nutre justamente do pouco controle do Estado sobre as penitenciárias que funcionam como principal fonte de recrutamento destas organizações. Quais as consequências da possibilidade de prisão em condenações de segunda instância?

Adriano Pilatti – Além de serem inconstitucionais, como em breve o STF provavelmente voltará a reconhecer, as prisões após condenação em segundo grau, ou pelo júri, também terão um impacto brutal e negativo no dantesco cenário dos cárceres. Disseminou-se a ideia de que só os ricos recorrem aos tribunais superiores e têm sucesso nesses recursos, mas os levantamentos das defensorias públicas mais atuantes revelam que um grande percentual de recursos dessas defensorias em favor de seus clientes, pobres, são acolhidos pelo STJ e pelo STF, com as consequentes absolvições ou reduções de pena. Mas mesmo que fosse um só caso de condenação injusta ou desmedida, um só homem, uma só mulher injustamente condenados e presos, a restauração do respeito à presunção de inocência, nos termos em que a Constituição a consagra, se justificaria.

A propósito, outra falsidade propalada pelos punitivistas é que condenação em segundo grau, ou pelo júri, seria o único meio de assegurar a prisão do condenado em qualquer circunstância. Falso, como bem lembrou o ministro Celso de Mello, em seu voto no julgamento do Habeas Corpus nº 152.752 (íntegra aqui, ver p. 16): “a presunção de inocência não impede a imposição de prisão cautelar, em suas diversas modalidades (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão resultante de decisão de pronúncia, e prisão fundada em condenação penal recorrível), tal como tem sido reiteradamente reconhecido, desde 1989, pela jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal”. Por aí se vê como anda mal esse debate.

IHU On-Line – Como o senhor avalia a tramitação da pauta no Congresso? O governo tem força para fazer valer sua vontade no parlamento?

Adriano Pilatti – O início da atual legislatura já demonstrou que não há maioria monolítica e automática de apoio ao governo. Treino é treino, jogo é jogo. A banda ali toca diferente e chega a ser vexaminosa a incapacidade de um presidente que foi parlamentar por quase três décadas, parlamentar é o que mais ele foi na vida, compreender o ethos e a liturgia congressuais. De todo modo, a composição congressual é majoritariamente conservadora, para não dizer reacionária, no que se refere a questões de criminalidade e de segurança pública. Algo semelhante se pode dizer da chamada “opinião pública” até aqui dominante. A oposição progressista e garantista vai precisar de muita “virtù” e de boa “fortuna” para virar o jogo na opinião pública, e construir coalizões pontuais de veto ou alteração das propostas nas comissões e plenários do Congresso. E depois vem o STF, não sabemos se com a composição atual ou a do futuro próximo.

De todo modo, o mínimo que se espera é que as presidências das Casas do Congresso e de suas comissões, e também as lideranças partidárias, criem as condições para um amplo debate, com especialistas reconhecidos nas diversas áreas envolvidas inclusive. Até mesmo para corrigir as deficiências de redação que o projeto apresenta, algumas vexatórias. O que se espera é que o debate seja amplo, exaustivo e aprofundado, tal como se deu na bem sucedida experiência de discussão do projeto para o novo Código de Processo Civil. Estamos diante de matéria tão relevante e abrangente quanto, com implicações muito mais graves em termos de restrição a direitos e garantias individuais fundamentais. O Congresso tem o dever de se abrir à discussão com a cidadania, com a academia, com os profissionais e especialistas da área. Só assim a racionalidade poderá prevalecer sobre os impulsos punitivistas.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Adriano Pilatti – Uma pergunta: quem mandou matar Marielle Franco e Anderson Gomes?

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