Giorgio Agamben: “O estado de exceção se tornou norma”

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01 Mai 2018

Se há um filósofo característico do presente é Giorgio Agamben. Nasceu em Roma em 1942, mas sua obra globalizada não pode desligar-se de suas atividades na França, Inglaterra e Alemanha, entre outros países em que trabalhou. É fácil detectar nela a influência de Martin Heidegger, Walter Benjamin e Michel Foucault, mas também as de Kafka e do situacionista Guy Debord. Agamben chegou à universidade para estudar Direito, mas se inclinou pela filosofia depois de assistir entre 1966 e 1968 a alguns seminários com Martin Heidegger. Foi o mesmo período, recorda, em que descobriu Benjamin: “Dois autores muito diferentes. Um era o contraveneno do outro”.

A reportagem é de Francesc Arroyo, publicada por El País, 30-04-2018.

Sua obra, que nunca perde de vista a relação do homem com a linguagem, não se esgota na filosofia, mas se estende por todos os campos do saber: da literatura às artes plásticas, da filologia à antropologia, passando pela teologia e, claro, pela política. Entre as pessoas com quem estabelece estreita relação há filósofos: Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Pierre Klossowski; mas também cineastas como Pier Paolo Pasolini, ou escritores: Elsa Morante, Ingeborg Bachmann, Italo Calvino. Ensina Filosofia em Veneza e dirigiu a edição italiana das obras de Benjamin. A editora Boitempo acaba de lançar no Brasil sua obra O Fogo e o Relato, com o subtítulo Ensaios sobre Criação, Escrita, Arte e Livros.

Mesmo nos textos mais filosóficos, em Agamben se entrecruzam outros discursos. Em uma de suas obras mais lidas, Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida Nua (Editora UFMG), parte de Hannah Arendt para a revista Foucault, mas não se esquece da contribuição de Kafka para definir a situação do homem contemporâneo. “A literatura e a poesia foram sempre muito importantes para mim. Não acredito que possam ser separadas da filosofia. Não são campos incomunicáveis. Eu diria que são duas intensidades que atravessam o campo da linguagem humana”, explicava Agamben em uma entrevista em 2016 a o EL PAÍS, quando foi publicado em espanhol o mesmo livro que agora sai no Brasil. Na realidade, seriam atividades destinadas a se cruzarem. “Aquilo que a poesia realiza com o poder de dizer, a política e a filosofia devem realizar com o poder de agir”, sustenta em O Fogo e o Relato. Já em Hölderlin a poesia “marca o ponto em que o poeta, que vive como uma catástrofe a ausência do povo – e de Deus  –, busca refúgio na filosofia, deve se tornar filósofo”. Mas “a filosofia moderna fracassou em sua tarefa política porque traiu sua tarefa poética, não quis ou não soube arriscar-se na poesia”. Heiddeger tentou, mas “não conseguiu se tornar um poeta”.

Homo Sacer, uma de suas obras mais difundidas, prossegue os trabalhos sobre biopolítica dos últimos textos de Foucault: a vida como objeto político. “Não acho que na filosofia se possa distinguir, como se faz na universidade, entre filosofia da política, da moral, da linguagem. A filosofia é única. A filosofia é sempre política”, disse o filósofo naquela conversa com o EL PAÍS. E há um aspecto da história recente que acaba mostrando-se como o paradigma da sociedade moderna: os campos de concentração, um espaço onde a lei fica em suspenso, um perpétuo estado de exceção onde, diz com Hannah Arendt, “tudo é possível”. O homem enclausurado neles é marginalizado da sociedade pelo próprio Estado: é o homo sacer, sagrado. Não pode ser sacrificado, mas sua morte não constitui homicídio e pode ser assassinado impunemente.

“O estado de exceção era um dispositivo provisório para situações de perigo. Hoje se tornou um instrumento normal de governo. Com a desculpa da segurança diante do terrorismo, se generalizou. A exceção, por isso se chamava estado de exceção, é norma. O terrorismo é inseparável do Estado porque define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema atual de governo não poderia funcionar. Há dispositivos como o controle das impressões digitais, ou o escaneamento que te fazem nos aeroportos, que foram adotados para controlar os criminosos e agora são aplicados a todos. Da perspectiva do Estado, o cidadão se transformou em um terrorista virtual. Do contrário, não se explica o acúmulo de câmeras que nos vigiam em todas as partes. Somos tratados como criminosos virtuais. O cidadão é um suspeito, numerado, como em Auschwitz, onde cada deportado tinha seu número”. Com algo a não perder de vista: o estado de exceção dos campos é o mesmo que impera nos organizados para os refugiados.

Tudo isso conduz a uma quebra da legitimidade do poder. “Isso se dá em muitos Estados: há legalidade, porque as leis são cumpridas, mas não há legitimidade. Como consequência os cidadãos confiam menos nas urnas, e a abstenção cresce. Um fenômeno que não havia ocorrido antes e que está relacionado com o fato de as pessoas terem se dado conta de que os Governos não são verdadeiramente legítimos. Legais, sim; mas não legítimos.”.

Dessa perspectiva, Agamben considera a relação entre ética e política. “A ética moderna, desde Kant, se constitui como uma ética do dever, dominada pelo imperativo. Tentei criticar a ética do dever e substituí-la por uma doutrina, procedente do mundo clássico, que valorize a ideia de felicidade, a vida boa. Em um sentido político. O dever é uma ideia de origem cristã. O homem é um ser em dívida. Isso significa dever: estar em dívida.”

A ideia do dever não só regula a ética kantiana, também se estende ao mundo da economia. “A economia de hoje está baseada na ideia da fé e do dever, do crédito e do débito. São dois conceitos que provêm do mundo da fé. ‘Fé’, em grego, se chama ‘pistis’. Há uma história muito bonita. Um historiador da religião, professor em Jerusalém, estava trabalhando sobre o conceito de fé (’pistis’). Pretendia entender o que é. Um dia estava em Atenas, levantou os olhos e viu escritas as palavras: ‘Banco de pisteos’. Banco da Fé, leu, mas na realidade o que estava escrito era Banco de Crédito. Foi sua iluminação: fé significa crédito. É o crédito que se outorga à palavra de Deus. E, para nós, é o débito para com Deus. É muito esclarecedor: a economia e a ética estão baseadas nos mesmos conceitos: débito e crédito. Porque, o que é o dinheiro senão um crédito? Sobretudo depois que Richard Nixon separou o dólar do padrão ouro. O que resta nas notas é um puro crédito sem conteúdo. Temos crédito em um débito que não está garantido por nada.”

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