O que podem as máscaras e as bandeiras? Leitura do livro The Mask and the Flag

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23 Novembro 2017

Uma leitura do livro The mask and the flag (2017) de Paolo Gerbaudo [i].

O artigo é de Alexandre F. Mendes [ii], professor de direito da UERJ, ex-defensor público do estado do RJ e participante da Rede Universidade Nômade, publicado por UniNômade, 22-11-2017.

Eis o artigo.

Introdução

Os levantes que sacudiram o mundo a partir da chamada Primavera Árabe, percorrendo uma trilha intensa que atravessou vários continentes, países e cidades permanecem um enigma para a percepção do horizonte político atual. As dispersas centelhas do grande incêndio continuam queimando, do violento tabuleiro geopolítico mundial às mesas de pesquisa de analistas políticos; das reuniões das cúpulas dos governos e instituições nacionais à circulação diária de mensagens, vídeos e memes pelas redes sociais. Passada a fase do grito, um insistente murmúrio continua a ressoar, assumindo múltiplas formas que só aparentemente estão desvinculadas das mutações provocadas pelos primeiros protestos e acampadas ocorridas no turbulento ano de 2011.

O livro de Paolo Gerbaudo, intitulado The mask and the flag: Populism, Citizenism and Global Protest (2017), publicado pela Oxford University Press, constitui mais uma contribuição para o esforço de compreensão deste ciclo, sendo resultado de uma longa pesquisa teórica e empírica que culmina em uma análise que consegue, ao mesmo tempo, acompanhar as linhas finas de movimento presente nas acampadas e captar uma ampla paisagem do levante através das suas mútuas implicações, do Egito aos EUA, da Turquia ao Brasil. Se existe um traço cinematográfico no livro, seria o de articular as técnicas do travelling e da panorâmica, oferecendo ao leitor um passeio no qual ele pode ser inserido nas discussões de uma assembleia popular em Barcelona para, logo após, ser lançado em grandes estruturas plasmadas por quadros comparativos.

É através desse método que o livro constrói seu argumento principal: a grande inovação trazida pelo movimento das acampadas é a produção de uma prática e de uma concepção de cidadanismo que articula, tanto dimensões autonomistas e neo-anarquistas da geração pós-68, e elementos que poderiam ser caracterizados como “populistas democráticos”, hibridizando o repertório de duas tradições que durante todo o século 20 se repeliram de forma recíproca (representadas pela máscara de Guy Fawkes e as bandeiras nacionais). Assim, este populism turn, que passa a remexer os fios longos das formas de luta assentadas nas últimas décadas, conformaria o principal elemento de análise prático-teórica do novo ciclo e o próprio terreno que define as condições de ação política na atualidade (idem, p. 15).

Por sua vez, o giro populista constitui também o ponto cego de uma série de teorias que tentaram explicar o movimento das acampadas de 2011-2016. A linha neo-anarquista (representada por autores como David Graeber, Mark Bray, Zibechi, Marina Sitrin, Dario Azzellini etc.) acerta em perceber o forte tom libertário e o apelo à auto-organização, mas não consegue compreender que esses movimentos compõem um mosaico mais amplo, no qual se inclui o populismo democrático (GERBAUDO, P. 2017, p. 13).

A linha crítica marxista (representada por autores como Jodi Dean, Slavoj Zizek, Alain Badiou etc.) enxerga nos levantes um momento de ruptura com o pálido continuísmo histórico que predominou nas leituras conformistas sobre a vitória da globalização capitalista desde a década de 1990. Mas ao aproximar essa ruptura com uma “ideia de comunismo” revela um afastamento com a realidade das acampadas, que não poderia ser explicada por um novo clamor comunista, e sim pelo problema central da democracia e do funcionamento de suas instituições (idem, p.14).

Por fim, a linha de interpretação “tecnopolítica” (incluindo trabalhos de W. Lance Bennett, Manuel Castells, Jeffrey Juris, Javier Toret, entre outros, e o livro anterior do próprio autor, intitulado Tweets and the Streets) é bem-sucedida em analisar a importância da cultura de rede nas novas formas de comunicação, deliberação e organização dos movimentos, mas falha em não englobar a totalidade da experiência social, incluindo os desejos e medos emergentes em uma época de crise sistêmica (idem, p.15).

O propósito de Gerbaudo, portanto, é desenvolver uma compreensão dos movimentos das acampadas e do cidadanismo a partir da irrupção de uma “insurreição populista”, centrada em demandas por “soberania popular, igualdade econômica e a restauração de um verdadeiro espírito democrático” (idem, p. 15). A retomada de um zeitgeist populista aparece como uma tentativa de fender os impasses e bloqueios decorrentes de um mundo estilhaçado pela crise econômica e política provocada por décadas de governos neoliberais, por uma descrença cada vez maior na liderança de grandes empresários, de entidades da sociedade civil, de corporações de mídia, de entidades representativas de classe e de partidos políticos à esquerda ou à direita. Esta verdadeira Oligarquia encrostada nos governos de países tão diversos é a protagonista ou o cúmplice de operações político-econômicas que se assemelham quando o assunto é corrupção, autoritarismo, saque generalizado e elitismo.

Um movimento de cidadãos e não de ativistas

É nas metrópoles e cidades acossadas pelo terrível atropelo provocado por megaeventos, grandes empreendimentos imobiliários, desvio e má utilização de fundos públicos, gigantescas obras públicas com finalidades duvidosas, propinas e consórcios mafiosos entre estado e mercado e enclausuramento autoritário do sistema político, que esse processo de (des)democracia se torna mais visível e ganha contorno dramáticos. No topo das operações, em casos como os do Egito, Tunísia, Grécia, Espanha, EUA, Turquia e Brasil, se aglutina uma rede de políticos, empresários, altos funcionários do estado, membros dos principais poderes constituídos, o próprio primeiro escalão dos governos e, nos casos das monarquias, membros da família real.

As acampadas surgem como um ressoante microfone contra todas essas práticas, mas também como o espaço de uma poderosa aliança que articula novas figuras subjetivas advindas das situações de pobreza, precariedade e perda de expectativa com relação ao futuro. Além disso, diferentemente da configuração do movimento antiglobalização do final na década de 90 e do início dos anos 2000, ainda muito restritos aos círculos ativistas e “politizados”, o movimento das acampadas extravasa para todos os lados, sendo marcado por uma grande aprovação pública, uma participação direta inédita da população (quase 10% em alguns casos) e a forte presença de pessoas que se caracterizam como “cidadãos comuns”, ao invés de se identificarem por uma organização política ou uma rede de militância. Na feliz síntese de um dos entrevistados: “É um movimento de cidadãos e não um movimento de ativistas” (idem, p. 51).

Uma das ferramentas analíticas utilizadas por Gerbaudo para lançar luz aos novos e originais aspectos do ciclo das acampadas é exatamente cotejá-lo com as iniciativas de luta que ele caracteriza sob o signo de “movimentos pós-68”, em especial o ciclo de lutas antiglobalização do final da década de 1990. Portanto, do ponto de vista da estratégia política, enquanto o movimento antiglobalização tem o seu foco na crítica às agências multilaterais e aos fóruns internacionais, o que muitas vezes lhe conferia um tom abstrato e distante, o ciclo das acampadas buscou atingir diretamente e concretamente figuras que encarnavam a oligarquia (políticos, empresários, ditadores etc.), adotando o espaço nacional como terreno de enfrentamento (sem recusar os intercâmbios internacionais). Ao invés de gritar contra o FMI, a OMC ou o G8, as acampadas e os protestos miravam em Mubarak, Kadafi, Ben Ali, o Goldman Sachs, Lehman Brothers, o “PPSOE” – e poderíamos acrescentar: Eike Batista, a família Barata, Cabral etc (idem, pp. 113-135).

Do ponto de vista da composição, enquanto o primeiro possuía como base social-territorial um amplo arquipélago de movimentos, comunidades autogeridas, organizações civis, centros sociais, espaços de contracultura e contrapoder minoritário, o segundo apela para a uma ideia de maioria e busca a formação de identidades populares sincréticas e inclusivas (ex: “somos os 99%”, “somos todos Amarildo”, “Nós, os cidadãos” etc.). Assim, se o movimento antiglobalização desenvolve uma gramática altamente voltada para o círculo de ativismo e uma prática cultural contraria ao mainstream, as acampadas tentam se dirigir ao “simples” cidadão, através de uma gramática do cotidiano, do senso comum e de práticas que apelam para o desejo de uma vida normal livre das oligarquias (idem, pp. 89-113).

No que se refere à relação com o Estado, enquanto o ciclo antiglobalização condensa práticas de autogestão, de autonomia local e de estratégias de luta contra o estado; o segundo desenvolve uma estratégia de “assalto às instituições”, buscando através de uma abertura para a cidadania e a luta contra a oligarquia, a transformação das estruturas do estado na direção de uma democracia renovada. A lógica da multidão é substituída pela construção de um povo que desperta e se une para retomar o controle de instituições carcomidas pela perda completa de legitimidade derivada dos pactos mafiosos que sustentam a casta política e econômica.

Essas distinções produzem efeitos na própria forma do movimento enxergar o papel da ocupação das praças e a construção tática das acampadas. Primeiro, enquanto o movimento antiglobalização montava os seus acampamentos em locais distantes, posicionados de acordo com a ação direta a ser organizada contra os fóruns internacionais, o movimento de 2011 situa o acampamento no local mais central possível, tornando o espaço mais acessível e inclusivo. Segundo, enquanto o movimento antiglobalização compartilhava através das ocupações uma subcultura ativista e claramente de esquerda, o movimento das acampadas utiliza a praça para fazer circular uma cultura cidadã, baseada na fala e na experiência do cidadão comum. Terceiro, enquanto a tendência neo-anarquista e autonomista enxerga nos acampamentos um laboratório de autogoverno, ou uma experiência de “produção do comum”, o populismo insurrecional trata as praças como um espaço de ressonância que envolve amplos setores da sociedade, evitando o enclausuramento da ocupação no interior de uma experiência unicamente ativista (idem, pp. 157-181).

A última distinção pode ser feita com relação às práticas de comunicação e interação com os participantes do movimento e com a sociedade em geral. Enquanto os movimentos antiglobalização desenvolveram uma série de criações voltadas para o uso autônomo da tecnologia, através de plataformas de comunicação, servidores próprios, software livres e redes sociais (experiências como o Indymedia, o Riseup, o N-1 etc.), as acampadas e os protestos do ciclo de 2011 inundaram também as redes sociais majoritárias, utilizando predominantemente o Facebook e o Twitter. O objetivo seria atingir o público mais amplo possível, garantindo também uma ampla participação de cidadãos que utilizam essas ferramentas no cotidiano. Portanto, a cyber-cultura, ou a cultura digital livre, que se produziu nas décadas anteriores acaba se articulando com uma nova espécie de “cyber-populismo”, menos autônoma com relação à gestão, porém com mais capacidade de atingir simultaneamente milhões de pessoas (idem, pp. 135-157).

Um cidadanismo com lógicas distintas

No entanto, apesar das distinções entre essas duas tendências, Gerbaudo percebe no ciclo de 2011 uma composição híbrida que articula práticas neo-anarquistas e práticas populistas democráticas. A nova concepção de cidadanismo forjada nas acampadas não pode ser explicada apenas pelo repertório populista tradicional (liderança carismática, partido anti-sistema e democracia plesbicitaria), mas pela articulação de duas lógicas distintas: a) ação participativa contra estruturas burocratizadas e hierarquizadas, valorizando processos mais horizontalizados e que respeitam a singularidade dos indivíduos; b) ação de massa, que pensa a construção de políticas populares pela união do povo e por processos mais verticalizados. Para o autor, a combinação das duas lógicas, resultou em uma ação em grande escala que não precisou fazer referência a qualquer instituição de massa, já que o tecido que fabricou o povo como sujeito de ação era composto de um amplo rizoma que remonta ao estilo de luta pós-68 (idem, p. 76).

Assim, para Gerbaudo, no interior do populist turn que emergiu nos últimos anos, há também um “giro libertário” que indica a particularidade da atual reinvenção do cidadanismo no contexto das acampadas. Isso significa uma diferença qualitativa com relação ao coletivismo exacerbado, aos métodos verticalizados de tomada de decisão, à figura da liderança carismática e dos aparatos burocratizados. O novo cidadanismo social articularia uma ampla aliança contra a oligarquia, mas sem abrir mão do aprofundamento da participação social, da necessidade de reformas políticas democráticas, de garantias relacionadas à justiça social e um ethos libertário relacionado à criatividade e à autorrealização. Na síntese do autor, este “anarco-populismo” seria: “populista no conteúdo, mas libertário ou neo-anarquista em sua forma” (idem, p. 17).

Essa relação também esteve presente nas dinâmicas das assembleias populares, que inovaram ao apontar para a criação de um âmbito que reforça a ideia de unidade e de ampla inclusão nos processos de decisão das acampadas. Por isso, diferentemente das assembleias realizadas no circuito ativista dos movimentos anteriores, as novas acampadas tiveram que lidar com uma participação em massa que, em muitos casos, ficou conhecida como um verdadeiro “parlamento do povo” (idem, p. 184). Por outro lado, uma série de limitações foram evidenciadas através dos inúmeros conflitos envolvendo regras de participação, organização interna do acampamento, processos infindáveis de discussão, grau de centralização do espaço de decisão, falta de objetividade nos debates, levando também a momentos de paralisia, desânimo e esvaziamento das ocupações (idem, p. 203).

Para Gerbaudo, a estratégia de “assalto das instituições” ganha força na mesma medida em que a dinâmica de ocupações e assembleias começa a evidenciar seus limites e impasses. Animados por um espírito coletivo e de solidariedade, ativistas começam a pensar em campanhas e organizações mais estruturadas, incluindo novos partidos políticos. É o momento de afirmação de uma “onda de renovação cívica” que, na esteira de uma política cidadã e participativa, utiliza as práticas e o léxico das acampadas para se direcionar às instituições em crise. Além da emergência de novas organizações, campanhas e movimentos o day after da acampadas também testemunha a renovação à esquerda que fomentou o surgimento de partidos como Podemos (Espanha), Syriza (Grécia), a campanha de Bernie Sanders (EUA) e Jeremy Corbyn (Reino Unido), o crescimento do Partido Democrático Popular (Turquia), além de formações municipalistas que carregam uma herança mais libertária e neo-anarquista (idem, pp. 223-231).

Mesmo que todos os limites demonstrados por essas experiências sejam reconhecidos (a brevidade do ciclo das assembleias, as tensões com relação à questão da liderança, o fracasso de algumas propostas eleitorais como o Syriza, a ascensão de um populismo de direita que disputa o mesmo terreno deixado pelas acampadas, o desdobramento militar e autoritário no norte da África etc.), Gerbaudo afirma a positividade do movimento das acampadas como o “ano zero” para um novo progressismo do século XXI. E talvez o traço marcante desse novo horizonte seja a possibilidade de combinação de duas exigências que aparentemente são contraditórias: autonomia, auto-organização local, participação direta e a produção de novas instituições em grande escala a partir da estratégia de “assalto” ao estado e abertura de novos arranjos institucionais. Se as acampadas não realizaram imediatamente o desejo de uma democracia real, ancorada na ampla participação dos cidadãos e na expulsão da Oligarquia, elas espalharam pelo mundo “a profecia de uma democracia que vem” (idem, p. 246).

Um movimento híbrido e enigmático

O percurso argumentativo conduzido por Gerbaudo, a partir de um vasto material empírico, valoriza um conjunto importante de questões relacionadas ao ciclo da Primavera Árabe que são indispensáveis para uma compreensão não enclausurada e reduzida do fenômeno. O texto é imediatamente político por oferecer ferramentas para um deslocamento que recusa formas de percepção centradas em práticas e leituras já assentadas na tradição de esquerda ou dos círculos ativistas que participaram das lutas das últimas décadas. Por outro lado, como será abordado neste texto, o autor parecer não levar esse descentramento às ultimas consequências, buscando uma solução de “meio” baseada ainda em categorias pré-estabelecidas, com consequências também políticas.

Assim, sem dúvida, o traço mais importante do livro é reconhecer que o movimento das acampadas, sobre os escombros da crise de 2008 e da perda de legitimidade do sistema político em escala mundial, produziu atores que são verdadeiramente “monstruosos” (idem, p. 30). Para Gerbaudo, a metáfora por ser utilizada por ser “bem pertinente com relação à característica híbrida e enigmática do movimento das praças, e suas respostas contraditórias para o período de crise e instabilidade” (idem). O movimento oferece, portanto, uma grande dificuldade para aqueles que desejam recusar esse caráter híbrido e o complexo mosaico que se formou em todos os países atravessados pelos levantes.

O ponto de partida atinge bons resultados. Através dele, o autor pode caracterizar o enfrentamento às bandeiras dos velhos partidos e movimentos sociais, não como prenúncio de fascismo e de ignorância, mas como um “um movimento iconoclasta” que força o “abandono de todas as identidades esquerdistas pré-existentes” e suas “exauridas iconografias” (idem, p. 109). Por sua vez, o fenômeno majoritário produzido pela inédita participação de milhões de pessoas é analisado como uma grande e heterogênea aliança de pessoas comuns em busca de mais democracia, e não pela premissa fechada de que toda maioria é conservadora e reacionária (idem, p. 94). A ampla participação da população constitui a base para uma nova concepção de cidadania social, e não um elemento heterogêneo que deve ser incorporado à gramática dos círculos ativistas. O slogan “nós estávamos dormindo, nós acordamos”, presente em uma placa da Puerta del Sol (Madri), é lido como o despertar de um novo terreno de luta por democracia, e não como a intrusão dos “despolitizados” no terreno tradicionalmente conduzido pela esquerda.

A própria recusa da dicotomia esquerda e direita pelo movimento das acampadas traduziria uma tentativa de produzir uma aliança mais ampla, um novo sujeito revolucionário híbrido que confronta politicamente a oligarquia, e não um sinal de despolitização generalizada ou um sinal de que, mesmo de forma disfarçada, o movimento é “de direita”. A denúncia com relação às práticas de corrupção, a referência aos políticos e instituições corruptas em cada país não são um signo de moralização conservadora ou de abstração do movimento, mas uma estratégia política concreta para enfrentar a expropriação da democracia através de uma percepção compartilhada por toda a população. A indignação não é uma forma ressentida ou irracional de fazer política, mas deve ser compreendida como uma exigência para que os cidadãos se tornem “membros ativos de sua comunidade política com uma voz igual em todas as decisões importantes” (idem, p. 7).

Todos esses exemplos apontam para um conjunto de práticas que deslocou cultura ativista dos anos anteriores e produziu um estranhamento (em alguns casos uma verdadeira repulsa) que até hoje predomina nos espaço que se reconhecem como “de esquerda”, ponto que foi intensamente explorado pela reação governista brasileira (veremos no próximo tópico). Por outro lado, o que garantiu a força dos levantes foi exatamente o seu caráter híbrido e a sua escala inédita. A inovação reside exatamente na conexão improvável entre os “laboratórios do comum” que se forjaram nas praças e nos protestos de rua e a ampla participação social que ocorria de forma difusa e inesperada (o exemplo brasileiro sendo a famosa enquete promovida pelo apresentador José Luiz Datena, quando o telespectadores aprovavam os protestos mesmo com “baderna”).

Assim, o livro enfrenta quatro tendências de análise que ainda predominam sobre o movimento das acampadas. Primeiro, uma linhagem que acaba exasperando a percepção e a experiência dos círculos ativistas, ignorando todo um conjunto complexo de participações, apoios e mobilizações sociais que ocorreram por fora de sua subcultura (as mobilizações dos “despolitizados”); segundo, uma linhagem que reconhece esse mosaico heterogêneo, mas o reduz ao campo conservador, reacionário e até fascista; terceiro, uma leitura que conclui que o sentido do movimento foi conservador em geral, qualificando os ativistas de ingênuos, irresponsáveis ou manipulados, tendo aberto a caixa de Pandora do conservadorismo; por fim, no próprio campo conservador, uma linha que, olhando para trás, enxerga nas acampadas o momento de união do povo contra uma fase histórica permissiva baseada no excesso de direitos, liberdades e conquistas democráticas.

Essas quatro linhagens operam como um regulador moral da experiência das acampadas e dos protestos, depositando sua capa de chumbo sobre a riqueza híbrida e enigmática do movimento. Trata-se de um juízo permanente que busca conformar a potência do disforme que proliferou a partir do ciclo a categorias políticas, teóricas e morais pré-estabelecidas, tendo como efeito o próprio fechamento do movimento em formas deterioradas e impotentes (ex: as atuais guerras culturais e de narrativas que ocorrem no Brasil). Ao afirmar que o ciclo das acampadas continua sendo o terreno sobre o qual devemos pensar a democracia hoje, o livro de Gerbaudo repõem, contra essas tendências, a atualidade de sua dimensão ético-política e o desafio de uma ação política que continue seguindo a centelha do grande incêndio.

Uma leitura a partir da América Latina

É preciso, no entanto, perguntar até que ponto o próprio autor consegue se manter à altura de sua metodologia e dos enigmas e monstruosidade das forças de transformação produzidas nas acampadas. Até que ponto seria possível incorporar essas forças a categorias do pensamento político (autonomismo x populismo democrático), sem perder algo que desliza do campo conceitual existente? O artifício de encontrar um tertium genus (o “anarco-populismo”: anarquismo na forma, populismo no conteúdo) é suficiente para enquadrar todas as partículas que escaparam e turbinaram o ciclo das acampadas?

O problema começa no confronto analítico entre o movimento antiglobalização e o movimento das acampadas, recurso utilizado por Gerbaudo para evidenciar as especificidades deste último ciclo. Embora o mecanismo tenha sido bem-sucedido para descrever algumas características próprias do movimento de 2011, a análise do movimento antiglobalização parece ter sido mutilada de elementos importantes para que a dicotomia funcionasse perfeitamente.

O Fórum Social Mundial, por exemplo, é caracterizado como um espaço em rede formado por organizações heterogêneas que são ciosas de sua autonomia e diversidade (idem, p. 188). O movimento antiglobalização é descrito, lembramos mais uma vez, como um arquipélago de pequenas unidades sociais, indivíduos, coletivos e comunidades locais sustentadas pelo princípio da autodeterminação e auto-organização. E, com efeito, o conceito que, para Gerbaudo, poderia melhor traduzir essa multiplicidade seria o de “multidão”, utilizado por Antonio Negri e Michael Hardt para dar conta de uma multiplicidade que é formada por singularidades irredutíveis (diferença)[iii].

O livro parece, assim, caracterizar de forma bem homogênea um ciclo que, sem dúvida alguma, também foi objeto de importantes divergências com relação a diferentes plataformas políticas e formas de organização. Em artigo sobre o FSM de Porto Alegre, intitulado Today’s Bandung (2002), Michael Hardt comenta que o clima festivo, celebratório e até caótico poderia ter levado ao esvaziamento da “mais importante diferença política que atravessou o Fórum”: a questão da soberania nacional.

Para o filósofo americano, em tese que já havia sido longamente desenvolvida com Antonio Negri no livro Empire (2000), existiam no FSM duas posições que buscavam responder às forças dominantes da globalização: a primeira, parte do fortalecimento da soberania nacional para reivindicar barreiras e mecanismos defensivos contra a ingerência do capital global; a segunda, assume o terreno da globalização para, questionando o capital tout court (regulado ou não), construir resistências por dentro das relações de poder globais (HARDT, M. 2002, p. 115).

Para Hardt, a tendência soberanista era capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), que sediava o evento, pela ATTAC (Association pour la Taxation des Transactions pour l’Aide aux Citoyens) e pela direção do Le Monde Diplomatique, obtendo uma posição majoritária através da participação nas atividades e mesas centrais do FSM e atraindo a maioria das organizações centralizadas. A tendência alterglobalista, por sua vez, foi expressa por uma miríade de movimentos em rede que seguiam as práticas e a gramática testada nas lutas anteriores de Seattle, Gênova e Buenos Aires, logrando apenas uma posição minoritária no evento (idem).

Outro capítulo dessa divergência foi a própria recepção do livro Empire por autores da esquerda soberanista, presentes também no FSM, que viram no livro uma ameaça à posição anti-imperialista de defesa da soberania nacional que buscava estabelecer uma frente contra as estratégias de dominação conduzidas pelos EUA. Na famosa crítica de Atílio Borón (2004), Negri e Hardt são rechaçados como “complacentes ao Império”, como cúmplices de uma visão do capitalismo “cultivada com esmero pelas principais escolas de negócio dos Estados Unidos e Europa” (BORON, 2004, p. 16), como autores de um livro, não por acaso, “aclamado como uma verdadeira revelação pelos meios de comunicação mais importantes do mundo e intimamente associados à estrutura imperialista” (idem, p. 156).

Portanto, está longe de ser consensual a estratégia mais “autonomista” assumida no contexto dos movimentos antiglobalização na busca do espaço global como terreno de atuação. Pelo contrário, o debate sobre o papel da soberania nacional e das formas de resistências pensadas a partir do Estado-nação foi central durante todo o ciclo, colocando, de um lado, partidos de esquerda e organizações centralizadas e, de outro, movimentos em rede e defensores da auto-organização. O próprio conceito de multidão, fabricado para dar conta desse último mosaico, foi muitas vezes questionado por produzir uma “diluição das lutas revolucionárias” e o abandono de uma posição de classe ou de base popular (PETRAS, J. 2001, p. 28).

Além disso, não só o ciclo antiglobalização adquiriu uma conformação nacional em vários países da região (o caracazo venezuelano, os piqueteiros argentinos, os protestos contra as privatizações no Brasil, a guerra do gás e da água na Bolívia, os movimento indígenas e urbanos no Equador etc.), como alimentou mudanças efetivas nos governos desses países. E, mais uma vez, o debate entre vertentes soberanistas, populistas ou herdeiras do nacional-popular e autonomistas, neo-anarquistas e movimentos em rede esteve presente, indo da discussão entre o conceito de Povo e a multiplicidade de novos sujeitos políticos nas constituintes da Bolívia e do Equador, ao papel da cultura livre e digital na conformação de novas políticas públicas nos governos recém-empossados, como no Brasil[iv].

Ao suprimir a grande influência da tradição soberanista e nacional-popular lationo-americana no contexto do ciclo anti-globalização, Gerbaudo acaba por menosprezar todo o histórico de reflexão sobre o recente ciclo populista no Continente e seus efeitos na terrível crise que ora emerge no interior dessa tradição. Reconhecendo o perfil neo-populista dos governos latino-americanos, a crise só merece um pequeno comentário en passant indicando que há atualmente um giro autoritário realizado por parte desses governos (GERBAUDO, 2017, p. 73). Depois dessa pequena advertência, que não encontra qualquer aprofundamento durante o livro ou relação com a estratégia populista em geral, os governos são destacados por ter tido fortes “vínculos com movimentos populares” ou, no caso brasileiro, “uma forte relação com o movimento dos trabalhadores e várias mobilizações populares” (idem, p. 213).

A pouca atenção dada pelo livro ao populismo latino-americano acaba produzindo efeitos transversais que afetam toda a análise, não se restringindo apenas à caracterização dos embates travados no FSM e no contexto das lutas antiglobalização. Com relação aos impactos da crise global de 2008, por exemplo, Gerbaudo centra sua análise, como já foi mencionado, nos efeitos causados pela “ideologia neoliberal de livre-mercado” (idem, p. 43), com a produção de um batalhão de novos pobres e pessoas precarizadas, em especial jovens, que depois compuseram a frente de batalha do ciclo das acampadas.

Embora a premissa possa ser aceita de forma geral, do ponto de vista da América Latina a análise deve mudar consideravelmente. O impacto da crise global na região, incluindo a perda de legitimidade das fórmulas neoliberais presentes nos próprios governos, provocou um acirramento nas políticas neodesenvolvimentistas e neo-extrativistas, com o aprofundamento de novas formas de populismo econômico e político (o último ganhando contornos caricatos conforme a crise se acentuava). Ao contrário dos ajustes fiscais praticados pela oligarquia financeira na Europa no pós-2008, os “governos progressistas” responderam, não através do fortalecimento de suas prévias tendências neoliberais no campo da estabilidade econômica, mas encontrando na crise um meio de exercer uma virada “anti-neoliberal”, de cunho neonacionalista, satisfazendo, ao mesmo tempo, um grupo de grandes empresários privilegiados e todo o arco da esquerda soberanista que agitava seus manifestos no FSM e alhures.

O Brasil, depois da Venezuela, talvez, seja o caso mais visível da deterioração produzida a partir da escolha de Dilma Rousseff, por Lula, para concorrer à presidência e a consequente adoção de uma “Nova Matriz Econômica”, que na verdade traduzia, em grande parte, uma velha aposta econômica a partir de acentos nacionais-populistas: a) política fiscal liberada das preocupações com relação à inflação; b) protagonismo dos bancos estatais através de repasses do Tesouro; c) protecionismo tarifário; d) estímulo à formação de grandes players nacionais (atualmente todos quebrados ou em fusão com grandes multinacionais); d) redução forçada dos juros; e) tentativa de estabelecer um populismo tarifário, em especial no fornecimento de energia elétrica; f) estímulo a grandes obras e empreendimentos com o resgate, inclusive, de projetos nacionalistas da ditadura militar; g) a promoção de megaeventos (Copa do Mundo, Olímpiadas), com a tentativa de exortação de um orgulho nacionalista, qualificando seus críticos de pessimistas ou ignorantes do protagonismo assumido pelo Brasil no contexto global; h) estímulo inédito ao agronegócio que passa a ser considerado um dos principais setores “produtivos” brasileiros; i) a ampla utilização dos fundos públicos para investimentos relacionados à “Nova Matriz”, produzindo uma nova casta de gestores, em parte oriundos da esquerda nacionalista e sindicalista, e, posteriormente, uma crise financeira nos ativos dos mesmos fundos; j) adoção de uma estratégia militar baseada da ideia de defesa nacional, com o desenvolvimento de submarinos atômicos e aquisição de caças de combate, entre outros exemplos[v].

Esse conjunto de medidas, que produziram um consenso autoritário com reflexos imediatos nas poucas brechas democráticas produzidas nos anos anteriores, ainda sob o empuxo do ciclo alterglobalização, está na base da grande onda de indignação emerge no Brasil em Junho de 2013. Ao contrário das acampadas europeias e americanas que se insurgiram contra a tecnocracia financeira que geria a crise, em um contexto de uma profunda retração econômica, no Brasil, Junho de 2013 constituiu um fenômeno de vidência com relação aos efeitos da virada populista na economia e na política, encontrando eco em outras lutas que já estavam acontecendo na Bolívia, Equador, Argentina, Venezuela, contra as torções soberanistas realizadas pelos “governos progressistas”[vi].

Se, por um lado, a ausência de uma análise qualitativa com relação ao ciclo latino-americano permite a Gerbaudo manter o funcionamento da dicotomia que anima o livro (neo-anarquismo e populismo democrático e a saída pelo tertium genus), por outro, parece ter consequências, não só, na compreensão da emergência de Junho no Brasil, mas nas próprias considerações sobre os desdobramentos dos levantes brasileiros. Ao contrário das claras considerações sobre a reação autoritária nos governos dos países árabes, Gerbaudo prefere não analisar o papel do governo Dilma na organização da repressão aos movimentos e o papel da esquerda dominante na destruição política e subjetiva da “aliança monstruosa” que articulou os círculos ativistas às circularidades mais amplas da sociedade em geral.

Para preencher o vazio, o autor acaba apelando para clivagens simplistas entre “direita” e “esquerda” que já estavam sob um questionamento bem mais interessante na análise das características do novo cidadanismo. A simplificação se torna evidente quando o autor, embora reconhecendo a insatisfação generalizada contra o governo Dilma, afirma que no Brasil “os protestos foram em sua maioria explorados pela direita” (idem, p. 220), ou que houve a partir de março de 2015 uma “escalada da direita”[vii], sem deixar nenhum espaço para uma percepção da indignação dotada de mais nuances, por fora do esquema “tudo ou nada”. Em outro exemplo, o coletivo Fora do Eixo e o projeto Mídia Ninja aparecem como “a mais famosa mídia alternativa que emergiu dos protestos do Movimento de Junho” (idem, p. 221), sem qualquer referência à verdadeira trajetória político-cultural do segundo coletivo, de organização autônoma a braço cultural e mediático subordinado ao FdE, ao governo Dilma e ao Instituto Lula[viii].

Nos próprios marcos de análise estabelecidos por Gerbaudo, no percurso do livro, teria sido muito mais adequado buscar compreender, em primeiro lugar, como os governos progressistas acabam, principalmente a partir da crise de 2008, fortalecendo e reconfigurando relações oligárquicas tradicionais – do agronegócio, aos novos gestores de fundos públicos, de grandes empresários “nacionais” a agentes do sistema de justiça, de gestores do mercado financeiro a uma nova camada de burocratas. Segundo, como o cidadanismo poderia constituir um campo de antagonismo em tensão permanente que extrapola tanto os círculos ativistas da esquerda, como as tentativas de canalizar a indignação para plataformas neoconservadoras.

Vale notar também que as análises europeias sobre o problema na permanência do “extrativismo” na região, que Gerbaudo parece seguir, não dão conta da reconfiguração oligárquica que ocorreu no contexto do populismo latino-americano, fenômeno intitulado por Raúl Zibechi e Decio Machado como “as novas elites sob o marco do progressismo”, a partir da análise do caso brasileiro e boliviano (ZIBECHI, R. MACHADO, D. 2017, pp. 89-127). Essa reconfiguração pressupõe uma mutação qualitativa radical no campo do “velho desenvolvimentismo” e do extrativismo, inserindo-os em um novo ideário de flexibilização produtiva, dotação e modernização em infraestrutura, formação de capital humano, proteção à propriedade industrial e patentes, acordos com transnacionais para suprimento tecnológico, pragmatismo do Estado no incentivo a determinados setores vistos como estratégicos e estímulo ao agronegócio como forma de aumento geral da rentabilidade e capitalização (idem).

Portanto, por mais que no início dos levantes de 2013 o governo federal não fosse o alvo prioritário dos protestos, a necessidade de manter o pacto oligárquico de bases neodesenvolvimentistas resultou, primeiro, na inércia em atender aos desejos e aspirações dos manifestantes e dos cidadãos em geral, depois, na estratégia de repressão generalizada e difusão do medo e, por fim, em uma tentativa de retomar a legitimidade política em 2014 a partir de uma campanha eleitoral completamente falsa e financiada pelo mesmo pacto oligárquico. Se a estratégia fracassou drasticamente para manter a estabilidade política e a continuidade do “governo progressista”, ela foi bem-sucedida em reorganizar todo o campo ativista e militante, que abandona os vetores autônomos desencadeados em Junho de 2013 para orbitar novamente em volta da centralidade petista.

Pode-se dizer que o resultado dessa operação, utilizado o léxico de Gerbaudo, foi a separação entre as máscaras e as bandeiras nacionais, produzindo uma cisão insuperável entre o ativismo e a militância que se identificam à esquerda e o cidadanismo difuso que se abrigou em símbolos nacionais e os apelos à unidade do povo contra a oligarquia. No campo do ativismo, isso foi realizado em dois momentos, primeiro, retirando o apoio público às dimensões mais insurgentes dos protestos através de um consenso midiático que mobilizou tanto a mídia corporativa como as plataformas geridas pela esquerda (a antiga blogosfera lulista); segundo ao retomar o controle dos círculos ativistas através de uma permanente chantagem cuja premissa é a ideia de que todo o campo cidadanista de Junho é conservador e até fascista (o germe da “onda conservadora”).

Nessa linha, se assumirmos o ponto de vista de Gerbaudo sobre o ciclo populista na América Latina, é preciso reconhecer que, no Brasil, o populismo dos governos progressistas não só reconfigurou o pacto oligárquico em novos marcos como, a partir de 2013, passa a atacar a aliança heterodoxa e potente, presente em todo o ciclo das acampadas, entre a dimensão populista insurrecional e os círculos ativistas autonomistas ou neo-anarquistas. Por isso, é difícil dizer, como fazem as análises políticas condescendentes, que a esquerda “não compreendeu Junho 2013” ou que teria “se equivocado” naquele momento. Pelo contrário, não só compreendeu o fenômeno do ponto de vista político e subjetivo, como o atacou em seu ponto mais potente: a relação híbrida entre as máscaras e as bandeiras nacionais, a abertura de uma nova forma de fazer política que não estava dada nas tradições anteriores.

O efeito é triplo: o campo do ativismo perde a autonomia e a capacidade de ação, se convertendo ou em militância tradicional de esquerda ou se espalhando em múltiplos fragmentos identitários que funcionam, muitas vezes, sob uma lógica hermética, exclusivista ou concorrencial; o campo do cidadanismo perde sua dimensão de inovação, canalizando sua indignação para pautas ultraconservadoras ou deixando-se capitanear por grupos oportunistas e performáticos; por fim, forma-se um processo difícil de ser categorizado – extremamente ambíguo e difuso – que recusa a nova polarização entre militância e neoconservadorismo. Esse terreno em constante mutação parece buscar, através de articulações não organizadas e cotidianas, o retorno de uma circulação autônoma da indignação e das aspirações por uma democracia livre do poder oligárquico.

O que pode uma aliança?

É no campo disforme aberto por esse terceiro efeito que reside, atualmente, a possibilidade de perseguirmos os traços das acampadas e suas aspirações por transformações reais e novas instituições. Para isso, ao contrário da análise de Gerbaudo, é preciso reconhecer o fio longo de conformação dos governos progressistas estabelecido desde os debates do FSM, com o campo majoritário definido pela esquerda soberanista, nacionalista e populista. Em segundo lugar, é preciso analisar as consequências da crise de 2008, não como imediata expansão da gestão fiscal neoliberal, mas como um acirramento das tendências populistas nacionalistas no campo político e econômico, que se alimentou de uma nostalgia da tradição do nacional-popular. E, portanto, perceber que foi justamente o pacto oligárquico reconfigurado nesses termos que sustentou as ações de desmantelamento dos levantes de Junho de 2013. Assim, do ponto de vista latino-americano, não teríamos em 2013 uma nova aliança populista democrática e autonomista contra o establishment neoliberal, mas uma aliança híbrida que reúne um conjunto heterogêneo e aberto de práticas políticas que se voltou contra o próprio acirramento populista produzido pelos governos “progressistas” nos últimos anos (que, sem dúvida, dava ao neoliberalismo um caráter no mínimo híbrido e heterodoxo).

Por outro lado, esse fenômeno não parece constituir apenas uma particularidade local dos efeitos das acampadas em solo latino-americano. A ausência de um histórico mais apurado sobre o debate soberanista e populista também impede que Gerbaudo perceba a relação de dupla via estabelecida entre o imaginário político latino-americano e europeu a partir do ciclo anti-globalização. O primeiro, se alimentando de um ideário de soberania popular que poderia ser conquistada através do fortalecimento do estado e de promessas de desenvolvimento que eliminem o nível de pobreza típico dos países de “terceiro mundo”. O segundo, enxergando no ciclo progressista latino-americano um horizonte de esperança para países “desenvolvidos” acossados pela ausência de alternativas, de futuro e pelo aumento da precarização: o “laboratório América Latina”[ix].

Essa expectativa recíproca funciona hoje como um double bind[x] que empurra as duas realidades para um mesmo campo teórico cada vez mais difícil de ser sustentado. Eis o roteiro: a esquerda latino-americana anuncia que o seu “progressismo” é abortado por forças conservadores que sabotam qualquer possibilidade de avanço e desenvolvimento; a esquerda europeia e americana compartilha da ideia, vendo no fenômeno o esfacelamento de seu “laboratório político”, deixando o mundo ainda mais carente de alternativas. Em comum, forma-se a ideia pouco complexa e maniqueísta de uma agenda progressista derrotada por uma homogênea “direita” que avança, de fora para dentro, em uma avalanche irresistível. A clivagem, baseada na exasperação do medo e no pânico moral, acaba provocando o entrincheiramento de organizações políticas, movimentos, círculos de ativismo, militância e de intelectuais críticos, selando a nova unidade através de critérios de pertencimento e eliminação de qualquer visão que reivindique a possibilidade de nuance.

Com efeito, no livro do Gerbaudo, o declínio do Podemos em 2016, após uma fase de crescimento arrebatador, resta sem qualquer explicação, já que o autor opta por não analisar os efeitos negativos para o novo partido de suas conexões populistas com os governos latino-americanos, em especial o venezuelano (exaustivamente explorado pela campanha oposicionista). O mesmo se poderia dizer da inclinação identitária à esquerda que o partido foi fortalecendo a partir de 2015, incluindo a aliança com a Izquierda Unida. Outro exemplo poderia ser tomado da Grécia, com a recusa por parte dos indignados em aderir à deriva nacionalista e soberanista adotada pelos dissidentes do Syriza (Popular Unity), apesar da derrota de Tsipras diante da Troyka. Tudo a indicar uma recusa também das experimentações populistas dos últimos anos.

Por outro lado, na literatura dita “autonomista” é possível perceber a mesma tendência que tem como ponto de partida o grande mal-estar provocado pelo fim da narrativa progressista na América Latina. É interessante pensar que algumas conclusões elaboradas pela crítica autonomista do populismo são muito parecidas às conclusões mencionadas por Gerbaudo. Em Assembly (2017), Antonio Negri e Michael Hardt propõem uma combinação entre autonomia dos movimentos na definição de estratégias e novas formas de liderança concebidas como uma tática móvel e não definitiva, invertendo-se a fórmula leninista. Por sua vez, a América Latina continua sendo apresentada com um “laboratório extraordinário”, em crise por questões ligadas ao extrativismo e à apropriação pela direta das lutas desencadeadas pela esquerda, incluindo as Jornadas de Junho no Brasil. Uma clivagem purista é estabelecida entre o conjunto dos movimentos que podem ser identificados através do conceito de “multidão” e o outro conjunto difuso de indignados qualificados de conservadores.

O efeito acaba sendo o próprio fechamento do ciclo, já que a potência híbrida do movimento acaba encerrada em uma disputa de narrativas ou em guerras culturais protagonizadas por dois grupos opostos entrincheirados simetricamente em suas identidades ameaçadas e reagindo, aí sim, de forma conservadora. Por isso, a dupla pinça (o double bind) acaba funcionando também politicamente, recolhendo as partículas livres de Junho de 2013, ou da Primavera Árabe em geral, reordenando-as em torno de palavras de ordem e de práticas de grupismo político que achatam as multiplicidades e a abertura produzida pelo acontecimento.

Por outro lado, para não ser tragado pela verdadeira lei da gravidade da polarização conservadora, seria preciso pensar nos traços que ainda não foram capturados ou homogeneizados e que permanecem em uma tensão permanente. Talvez aí resulte a grande dificuldade encontrada por Gerbaudo para analisar as consequências das acampadas no Brasil, tidas como “ambíguas” e “complexas” (GERBAUDO, p. 229). Sem ter um desfecho militar ou armado, nem a produção de novos partidos ou confluências facilmente reconhecidos pela esquerda, a situação Brasil exige uma análise que não se limite a um decalque do material empírico através de categorias políticas que polarizaram o debate desde o ciclo antiglobalização, mas que seja um permanente mapeamento dessas tensões: do material intensivo e da produção de subjetividade que ainda não foram reagrupados.

Assim, é preciso reconhecer que acontecimentos com os da Primavera Árabe, mas também do ciclo de 1968 e tantos outros, longe estarem submetidos a um campo de enunciados e visibilidades já codificados em extratos políticos e históricos, abrem um novo espaço-tempo, fora de qualquer conjuntura, que coloca tudo em variação, com incidências no passado, no futuro, na organização dos corpos, nos desejos, no pensamento, na imaginação, no desejo e na vida. Uma irrupção do intempestivo que arrasta as velhas formas para um espaço rarefeito e árido, onde as velhas categorias não funcionam, e as novas ainda não ganharam um contorno.

É este cidadanismo intempestivo, com sua recusa a se fechar nas tradicionais linhagens políticas à esquerda ou à direita, irredutível às próprias categorias forjadas pela história, que renova e mantém o enigma do ciclo das acampadas. Trata-se de perceber como traços de autonomia, de contrapoder, de produção de cadeias majoritárias de ação, de luta contra a corrupção e a usurpação pela Oligarquia, de exigência de cidadania, de expressão de novas aspirações e linguagens, passam a circular de acordo com uma lógica aberrante, sendo dificilmente mapeadas pela quadratura do tracking acadêmico e político.

Relembrando o início desse texto, apesar do ótimo resultado alcançado pelo livro, talvez estejamos diante dos limites de uma análise baseada nas técnicas do travelling e da panorâmica. Duas formas de recortar as visibilidades ainda presas à ideia de que as linhas de ação estariam claras, que o seu contexto estaria definido, que basta invocar a virtude dos grandes personagens e seu poder de conclusão. O material empírico adquire até movimento e desenvoltura, mas ainda está restrito a uma montagem de efeitos conciliatórios e englobantes.

Para lidarmos como a dimensão intempestiva e informe do cidadanismo que irrompe nas acampadas e protestos, seria preciso acrescentar aquilo que Deleuze chamava de “pura imagem ótico-sonora”: uma ação que flutua na situação, mais do que a arremata e a encerra, que tem como meio um “espaço qualquer” e não uma incidência determinada e circunscrita, que desencadeia um investimento de sentidos que aumenta a aptidão de ver e de ouvir, recusando as anteriores formas de organizar a percepção e ação (DELEUZE, 2013 p. 13).

Ao invés de uma virada populista, ou de um laboratório autonomista (sempre avaliados ou formulados por categorias políticas desenvolvidas intramuros – o debate entre hegemonia e/ou autonomia na cultura de esquerda), a cidadania aparece como uma viração contínua ou como a construção de experiências autônomas que transbordam as visibilidades e os enunciados já codificados pelas formas de percepção à esquerda e à direita. Se o cidadanismo é o “ano zero” para pensarmos novas lutas democráticas, sua lógica aberrante, sua errância e capacidade de mutação, suas articulações híbridas e disformes, parecem ainda manter o vivo o enigma sobre o que poderiam as máscaras e as bandeiras.


Referências bibliográficas:

BORON, Atilio. Império e imperialismo: uma lectura crítica de Michael Hardt y Antonio Negri. Buenos Aires: CLACSO, 2004.

DELEUZE, G. Cinema 2. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990.

GERBAUDO, P. The mask and the flag: Populism, Citizenism and Global Protest. New York: Oxford University Press, 2017.

HARDT, M. Today’s Bandung. In: New Left Review, n. 14, março-abril, 2002.

MACHADO, D. ZIBECHI, R. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progressismo. La Paz: CEDLA, 2016.

NEGRI, A; HERDT, M. Assembly. New York: Oxford University Press, 2017.

PETRAS, J. “Imperio con imperialismo”, In: Rebelión, 2002. Disponível em http:// www.rebelion.org/petras/imperiopetrasmi.html.

Notas:

[i] O debate em torno do livro The mask and the flag: Populism, Citizenism and Global Protest (2017), de Paolo Gerbaudo, foi sugerido por Bruno Cava, durante as atividades do colóquio Populismos, ocorrido no dia 26 de outubro de 2017, na Faculdade de Direito da UERJ. O evento foi organizado pela Rede Universidade Nômade em parceria com o grupo de pesquisa Assessorias Jurídicas do Comum.

[ii] Prof. Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ. Participa da Rede Universidade Nômade.

[iii] Sobre o conceito de multidão, cf. NEGRI, A. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Rio de Janeiro: DP&A, 2003; NEGRI, A; HARDT, M. Império. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2005.NEGRI, A; HARDT, M. Multidão. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[iv] Para esse propósito, cf. PRADA, R. Análise da nova constituição política do Estado. In: LABTec/ESS/UFRJ. Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: UFRJ, n. 25-26, maio-dez., 2008, pp. 73-89; SCHAVELZON, SALVADOR. La Assembleya Constituyente de Bolivia: Etnografia del Nacimiento de un Estado Plurinacional. Tese de doutorado apresentado ao Museu Nacional da UFRJ no programa de pós-graduação em Antropologia Social, 2010; Tarin; B; BELISÁRIO, A. (Orgs). Copyfight: pirataria e cultura livre. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2012. COCCO, G. NEGRI, A. Globa(AL): Biopoder e lutas em uma América Latina globalizada. Rio de Janeiro: Record, 2005.

[v] Argumento completo em MENDES, Alexandre; CAVA, Bruno. A esquerda que venceu. IHU online, 06 de outubro de 2015. Cf. também: FIORI, José Luiz. A miséria do novo desenvolvimentismo. Jornal Valor do dia 29 de novembro de 2011 COCCO, Giuseppe. KorpoBraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2013.

[vi] Sobre o tema, cf. MENDES, A. FALBO, R. N. TEIXEIRA, M. (Orgs) O fim da narrativa progressista na América do Sul. Juiz de Fora: Editar, 2016; MACHADO, D. ZIBECHI, R. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progressismo. La Paz: CEDLA, 2016. Há também um intenso debate realizado em revistas e jornais digitais. Uma boa sistematização pode ser encontrada no artigo: CAVA, B. Podem os governos progressistas sobreviver ao seu próprio sucesso? In: IHU Online, janeiro de 2006. Dentre as publicações citadas destacamos: “Nada volverá a ser igual en América Latina”, por Raúl Zibechi; “Notas sobre el agotamiento del ciclo progresista latinoamericano”, por Gerardo Muñoz; “El fin del relato progresista en America Latina”, por Salvador Schavelzon; “Venezuela: el ocaso de los ídolos”, por Pablo Stefanoni, ; “El agotamiento kirchnerista”, por Salvador Schavelzon. Português; “Junho no Equador e o correísmo”, por Bruno N. Dias,  “Venezuela: el ocaso de los ídolos”, por Pablo Stefanoni. Acesso em 20 de novembro de 2017.

[vii] Sobre as manifestações do dia 15 de março, cf. COCCO, G. As manifestações de março são o avesso de Junho de 2013. Entrevista concedida ao jornal IHU online, no dia 23 de março de 2015.

[viii] Cf por todos: UNINOMADE. O comum e a exploração 2.0, 2012. Acabou a magia: uma intervenção sobre o Fora do Eixo e a Mídia Ninja, 2013. 

[ix] Cf. CAVA, B. MENDES, A. O podemos e os enigmas que vêm do sul. In: Le Monde Diplomatique – Brasil. Edição de maio de 2015. 

[x] Tomamos o conceito de Deleuze e Guattari, Cf. DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia 2, vol. 1. São Paulo: Editora, 34, 2012.

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O que podem as máscaras e as bandeiras? Leitura do livro The Mask and the Flag - Instituto Humanitas Unisinos - IHU