"Eu não barateio a doutrina, eu sigo o Concílio." Entrevista com o Papa Francisco

Mais Lidos

  • “Os israelenses nunca terão verdadeira segurança, enquanto os palestinos não a tiverem”. Entrevista com Antony Loewenstein

    LER MAIS
  • Golpe de 1964 completa 60 anos insepulto. Entrevista com Dênis de Moraes

    LER MAIS
  • “Guerra nuclear preventiva” é a doutrina oficial dos Estados Unidos: uma visão histórica de seu belicismo. Artigo de Michel Chossudovsky

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

21 Novembro 2016

Jubileu, ecumenismo, Concílio: uma entrevista com Francisco às vésperas do fechamento da Porta Santa. "A Igreja não é um time de futebol que procura torcedores."

A reportagem é de Stefania Falasca, publicada no jornal Avvenire, 17-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

"O Jubileu? Eu não fiz um plano. As coisas vieram. Simplesmente, me deixei levar pelo Espírito. A Igreja é o Evangelho, não é um caminho de ideias. Este Ano sobre a misericórdia é um processo amadurecido ao longo do tempo, desde o Concílio... Também no campo ecumênico o caminho vem de longe, com os passos dos meus antecessores. Esse é o caminho da Igreja. Não sou eu. Eu não dei nenhuma aceleração. Na medida em que seguimos em frente, o caminho parece ir mais rápido, é o motus in fine velocior."

Casa Santa Marta, é meio-dia. A conversa com o Papa Francisco entra diretamente nas dinâmicas de um período eclesial intenso, e não podia deixar de se deter, em particular, sobre os encontros e os passos ecumênicos dados, que pontilharam também as viagens apostólicas neste Ano da misericórdia que está prestes a se concluir, e sobre a busca prioritária da unidade dos cristãos, neste tempo histórico dilacerado por conflitos.

Depois da viagem à Suécia, eu lhe disse por telefone que, durante o voo de volta a Roma, dialogando com os jornalistas sobre aquele importante encontro reconciliado com os luteranos, tinha ficado sem resposta um comentário seu, e que, há muito tempo, eu pensava em lhe dirigir algumas interrogações justamente sobre o ecumenismo. Ele me pegou no contrapé, dizendo-me que poderia responder imediatamente. "Mas agora...?", eu lhe disse, e ele me concedeu um bem-humorado adiamento.

No encontro, pelo menos eu cheguei com antecedência. Entrei com o meu filho, enquanto chovia lá fora. Mas ele já estava esperando na porta. Como em outras circunstâncias, é no limiar que eu o encontrei, como o pai de sempre, como na primeira vez que eu o encontrei, há muitos anos. A paciência ao esperar parece ser a sua fibra, uma razão de ser, o seu ofício.

Ele pegou os óculos e folheou sem pressa a enorme quantidade de perguntas. À margem, fez algumas anotações. Enquanto se levantava para dispor as flores banhadas de chuva, eu pensei nas “gotas finais” do Ano Santo, na Porta da misericórdia que está prestes a se fechar e reli uma observação de 50 anos atrás do patriarca ortodoxo Atenágoras no diálogo com Olivier Clément, que me surpreendeu: "Deveremos perscrutar mais profundamente o destino de Pedro no Evangelho. Pedro – escreveu São Gregório Palamas – é o próprio protótipo do homem novo, ou seja, o pecador perdoado. Ele pode estar aqui apenas para recordar à Igreja que ela vive do perdão de Deus e não tem outra força senão a Cruz. Se na Igreja existe um bispo que é ‘o análogo’ de Pedro, então estamos bem longe do poder e da glória mundana. E se Pedro esquecesse que o seu testemunho fundamental é o do pecador perdoado, então, à imagem de Paulo em Antioquia, profetas virão se opor a ele ‘de rosto aberto’ (Gl 2, 11)".

Eu olho para o papa em silêncio e depois lhe pergunto:

Santo Padre, o que significou para o senhor este Ano de Misericórdia?

Quem descobre que é muito amado começa a sair da solidão ruim, da separação que leva a odiar os outros e a si mesmo. Espero que muitas pessoas tenham descoberto que são muito amadas por Jesus e tenham se deixado abraçar por Ele. A misericórdia é o nome de Deus e é também a Sua fraqueza, o Seu ponto fraco. A Sua misericórdia O leva sempre ao perdão, a se esquecer dos nossos pecados. Eu gosto de pensar que o Onipotente tem uma péssima memória. Uma vez que Ele perdoa você, Ele se esquece. Porque é feliz em perdoar. Para mim, isso basta. Assim como para a mulher adúltera do Evangelho "que muito amou". "Porque Ele muito amou." Todo o cristianismo está aqui.

Mas foi um Jubileu sui generis, com muitos gestos emblemáticos...

Jesus não pede grandes gestos, mas apenas o abandono e o reconhecimento. Santa Teresa de Lisieux, que é doutora da Igreja, na sua "pequena via" para Deus, indica o abandono da criança, que adormece sem reservas entre os braços do seu pai, e lembra que a caridade não pode permanecer fechada no fundo. Amor a Deus e amor ao próximo são dois amores inseparáveis.

Foram realizadas as intenções pelas quais o senhor o havia convocado?

Mas eu não fiz um plano. Eu simplesmente fiz aquilo que o Espírito Santo me inspirava. As coisas vieram. Eu me deixei levar pelo Espírito. Tratava-se somente de ser dócil ao Espírito Santo, de deixar que Ele fizesse. A Igreja é o Evangelho, é a obra de Jesus Cristo. Não é um caminho de ideias, um instrumento para afirmá-las. E, na Igreja, as coisas entram no tempo quando o tempo está maduro, quando ele se oferece.

Foi também um Ano Santo extraordinário...

Foi um processo que amadureceu no tempo, por obra do Espírito Santo. Antes de mim, houve São João XXIII que, com a Gaudet mater Ecclesia, no "remédio da misericórdia", indicou o caminho a seguir na abertura do Concílio; depois, o Bem-aventurado Paulo VI, que, na história do Samaritano, viu o seu paradigma. Depois, houve o ensinamento de São João Paulo II, com a sua segunda encíclica, Dives in misericordia, e a instituição da Festa da Divina Misericórdia. Bento XVI disse que "o nome de Deus é misericórdia". São todos pilares. Assim, o Espírito leva em frente processos na Igreja, até o cumprimento.

Portanto, o Jubileu também foi o Jubileu do Concílio, hic et nunc, em que o tempo da sua recepção e o tempo do perdão coincidem...

Fazer a experiência vivida do perdão que abarca a família humana inteira é a graça que o ministério apostólico anuncia. A Igreja existe somente como instrumento para comunicar às pessoas o desígnio misericordioso de Deus. No Concílio, a Igreja sentiu a responsabilidade de estar no mundo como sinal vivo do amor do Pai. Com a Lumen gentium, ela voltou para as fontes da sua natureza, ao Evangelho. Este desloca o eixo da concepção cristã de um certo legalismo, que pode ser ideológico, à Pessoa de Deus que se fez misericórdia na encarnação do Filho. Alguns – ele pensa em certas respostas à Amoris laetitia – continuam não compreendendo, ou branco ou preto, mesmo que seja no fluxo da vida que se deve discernir. O Concílio nos disse isso. Os historiadores, porém, dizem que um Concílio, para ser bem absorvido pelo corpo da Igreja, precisa de um século... Nós estamos na metade.

Neste tempo, todavia, são significativos os encontros e as viagens ecumênicas empreendidas. Em Lesbos, com o Patriarca Bartolomeu e Jerônimo, em Cuba com o Patriarca de Moscou, Kirill, em Lund para a comemoração conjunta da Reforma Luterana. Foi o Ano da Misericórdia para favorecer todas essas iniciativas com as outras Igrejas cristãs?

Eu não diria que esses encontros ecumênicos são o fruto do Ano da Misericórdia. Não. Porque mesmo todos eles fazem parte de um percurso que vem de longe. Não é uma coisa nova. São apenas passos a mais, ao longo de um caminho que iniciou há muito tempo. Desde que foi promulgado o decreto conciliar Unitatis redintegratio, mais de 50 anos atrás, e se redescobriu a fraternidade cristã baseada no único batismo e na mesma fé em Cristo, o caminho na estrada da busca da unidade seguiu em frente com passos pequenos e grandes, e deu os seus frutos. Eu continuo seguindo esses passos.

Os passos dados pelos seus antecessores...

Todos aqueles que foram dados pelos meus antecessores. Assim como um passo a mais foi aquela conversa do Papa Luciani com o metropolita russo Nikodim, que morreu em seus braços, e, abraçado ao irmão bispo de Roma, Nikodim lhe disse coisas tão bonitas sobre a Igreja. Lembro-me do funeral de São João Paulo II. Estavam todos os chefes das Igrejas do Oriente: essa é a fraternidade. Os encontros e também as viagens ajudam essa fraternidade, a fazê-la crescer.

O senhor, porém, em menos de quatro anos, se encontrou com todos os primazes e os responsáveis das Igrejas cristãs. Esses encontros atravessam o seu pontificado. Por que essa aceleração?

É o caminho do Concílio, que segue em frente, se intensifica. Mas é o caminho, não sou eu. Esse caminho é o caminho da Igreja. Eu encontrei os primazes e os responsáveis, é verdade, mas também os meus outros antecessores fizeram os seus encontros com esses ou outros responsáveis. Eu não dei nenhuma aceleração. Na medida em que seguimos em frente, o caminho parece ir mais rápido, é o motus in fine velocior, para usar a expressão segundo aquele processo expressado na física aristotélica.

Como o senhor vive pessoalmente essa solicitude nos encontros com os irmãos das outras Igrejas cristãs?

Eu a vivo com muita fraternidade. A fraternidade se sente. Há Jesus no meio. Para mim, são todos irmãos. Abençoamo-nos uns aos outros, um irmão abençoa o outro. Quando fomos com o Patriarca Bartolomeu e Jerônimo para Lesbos, na Grécia, para encontrar os refugiados, sentimo-nos uma coisa só. Éramos um. Um. Quando eu fui ao encontro do Patriarca Bartolomeu no Fanar de Istambul para a festa de Santo André, para mim, foi uma grande alegria. Na Geórgia, eu me encontrei com o Patriarca Ilia, que não tinha ido para Creta para o Concílio ortodoxo. A sintonia espiritual que eu tive com ele foi profunda. Eu me senti diante de um santo, um homem de Deus pegou a minha mão, me disse coisas bonitas, mais com os gestos do que com as palavras. Os patriarcas são monges. Você vê por trás de uma conversa que eles são homens de oração. Kirill é um homem de oração. Também o patriarca copta Twadros, que eu encontrei, entrando na capela, tirava os sapatos e ia rezar. O Patriarca Daniel da Romênia, há um ano, me presenteou um livro em espanhol sobre São Silvestre do Monte Athos. Eu lia a vida desse grande monge ainda em Buenos Aires: "Rezar pelos homens é derramar o próprio sangue". Os santos nos unem dentro da Igreja, atualizando o seu mistério. Com os irmãos ortodoxos, estamos a caminho, somos irmãos, nos amamos, nos preocupamos juntos, eles vêm estudar entre nós e conosco. Bartolomeu também estudou aqui.

Com o Patriarca Ecumênico Bartolomeu, sucessor do apóstolo André, vocês já deram muitos passos juntos, em plena sintonia nos pronunciamentos recíprocos. Sustenta-os nisso o amor que transformou a vida dos Apóstolos Pedro e André que eram irmãos...

Em Lesbos, enquanto cumprimentávamos a todos juntos, havia um menino ao qual eu tinha me inclinado. Mas eu não interessava ao menino, ele olhava para trás de mim. Eu me viro e vejo por quê: Bartolomeu tinha os bolsos cheios de balas e as estava dando às crianças. Esse é Bartolomeu, um homem capaz de levar em frente, entre tantas dificuldades, o Grande Concílio ortodoxo, de falar de teologia de alto nível e de estar simplesmente com as crianças. Quando ele vinha para Roma, ele ocupava, em Santa Marta, o quarto onde eu estou agora. A única crítica que ele me fez é que ele teve que mudar de quarto.

O senhor continua se encontrando com frequência com os chefes das outras Igrejas. Mas o bispo de Roma não deve se ocupar em tempo integral da Igreja Católica?

O próprio Jesus reza ao Pai para pedir que os seus sejam uma coisa só, para que assim o mundo creia. É a Sua oração ao Pai. Desde sempre, o bispo de Roma é chamado a conservar, a buscar e servir essa unidade. Sabemos também que não podemos curar por nós mesmos as feridas das nossas divisões, que dilaceram o corpo de Cristo. Portanto, não podem ser impostos projetos ou sistemas para voltarmos a estar unidos. Para pedir a unidade entre nós, cristãos, só podemos olhar para Jesus e pedir que o Espírito Santo opere entre nós. Que seja Ele que faça a unidade. No encontro de Lund com os luteranos, eu repeti as palavras de Jesus, quando diz aos seus discípulos: "Sem mim, vocês não podem fazer nada".

Que significado teve o fato de comemorar com os luteranos na Suécia os 500 anos da Reforma? Foi uma "fuga para a frente" da sua parte?

O encontro com a Igreja Luterana em Lund foi um passo a mais no caminho ecumênico que iniciou há 50 anos e em um diálogo teológico luterano-católico que deu os seus frutos com a Declaração Comum, assinada em 1999, sobre a doutrina da Justificação, isto é, sobre como Cristo nos torna justos salvando-nos com a Sua Graça necessária, ou seja, o ponto a partir do qual tinham partido as reflexões de Lutero. Portanto, voltar ao essencial da fé para redescobrir a natureza daquilo que nos une. Antes de mim, Bento XVI tinha ido para Erfurt e ele tinha falado cuidadosamente sobre isso, com muito clareza. Ele tinha repetido que a pergunta sobre "como eu posso ter um Deus misericordioso?" tinha penetrado no coração de Lutero e estava por trás de toda a sua busca teológica e interior. Houve uma purificação da memória. Lutero queria fazer uma reforma que devia ser como um remédio. Depois, as coisas se cristalizaram, se misturaram aos interesses políticos da época, e acabou-se no cuius regio eius religio, pelo qual era preciso seguir a confissão religiosa de quem tinha o poder.

Mas há quem pense que, nesses encontros ecumênicos, o senhor queira "baratear" a doutrina católica. Alguns disseram que se quer "protestantizar" a Igreja...

Isso não me tira o sono. Eu continuo no caminho de quem me precedeu, eu sigo o Concílio. Quanto às opiniões, sempre é preciso distinguir o espírito com o qual são ditas. Quando não há um mau espírito, elas também ajudam a caminhar. Outras vezes, logo se vê que as críticas são feitas aqui e ali para justificar uma posição já assumida, não são honestas, são feitas com mau espírito para fomentar divisão. Logo se vê que certos rigorismos nascem de uma falta, de querer esconder dentro de uma armadura a própria triste insatisfação. Se você assistir ao filme “A festa de Babette”, há esse comportamento rígido.

Com os luteranos, também houve um forte apelo a trabalhar juntos por aqueles que se encontram em estado de necessidade. Então, é preciso deixar de lado as questões teológicas e sacramentais, e apontar apenas para o compromisso social e cultural comum?

Não se trata de deixar de lado algo. Servir aos pobres significa servir a Cristo, porque os pobres são a carne de Cristo. E, se servimos aos pobres juntos, isso significa que nós, cristãos, nos reencontramos unidos ao tocar as chagas de Cristo. Eu penso no trabalho que, depois do encontro de Lund, a Cáritas e as organizações de caridade luteranas podem fazer juntas. Não é uma instituição, é um caminho. Certos modos de contrapor as "coisas da doutrina" às "coisas da caridade pastoral", ao contrário, não estão de acordo com o Evangelho e criam confusão.

A comemoração conjunta de Lund marcou um momento de aceitação mútua e um nível de compreensão recíproca profunda. Mas, a partir daí, como é possível resolver as questões eclesiológicas ainda em aberto e também aquelas a respeito do ministério e dos sacramentos, em particular da Eucaristia, que nos separam da Igreja Luterana? Como é possível superar essas questões para se poder ir rumo a uma unidade que seja visível para o mundo?

A Declaração Conjunta sobre a Justificação é a base para poder continuar o trabalho teológico. O estudo teológico deve seguir em frente. Há o trabalho que está sendo feito pelo Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos. O caminho teológico é importante, mas sempre junto com o caminho de oração, fazendo, juntos, obras de caridade. Obras que são visíveis.

Ao Patriarca de Moscou, Kirill, o senhor também disse que "a unidade se faz caminhando", "a unidade não virá como um milagre no fim, caminhar juntos já é fazer a unidade". O senhor repete isso muitas vezes. Mas o que significa?

A unidade não se faz porque nos colocamos de acordo entre nós, mas porque caminhamos seguindo Jesus. E caminhando por obra d’Aquele que seguimos, podemos nos descobrir unidos. É o caminhar atrás de Jesus que une. Converter-se significa deixar que o Senhor viva e opere em nós. Assim, descobrimos que nos encontramos unidos também na nossa missão comum de anunciar o Evangelho. Caminhando e trabalhando juntos, damo-nos conta de que já estamos unidos no nome do Senhor, e que, portanto, não somos nós que criamos a unidade. Damo-nos conta de que é o Espírito que nos impele e nos leva para a frente. Se você é dócil ao Espírito, será Ele que irá lhe dizer o passo que pode dar. O resto é Ele quem faz. Não se pode ir atrás de Cristo se Ele não o leva, se o Espírito não o impulsiona com a Sua força. Por isso, é o Espírito o artífice da unidade entre os cristãos. É por isso que eu digo que a unidade se faz a caminho, porque a unidade é uma graça que se deve pedir, e também porque eu repito que todo proselitismo entre cristãos é pecaminoso. A Igreja nunca cresce por proselitismo, mas "por atração", como escreveu Bento XVI. O proselitismo entre os cristãos, portanto, é em si mesmo um pecado grave.

Por quê?

Porque contradiz a própria dinâmica de como nos tornamos e permanecemos cristãos. A Igreja não é um time de futebol que busca torcedores.

Então, quais são os caminhos a serem tomados para a unidade?

Fazer processos em vez de ocupar espaços é a chave também do caminho ecumênico. Neste momento histórico, a unidade se faz em três caminhos: caminhar juntos com as obras de caridade, rezar juntos e, depois, reconhecer a confissão comum assim como ela se expressa no martírio comum recebido no nome de Cristo, no ecumenismo do sangue. Lá se vê que o próprio Inimigo reconhece a nossa unidade, a unidade dos batizados. O Inimigo não erra nisso. E essas são todas expressões de unidade visível. Rezar juntos é visível. Fazer obras de caridade juntos é visível. O martírio compartilhado no nome de Cristo é visível.

No entanto, entre os católicos, ainda não parece ser tão viva uma sensibilidade pela busca da unidade entre os cristãos e uma percepção da dor da divisão...

O encontro de Lund, assim como todos os outros passos ecumênicos, também foi um passo à frente para levar a compreender o escândalo da divisão, que fere o corpo de Cristo e que, também diante do mundo, não podemos nos permitir. Como podemos dar testemunho da verdade do amor se brigamos, se nos separarmos entre nós? Quando eu era criança, não se falava com os protestantes. Havia um sacerdote em Buenos Aires que, quando os evangélicos vinham rezar com as barracas, ele mandava o grupo de jovens queimá-las. Agora, os tempos mudaram. O escândalo deve ser superado simplesmente fazendo as coisas juntos, com gestos de unidade e de fraternidade.

Em Cuba, quando o senhor se encontrou com o Patriarca Kirill, as suas primeiras palavras foram: "Temos o mesmo batismo. Somos bispos".

Quando eu era bispo de Buenos Aires, davam-me alegria todas as tentativas implementadas por tantos sacerdotes para facilitar a administração dos batismos. O batismo é o gesto com o qual o Senhor nos escolhe, e, se reconhecemos que estamos unidos no batismo, isso significa que estamos unidos naquilo que é fundamental. Essa é a fonte comum que une todos nós, cristãos, e alimenta todo possível passo novo nosso para voltar à plena comunhão entre nós. Para redescobrir a nossa unidade, não devemos "ir além" do batismo. Ter o mesmo batismo significa confessar juntos que o Verbo se fez carne: isso nos salva. Todas as ideologias e as teorias nascem daqueles que não param nisso, que não permanecem na fé que reconhece Cristo que veio na carne, e que querem "ir além". Daí nascem todas as posições que tiram da Igreja a carne de Cristo, que "descarnam" a Igreja. Se olharmos junto para o nosso batismo comum também somos libertos da tentação do pelagianismo, que quer nos convencer de que nos salvamos por nossa força, com os nossos ativismos. E permanecer no batismo também nos salva da gnose. Esta última desnaturaliza o cristianismo, reduzindo-o a um percurso de conhecimento, que pode abrir mão do encontro real com Cristo.

O Patriarca Bartolomeu, em um entrevista ao Avvenire, disse que a raiz da divisão foi a penetração de um "pensamento mundano" na Igreja. Para o senhor, essa também é a causa da divisão?

Eu continuo pensando que o câncer na Igreja é o fato de se glorificar uns aos outros. Se alguém não sabe quem é Jesus, ou nunca O encontrou, sempre pode encontrá-Lo. Mas se alguém está na Igreja e se move nela porque, precisamente no âmbito da Igreja, cultiva e alimenta a sua fome de domínio e de autoafirmação, tem uma doença espiritual, crê que a Igreja é uma realidade humana autossuficiente, em que tudo se move de acordo com lógicas de ambição e poder. Na reação de Lutero, também havia isto: a recusa de uma imagem de Igreja como uma organização que podia seguir em frente abrindo mão da Graça do Senhor ou considerando-a como uma posse descontada, garantida a priori. E essa tentação de construir uma Igreja autorreferencial, que leva à contraposição e, depois, à divisão, que sempre retorna.

Em relação aos ortodoxos, frequentemente cita-se a chamada "fórmula Ratzinger", enunciada pelo teólogo que depois se tornou papa: aquela segunda a qual, "no que diz respeito ao primado do papa, Roma deve exigir das Igrejas ortodoxas nada mais do que aquilo que estabelecido e vivido no primeiro milênio". Mas o que a perspectiva da Igreja do início e dos primeiros séculos pode sugerir de essencial também no tempo presente?

Devemos olhar para o primeiro milênio, ele sempre pode nos inspirar. Não se trata de voltar atrás de maneira mecânica, não é simplesmente dar "marcha à ré": lá há tesouros válidos também hoje. Antes eu falava da autorreferencialidade, o hábito pecaminoso da Igreja de olhar demais para si mesma, como se acreditasse que tem luz própria. O Patriarca Bartolomeu disse a mesma coisa ao falar de "introversão" eclesial. Os Padres da Igreja dos primeiros séculos tinham claro que a Igreja vive instante por instante da Graça de Cristo. Por isso – eu já disse isto outras vezes – diziam que a Igreja não tem luz própria e a chamavam de mysterium lunae, o mistério da lua. Porque a Igreja dá luz, mas não brilha com luz própria. E, quando a Igreja, em vez de olhar para Cristo, olha demais para si mesma, vêm também as divisões. Foi o que aconteceu depois do primeiro milênio. Olhar para Cristo nos liberta desse hábito e também da tentação do triunfalismo e do rigorismo. E nos faz caminhar juntos na estrada da docilidade ao Espírito Santo, que nos leva à unidade.

Em diversas Igrejas ortodoxas, há resistência ao caminho rumo à unidade, como as daqueles que o Metropolita Ioannis Zizioulas define como "talibãs ortodoxos". Algumas resistências ainda podem existir também no lado católico. O que se deve fazer?

O Espírito Santo leva as coisas a cumprimento, com os tempos que Ele estabelece. Por isso, não podemos ficar impacientes, desencorajados, ansiosos. O caminho requer paciência para conservar e melhorar aquilo que já existe, que é muito mais do que aquilo que divide. E testemunhar o Seu amor por todas as pessoas, para que o mundo creia.

Leia mais:

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

"Eu não barateio a doutrina, eu sigo o Concílio." Entrevista com o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU