A construção interrompida. O golpe civil-militar segundo Celso Furtado. Entrevista especial com Ricardo Ismael de Carvalho

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29 Março 2014

"O golpe de 1964 é um desfecho trágico para uma geração que sonhou com um Brasil que se modernizasse na economia, mas que também avançasse no ponto de vista democrático e social", constatava Celso Furtado.

“É evidente que o golpe é um desfecho trágico para uma geração que sonhou com um Brasil que se modernizasse na economia, mas que também avançasse no ponto de vista democrático e social. É uma geração impedida de levar a cabo um projeto concebido por tantos anos. (...) O livro [Brasil, a Construção Interrompida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992], portanto, tenta resgatar uma bandeira que foi muito carregada por Celso Furtado e sua geração: a ideia de retomar a construção de um Brasil economicamente moderno e forte, democrático e socialmente justo. Essa é a construção interrompida”, esclarece o professor e diretor do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, Ricardo Ismael de Carvalho, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.

Poucos anos após a reabertura democrática do Brasil, Celso Furtado tenta diagnosticar a situação político-econômica nacional da época, mas a interpreta a partir dos impactos gerados pelo Golpe Civil-Militar de 1964, embora o contexto globalizante da década de 1990 impunha novos desafios. “O livro Brasil: a construção interrompida vem em um momento de muita inquietação intelectual de Celso Furtado, em um contexto histórico marcado pela redemocratização e crise econômica no Brasil, tendo como pano de fundo a lógica da globalização. A partir dos anos 1990, depois da Constituição de 1988, o desafio nacional é diferente daquele dos anos 1950, marcado pela Guerra Fria e pela busca por industrialização. Os desafios são outros: que o país fosse capaz de manter a unidade federativa em um mundo onde, muitas vezes, os vínculos de um estado brasileiro com o exterior são maiores do que internamente com os demais estados”, destaca Carvalho. “Furtado era um reformista, e sem dúvida nenhuma, queria um capitalismo regulado, cuja inspiração é o Estado de bem-estar social. (...) Ele deseja um capitalismo que garanta emprego, educação, saúde e previdência, que são os pilares clássicos do Estado de bem-estar social”, complementa.

Foto: pgderolle.wordpress.com

Ricardo Ismael de Carvalho é graduado em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Trabalhou na Companhia Hidro Elétrica do São Francisco, empresa integrante do grupo Eletrobrás, no período de 1984 a 1992, na qual foi também membro eleito da Comissão Sindical do Sindicato dos Urbanitários de Pernambuco. Em 1992 iniciou uma transição profissional e concluiu o mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj, onde também se doutorou em Ciência Política, em 2001.

Realizou pós-doutorado no Centro de Estudos da Metrópole - CEM, em São Paulo, em 2013. Atualmente é professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio, onde leciona desde 1995, e diretor do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.

As obras de Celso Furtado continuam a ser editadas permanentemente nesses dez anos desde a morte dele. O ano passado foi o livro Essencial Celso Furtado (São Paulo: Companhia das Letras/Penguin, 2013), seleção de textos dele, tanto de economia como de política, cultura e ciência. Este ano está previsto o lançamento do título Obra autobiográfica (São Paulo: Companhia das Letras, 2014) e, também, Anos de Formação: 1938-1948 — o jornalismo, o serviço público, a guerra, o doutorado. Todas as obras foram organizadas por Rosa Freire d’Aguiar, esposa de Celso Furtado.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a importância da obra Brasil, a Construção Interrompida para entendermos a história político-econômica do Brasil após o Golpe de 1964?

Ricardo Ismael de Carvalho – A primeira edição do livro “Brasil: a construção interrompida” foi publicada em 1992. A obra retoma uma preocupação constante de Celso Furtado : olhar o país como um Estado-nação em formação, cujo grande desafio é definir um projeto de desenvolvimento que consiga integrar os interesses muitas vezes contraditórios e divergentes dos Estados que formam a federação. Em 1999, entrevistando Furtado em seu apartamento em Copacabana, na cidade do Rio de Janeiro, ele lembrava que a integração nacional não vinha do futebol ou do carnaval, mas de um projeto que articule os diferentes interesses econômicos no país. Para ele, a última vez que havíamos visto algo assim foi nos Governos Vargas e Juscelino Kubitschek , durante o processo de industrialização brasileiro.

Naquele período, seguindo as ideias da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – Cepal, havia o objetivo de redefinir o papel do Brasil na divisão internacional do trabalho. Assim, ao invés de ser um mero exportador de matéria-prima, o Brasil passaria a integrar o clube de países industrializados. A industrialização, que já havia sido implementada no Sul e Sudeste do país, seria levada pelo próprio Celso Furtado para o Nordeste a partir de 1959, com a criação da Sudene . Iniciativas semelhantes aconteceram também no Norte e no Centro-Oeste.

O projeto nacional, resumidamente, era visto por Celso Furtado baseado no seguinte tripé: a defesa dos interesses nacionais, para não se deixar subordinar pelo capitalismo dos países Desenvolvidos; um viés federativo, pois ele sabia que em um país continental como o nosso, o crescimento deveria ser de todos e, por fim, que esta pujança e crescimento econômico se transformasse também em bem-estar social. Ou seja, é preciso que o crescimento seja traduzido em redução da desigualdade de renda, no combate à pobreza e no avanço das políticas clássicas do Estado de bem-estar social como educação, saúde, previdência, etc.

IHU On-Line – Em que altura de sua produção intelectual, Celso Furtado escreve A construção interrompida?

Ricardo Ismael de Carvalho - A trajetória de vida Celso Furtado pode ser dividida em algumas fases, e que de certa forma se reflete na sua produção bibliográfica. Existe um período muito rico que será alimentado pelos seus estudos sobre a Europa do pós-guerra, pela sua passagem na Cepal e por sua participação nos Governos JK, Jânio Quadros e João Goulart . No período que antecede o Golpe de 1964, Furtado esteve fortemente envolvido com diagnósticos sobre a realidade brasileira e os instrumentos de ação sobre a mesma. Procura pensar sobre os desafios do processo de industrialização — inclusive levando-o para o Nordeste, via Sudene. Depois, durante o Governo Goulart, tornou-se Ministro do Planejamento, tentando contribuir para o avanço da agenda reformista. Os tempos de sua formação como economista, a experiência no setor público e os antecedentes do regime autoritário estão registrados em suas obras autobiográficas: A fantasia organizada (Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1985), A fantasia desfeita (Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1989) e Os ares do mundo (Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1992).

Entre suas obras econômicas mais relevantes podemos destacar: Formação econômica do Brasil (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959), Desenvolvimento e subdesenvolvimento (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961) e O mito do desenvolvimento econômico (Rio de Janeiro: Terra e Paz, 1974).

Construção Interrompida

O livro Brasil: a construção interrompida vem em um momento de muita inquietação intelectual de Celso Furtado, em um contexto histórico marcado pela redemocratização e crise econômica no Brasil, tendo como pano de fundo a lógica da globalização. A partir dos anos 1990, depois da Constituição de 1988, o desafio nacional é diferente daquele dos anos 1950, marcado pela Guerra Fria e pela busca por industrialização. Os desafios são outros: que o país fosse capaz de manter a unidade federativa em um mundo onde, muitas vezes, os vínculos de um estado brasileiro com o exterior são maiores do que internamente com os demais estados. O desafio do Brasil nos anos 1990 era encontrar um caminho, por onde pudesse continuar fortalecendo e modernizando sua economia, e enfrentando a desigualdade social e a pobreza.

A preocupação de Furtado pode ser assim apresentada: como estabelecer um novo projeto nacional que consiga integrar os diferentes interesses dos estados brasileiros no contexto da globalização e que possa levar o Brasil a se tornar efetivamente desenvolvido. Não apenas desenvolvido do ponto de vista econômico, mas principalmente do ponto de vista social. E esse projeto ainda hoje está por se fazer, não tem uma conclusão. Ainda hoje o Brasil, de certa maneira, luta e tenta estimular a imaginação de seus grandes pensadores nessa direção.

"É uma geração impedida de levar a cabo um projeto concebido por tantos anos"

IHU On-Line – De que maneira a interrupção do Plano Trienal proposto por Celso Furtado torna-se um dos principais entraves à continuidade de um modelo de país discutido no livro A Construção Interrompida?

Ricardo Ismael de Carvalho – Celso Furtado faz parte de uma geração que sofreu muito com o golpe militar de 1964. Existe um livro dele chamado A pré-revolução brasileira (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962) que procura descrever a natureza do conflito em curso. Naquele ambiente do Governo Goulart, tínhamos de um lado forças conservadoras, que terminaram dando o golpe, e do outro forças no campo da esquerda, que achavam que as reformas de base eram insuficientes.

Celso Furtado sempre foi um pensador reformista, e tentava convencer a todos que se aquelas reformas fossem implementadas, e tivessem o apoio da esquerda e de outros setores políticos, já representariam um grande avanço para o país naquele momento. De certa forma ele sente o fracasso de não ter conseguido vencer as armadilhas daquele contexto, que resultaram no golpe militar. É evidente que o golpe é um desfecho trágico (e está aí o livro A fantasia desfeita), para uma geração que sonhou com um Brasil que se modernizasse na economia, mas que também avançasse no ponto de vista democrático e social. É uma geração impedida de levar a cabo um projeto concebido por tantos anos.

Em Brasil: a construção interrompida, Furtado estava consciente que não podia voltar ao Brasil dos anos 1950, ao Brasil que antecedeu o golpe. O mundo mudou. Havia necessidade da indústria e da economia responderem de outra maneira aos desafios que se apresentavam. Na medida em que a globalização chegou com muita intensidade, ele via as elites políticas e econômicas despreparadas para enfrentar os novos desafios.

Furtado escreveu esse livro ainda durante o governo Collor , que, apesar de ter sido a primeira eleição direta, foi um governo que deixou um legado de muita frustração, e que terminou em um impeachment. Enfim, quando ele escreve este livro, preocupa-se muito com a tendência dominante de abandonar a ideia do mercado interno como motor do crescimento. Além disso, denuncia que a lógica da globalização pode levar ao enfraquecimento da interdependência das regiões brasileiras, reduzindo os vínculos de solidariedade entre as mesmas. Finalmente, discorda fortemente do predomínio da lógica das empresas transnacionais na ordenação das atividades econômicas, pois seria negar definitivamente a possibilidade de um projeto nacional que articulasse os interesses dos estados e das regiões brasileiras.

O livro, portanto, tenta resgatar uma bandeira que foi muito carregada por Celso Furtado e sua geração: a ideia de retomar a construção de um Brasil economicamente moderno e forte, democrático e socialmente justo. Essa é a construção interrompida.

"É evidente que o golpe é um desfecho trágico para uma geração que sonhou com um Brasil que se modernizasse na economia"

IHU On-Line – A partir da criação das ligas camponesas e demais movimentos de protagonismo social, o Nordeste exerce importe papel no pré-golpe. De que forma a supressão desse protagonismo pelos militares afetou a região?

Ricardo Ismael de Carvalho – De fato há um ponto muito importante na sua pergunta. O Nordeste talvez seja o grande exemplo do subdesenvolvimento brasileiro. O país acabou gerando um sistema híbrido, onde havia uma indústria moderna convivendo com outra economia baseada na exportação de matérias primas e uma terceira baseada na agricultura de subsistência — essa sempre muito frágil. Quando Celso Furtado lidera a criação da Sudene, em 1959, ele pretendia levar esse ímpeto de industrialização para o Nordeste. Mas ele sabia que precisaria enfrentar uma estrutura social e econômica bastante difícil — talvez o fato principal que reproduzia esse subdesenvolvimento. As terras férteis do Nordeste eram na área litorânea, sendo ocupadas pela monocultura da cana, que por sua vez era controlada por grandes senhores de engenhos, com uma mão de obra que só tinha emprego durante a época da safra.

Na experiência da Sudene, Furtado observa que a relação capital-trabalho moderna ainda não tinha chegado no Nordeste. No Nordeste rural, como no Brasil rural, não havia sindicatos. Por isso a experiência de Francisco Julião , com as Ligas Camponesas , era importante. E não tinha nada a ver com comunismo. Era uma tentativa de organizar os trabalhadores para almejar a conquista de direitos básicos dentro do próprio capitalismo.

Exatamente por isso o projeto da Sudene teria que ser pensado a longo prazo, mas foi abortado muito precocemente. Celso Furtado inaugura a nova instituição regional em dezembro de 1959 e sai em maio de 1964.

A tentativa de integrar o Nordeste à economia dinâmica do Sudeste, de fazer com que as relações se modernizassem, de desenvolver no semiárido nordestino uma economia mais forte e sólida, que não deixasse as pessoas na penúria, eram certamente desafios muito grandes. O Nordeste teve muitas lideranças, em vários campos. Podemos citar o próprio Paulo Freire com a sua Pedagogia do Oprimido, o então governador Miguel Arraes , o líder comunista Gregório Bezerra , e tantos outros. O Golpe de 1964 vai abortar um esforço que estava começando a surgir, na tentativa de diminuir a distância do desenvolvimento dessa região em relação ao Sudeste industrializado. Isto porque uma coisa é você levar indústria para onde já existem indústrias, outra é levar para onde ainda não se tem nada, pois falta infraestrutura, estrada, portos, aeroportos, qualificação de recursos humanos. Isto é, trata-se de uma região muito dependente dos investimentos do governo federal, e que precisava ser pensada em uma perspectiva de longo prazo.

IHU On-Line – A supressão da Sudene foi um duro golpe a um desenvolvimento de Brasil que se propunha mais múltiplo e menos concentrador de renda? Que impactos isso gerou nas décadas seguintes e que ainda hoje podem ser vistos em nossa sociedade?

Ricardo Ismael de Carvalho – Tem que se observar a questão como um todo. Na época a região já tinha o Departamento Nacional de Obras contra seca – Denocs, o Banco do Nordeste, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba – Codevasf e também a Sudene. Ou seja, estas instituições regionais federais tentavam atuar para impulsionar o desenvolvimento da região. Para esse desenvolvimento é necessário que o governo federal traduza esse esforço em investimentos. Diria mais, é preciso que a União invista no Nordeste e convença as outras regiões mais desenvolvidas de que é preciso um tratamento diferenciado ao Nordeste, pois é a economia mais dependente de investimentos públicos e uma economia que tem um atraso muito grande no setor da educação, de infraestrutura, que tem algumas áreas — como o caso do semiárido — que são muito problemáticas. Problemas que são antigos e de difícil solução. Portanto, a prioridade é necessária.

Desse modo, Celso Furtado reuniu na Sudene uma gama de pensadores para fazer um diagnóstico preciso para a questão do Nordeste. Isso porque na época não existiam universidades e programas de pós-graduação, ou equipes nos governos estaduais que pudessem fazer o que a Sudene estava fazendo, que era quem fazia o diagnóstico e buscava financiamento para resolver o problema do subdesenvolvimento regional. Com o golpe militar de 1964, Furtado vai para o exílio, boa parte daquela equipe inicial da Sudene se desmancha, e a maioria das forças sociais e políticas que combatiam o status quo são dispersadas. Na hora em que o Julião começava a organizar os trabalhadores rurais, vinham à tona as pressões por uma reforma agrária. Era um movimento importante para pressionar pelas reformas sociais. À medida que se desmantela tudo isso, perde-se a capacidade de pressionar a sociedade brasileira no sentido de uma solução para o Nordeste e outras regiões menos desenvolvidas.

"A ideia de retomar a construção de um Brasil economicamente moderno e forte, democrático e socialmente justo. Essa é a construção interrompida"

IHU On-Line – A propósito, de que maneira o fato de Celso Furtado ser paraibano impacta em sua construção intelectual? Como ele se tornou um pensador importante mesmo estando fora do eixo Rio-São Paulo?

Ricardo Ismael de Carvalho – Celso Furtado tinha uma cabeça cosmopolita, como Gilberto Freyre e Josué de Castro. Esses pensadores nasceram no Nordeste, mas pensaram a região dentro do Brasil e do mundo. Eles têm uma visão que vai além do Nordeste. A visão de Furtado, que acabou sendo considerado um dos mais importantes, senão o mais importante economista do Brasil no século passado, é justamente porque ele percebe que “a construção interrompida” é o que não permite ao Brasil ser considerado uma nação, uma vez que só se tem desenvolvimento no Sudeste e no Sul. É preciso desenvolver um projeto nacional que permita desenvolver todo o território ou a maior parte do território. Essa visão federativa, de integração das economias estaduais, deu a Furtado uma visão mais ampla da realidade brasileira e regional. Evidente que por ter nascido na Paraíba e compreender muito bem as relações sociais, as relações de dominação, a tradicional estrutura social e econômica do Nordeste, isso concedia a Celso Furtado uma vantagem em relação a outros economistas que pouco conheciam o Nordeste. Esta origem permitiu que Furtado fosse indicado por Juscelino Kubitschek para coordenar o Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste – GTDN, propondo, logo depois, a criação da Sudene.

Celso Furtado sempre foi uma figura diferente da maioria dos intelectuais do Nordeste, por não querer deixar o seu pensamento prisioneiro de uma leitura puramente regional. Há uma necessidade dos ares do mundo, necessidade de um distanciamento do objeto de estudo, que seria o próprio Nordeste e o Brasil. Portanto, esse olhar vai ganhando uma visão muito mais complexa e mais rica. Não há saída para a região Nordeste sem que seja por meio de um projeto nacional. As elites políticas brasileiras precisam pensar na integração das cinco regiões, e não apenas duas. O esforço do ponto de vista analítico e propositivo é pensar o Brasil, pois o país só será mais forte se o Nordeste for mais forte. Nesse sentindo, ele vai muito além do interesse regional, como muitos fazem, pois acredita que a definição de um projeto nacional antecede as ações da União nos estados e regiões.

IHU On-Line – Como a obra A Construção Interrompida dialoga com sua obra A formação econômica do Brasil?

Ricardo Ismael de Carvalho – O livro Formação Econômica do Brasil é talvez o livro de Celso Furtado mais adotado nas universidades brasileiras, especialmente nos cursos de história econômica. Independentemente da corrente — liberal ou desenvolvimentista — existe o reconhecimento do mérito desta obra. É realmente importante porque o livro aborda, dentro de uma tradição que foi trabalhada por Caio Prado Júnior , o processo econômico a partir do século XIX, que vai fazer com que o Brasil deixe de ser um país que produza somente café, açúcar, borracha e ingresse no período do ciclo industrializante. O país começa a substituir importações e, portanto, a desenvolver sua economia nesta ideia de mercado em que a indústria nacional nascente será protegida, apoiada pelo Estado e terá no mercado interno seu grande estímulo para poder se consolidar. Por outro lado, a partir do século XIX, com o declínio do açúcar no Nordeste e da borracha no Norte, já começava a haver uma concentração da economia no Sudeste, favorecida pela produção de café. No momento em que o Brasil passa a dar os primeiros passos na direção de uma industrialização, essa concentração vai aumentar. Celso Furtado percebe isso. O ponto é esse, a economia cresce e o Brasil vai crescer muito a partir dos anos 1930, mas há uma concentração espacial muito grande da economia. De certa maneira, isso faz com que muitos municípios e Estados não tenham recursos para investir em políticas públicas, e sejam muito dependentes das transferências constitucionais e voluntárias do governo federal.

"A partir dos anos 1990, depois da Constituição de 1988, o desafio nacional é diferente daquele dos anos 1950"

O Brasil não conseguiu se desenvolver de maneira equilibrada. A economia cresce, mas cresce de maneira espacialmente concentrada, e isso é um problema, pois a ideia de nação ou de uma federação consolidada passa pela autonomia financeira dos estados-membros. É preciso pensar o Brasil de uma forma diferente daquele que vimos no século XX, na qual o crescimento ficou concentrado nas regiões metropolitanas. Observando estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE para o ano de 2011, verificamos que 319 municípios do Brasil geram 75% do Produto Interno Bruto Nacional - PIB. Esta economia concentrada cria muitas dificuldades, como estímulo à migração, a presença de uma desigualdade muito grande do ponto de vista social e econômico, porque são muito diferentes os serviços públicos de uma cidade para outra. É preciso pensar como distribuir melhor as atividades econômicas no território nacional, e também procurar equiparar os serviços públicos dos municípios brasileiros.

IHU On-Line – A partir do pensamento de Furtado, podemos pensar que o que ele propunha era uma alternativa tanto ao comunismo soviético quanto ao capitalismo estadunidense que polarizavam o mundo no contexto da Guerra Fria? Que alternativa era essa?

Ricardo Ismael de Carvalho – Um livro que ajuda a entender o pensamento político de Celso Furtado, e que pode oferecer em parte uma resposta a essa questão, é Pré-Revolução Brasileira (Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962). É um livro dirigido aos jovens e às forças sociais que estavam encantados com a ideia de revolução no período anterior ao golpe de 1964. Nele, Furtado faz uma defesa das reformas de base e do projeto político liderado pelo então presidente João Goulart. Furtado era um reformista, e sem dúvida nenhuma queria um capitalismo regulado, cuja inspiração é o Estado de bem-estar social que vai prevalecer na Europa Ocidental no pós-guerra. Ele deseja um capitalismo que garanta emprego, educação, saúde e previdência, que são os pilares clássicos do Estado de bem-estar social; ele deseja um país em que as forças sindicais e os movimentos sociais se organizem de modo que as forças do trabalho e do capital não sejam tão desequilibradas. O que ele queria era um capitalismo que pudesse operar em um ponto de equilíbrio com baixa desigualdade de renda, baixo desemprego e com gastos sociais relevantes. Um capitalismo que trouxesse benefícios aos trabalhadores.

Além disso, Celso Furtado era um nacionalista. Nesse sentido, ele rejeitaria qualquer tipo de subordinação, seja ao imperialismo norte-americano, seja ao imperialismo soviético, que eram os dois modelos da época da Guerra Fria. Furtado tinha um projeto de país em que o Brasil se afirmaria no âmbito internacional sem estar subordinado, nem com alinhamento automático a qualquer outra nação. Uma posição altiva e soberana, em consonância com a força dos nossos recursos naturais, com as possibilidades de economia industrializada em ascensão e com o potencial do povo brasileiro. Sem ignorar o tabuleiro da geopolítica internacional da época, Celso Furtado sustentava que o Brasil devia se posicionar independentemente.

Por fim, o Celso economista, diferentemente da maioria dos economistas, pensa o território, pensa a dimensão política da economia. Ou seja, a economia tem que ser vista sobre os aspectos de como será distribuída a riqueza produzida pelo país, pois ela influencia no desenvolvimento dos estados e influencia o próprio fortalecimento da federação. É preciso discutir quem vai financiar o desenvolvimento, quem paga os tributos, quem recebe os benefícios. É preciso se debruçar sobre esta equação. Nós precisamos saber quem são os beneficiários do crescimento e seus financiadores. Sabemos que a população do Brasil é muito heterogênea, que não é desejável cobrar uma mesma carga tributária de todos, nem mesmo dar isenção para todos. Então é sempre um economista que está olhando a relação entre Estado, mercado e sociedade dentro de uma visão política. Ele tem uma visão reformista, mas um reformismo radical, que procura mudar de forma profunda as prioridades na agenda do governo federal e a forma de enfrentar os problemas tradicionais. Não se pode dizer que desejava ser um revolucionário à moda daqueles de 1950 e 1960, porque ele não queria acabar com o capitalismo, nem tampouco considerava possível o Estado assumir os meios de produção. Mas ao mesmo tempo sabia que da forma como o Brasil estava estruturado social e economicamente não seria possível vencer a questão da desigualdade, nem tampouco fazer com que a riqueza produzida chegasse à maior parte da população através de serviços públicos. Dessa forma, Celso Furtado ainda hoje inspira muitos jovens e muita gente no Brasil e no mundo, principalmente aqueles que acreditam nas mudanças assentadas na boa racionalidade econômica, em uma sólida articulação política e sem abrir mão dos princípios republicanos e democráticos.

Por Ricardo Machado e Andriolli Costa

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