Ciência caolha é aquela que transforma a nobreza do conhecimento em utilidade. Entrevista especial com Jelson Oliveira

Foto: Reprodução - Youtube

Por: Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos | 14 Setembro 2019

As formas de vida humana estão levando o mundo a um esgotamento que pode se tornar irreversível, visto que estas compreendem como natural despojar o planeta em benefício próprio. Embora esse não seja um dado novo, o desafio segue sendo conceber alternativas. Para o professor Jelson Oliveira, compreender o que nos leva a essa concepção pode ser um caminho. É nisso que reside o pensamento do filósofo Hans Jonas, que vai elaborar como o saber da técnica vai se configurar como mais importante do que a vida em equilíbrio. “Para Jonas, a antiga nobreza do conhecimento foi trocada pela utilidade e o saber foi colocado a serviço do fazer, ou seja, a ciência aliou-se definitivamente à técnica para promover o domínio sobre o mundo”, explica. E acrescenta: “O homo sapiens deu lugar ao homo faber. Valoriza-se mais aquilo que pode contribuir para o avanço indefinido da tecnociência e considera-se todo e qualquer questionamento do tipo ontológico e ético como um empecilho para esse avanço”.

Na entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, Jelson ainda problematiza o lugar da educação, não a do saber utilitarista, mas a do desenvolvimento humano integral. “À educação cabe a tarefa de desenvolver plenamente o saber, de forma a contribuir para que os indivíduos humanos se realizassem plenamente enquanto membros da comunidade humana”, avalia. E toma isso como ideal, embora saiba que essa não é a realidade prática de hoje. “Nossas escolas e universidades não são centros de formação profissional, são centros de desenvolvimento pleno de pessoas humanas em seu sentido pleno”, insiste.

Assim, para pensar em corrigir esses desvios, sugere a retomada do espírito do “princípio responsabilidade” em Hans Jonas. “O princípio responsabilidade, tal como foi formulado por Jonas, é um instrumento eficaz para pensarmos e praticarmos uma ética capaz de nos ajudar a enfrentar os grandes desafios ambientais de nossos tempos, cuja responsabilidade tem sido o modelo de desenvolvimento depredatório em vigor desde o século XVII, pelo menos”, observa. Afinal, porque dessa forma se está concebendo uma ciência sem ética. E, sem ética, “é uma ciência caolha, transformada em mero instrumento de serviço”.

Jelson Oliveira (Foto: PUCPR)

Jelson Oliveira é professor e atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR. Ainda é pesquisador da Fundação Araucária, membro do Grupo de Trabalho Hans Jonas da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - Anpof e coordenador do GT de Filosofia da Técnica e da Tecnologia. É coordenador do Centro Hans Jonas Brasil, com sede em Curitiba-PR. Autor de inúmeros artigos e livros, entre os quais estão: Compreender Hans Jonas (Petrópolis: Vozes, 2012) e Negação e Poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia (Caxias do Sul, EDUCS, 2018).

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma a Modernidade reorientou a produção do saber?

Jelson de Oliveira – É comum nos referirmos à Modernidade como um tempo da racionalização da vida e do mundo. Tal perspectiva é pensada a partir dos seus “fundadores”, entre os quais estão Descartes [1] (que era um matemático) e mesmo Francis Bacon [2], cujo programa era de domínio geral sobre o planeta como forma de transformar o conhecimento em poder e o poder em exploração.

Essa foi a estratégia que nos levou à Revolução Industrial, ao avanço das técnicas baseadas nas engrenagens e no conhecimento das leis da natureza. Tempos modernos [3], o filme de Chaplin [4], retrata bem esse cenário: as cenas do personagem sendo engolido pelas engrenagens das indústrias, sob o controle do relógio-ponto servem de perfeita metáfora para esse tempo. É assim que o saber mudou de perspectiva: se até então, a tradição aristotélica reconhecia o conhecimento como uma atividade propriamente humana, marcada pela contemplação da verdade, agora ele foi transformado em algo útil, capaz de levar à necessária intervenção na natureza, a sua modificação pela ação humana, cujo método passou a ser a experimentação e o domínio dos processos (algo que substituiu o antigo anseio pelo conhecimento das causas).

Além de Bacon, Galileu Galilei [5] estabeleceu esse novo tipo de saber, baseado agora na autoridade dos sentidos, na compreensão dos fenômenos por meio da descrição quantitativa e do aparato técnico. No seu livro Técnica, medicina e ética [6], lançado em 1985 como uma espécie de aplicação do princípio responsabilidade sobre a área da tecnologia, especialmente da biotecnologia, o filósofo alemão Hans Jonas identificou nesse processo uma quebra do que ele chama de “velha e honorável separação entre ‘teoria’ e ‘prática’”, fazendo com que a “sede de conhecimento puro, o entrelaçamento entre conhecimento nas alturas e ação na planície da vida tornou-se insolúvel e a aristocrática autossuficiência da busca pela verdade por si mesma desapareceu” (TME, p. 39).

O saber a serviço do fazer

Para Jonas, a antiga nobreza do conhecimento foi trocada pela utilidade e o saber foi colocado a serviço do fazer, ou seja, a ciência aliou-se definitivamente à técnica para promover o domínio sobre o mundo. O pensamento, nesse sentido, passou a ser um instrumento utilitarista e instrumental. É esse espírito que anima ainda a nossa época, por exemplo, quando vemos as Ciências humanas cada vez mais consideradas inúteis porque seu tipo de saber não é produtivo, mas tem a ver com as ciências teóricas e as ciências práticas (como a ética e a política) – recupero aqui a antiga distinção proposta por Aristóteles.

O homo sapiens deu lugar ao homo faber. Valoriza-se mais aquilo que pode contribuir para o avanço indefinido da tecnociência e considera-se todo e qualquer questionamento do tipo ontológico e ético como um empecilho para esse avanço. Ocorre que a ciência que atua sem a ética ou sem medir politicamente os seus impactos, é uma ciência não apenas deficitária, mas sobretudo perigosa.

IHU On-Line – Quais as consequências de se reduzir o processo educacional à dimensão utilitarista?

Jelson de Oliveira – À educação cabe a tarefa de desenvolver plenamente o saber, de forma a contribuir para que os indivíduos humanos se realizassem plenamente enquanto membros da comunidade humana. Isso significa assumir todas as áreas do saber como indispensáveis e atuar conjuntamente (hoje falamos em transdisciplinaridade ou interdisciplinaridade) para cumprir essa missão. O que ocorre é que o avanço da causa tecnocientífica obrigou a educação a se tornar também um instrumento de sua estratégia, voltando-se prioritariamente à elaboração dos pressupostos utilitaristas: só se ensina e aprende aquilo que é útil para o progresso técnico e o desenvolvimento econômico dos indivíduos e das sociedades.

Isso alcança os nossos dias: um pai se preocupa se a escola não ensina os saberes úteis para que seu filho passe no vestibular, mas não se incomoda se essa escola não o ajuda a se tornar um cidadão melhor, mais ético e comprometido com o meio ambiente, por exemplo. A consequência disso é o discurso das competências capazes de fazer com que um indivíduo se torne um profissional competente, hábil e apto a fazer uma bela carreira, mesmo que sua capacidade artística ou ética seja nula. E isso não condiz com o projeto da educação. Nossas escolas e universidades não são centros de formação profissional, são centros de desenvolvimento pleno de pessoas humanas em seu sentido pleno.

IHU On-Line – Como Hans Jonas observa e analisa as transformações do mundo conformadas pela racionalidade moderna?

Jelson de Oliveira – Para Hans Jonas, esse processo empobreceu a experiência humana no planeta e nos tornou insensíveis tanto para medir os perigos e ameaças trazidos pelos novos e inéditos poderes da tecnologia, quanto para encontrar modos de despertar a nossa sensibilidade para a necessária proteção da vida em geral, que está, sendo ela frágil, ameaçada pela ação humana no planeta. Se as mudanças na magnitude do poder alcançadas pela longa história de êxitos da tecnociência levam à celebração irresponsável de uma potencialidade que tem alterado significativamente a vida no planeta, desde o início da modernidade. Os geologistas e antropólogos deram um nome para isso: antropoceno, a época em que as mudanças provocadas pela ação humana são tão significativas, que podem ser comparadas a forças naturais.

O problema para Jonas é que tais transformações foram patrocinadas por uma ciência que reivindicou liberdade absoluta para fazer o que fosse necessário a fim de cumprir os seus objetivos, mas encobrindo seus riscos e perigos. Ou seja, o problema não é a técnica em si, mas o fato de que ela venha sendo praticada sob a orientação única da utilidade, em visível redução das perguntas epistemológicas, ontológicas, éticas e culturais que deveriam garantir a minimização dos seus impactos negativos.

A ciência sem ética, por isso, é uma ciência caolha, transformada em mero instrumento de serviço, expressão de um saber que Jonas considera “em si mesmo culturalmente débil”, porque orientada por um fazer técnico que se desligou da reflexão e da meditação ontológica (sobre o ser das coisas que altera e sobre a imagem das coisas que pretende inventar) e ética (sobre o dever contido no uso dos novos poderes). Porque é um poder de ação, a técnica interessa à filosofia e porque tem consequências no mundo, interessa também à ética.

IHU On-Line – O que significa pensar, o sentido do verbo pensar, em um mundo cada vez mais voltado para a razão instrumental?

Jelson de Oliveira – O pensamento é uma experiência de plenitude. Ele não é apenas uma capacidade, como sugere Heidegger [7]. Ele é uma escolha. Vivemos no tempo em que a superficialidade e a ignorância são praticadas criminosamente. Festeja-se o fim da verdade, a pós-verdade, as Fake News, as interpretações relativistas de tudo. Tudo é negociável e questionável. Somos aqueles homens do romance de Dostoievski [8], que festejam na praça pública porque agora “tudo é permitido”.

No campo científico, brincamos com coisas sérias demais para que o clima de otimismo cego e insensato prevaleça. Clonagem humana, técnicas de controle de comportamento, transgenia, manipulação genética, biologia sintética e todas as demais iniciativas do campo científico são mudanças tão decisivas e quase sempre irreversíveis, que mereceriam mais debate antes de que fossem implementadas nos laboratórios do mundo e daí, vendidas como produtos tecnológicos para os que puderem pagar, sob o risco de que a herança genética da vida, tal como a recebemos das eras passadas, perca-se definitivamente. Essa é a grande preocupação que mobiliza ecologistas e todos aqueles que se preocupam com a continuidade da vida no planeta e que entenderam, baseados nas projeções dos relatórios científicos, que estamos próximos do colapso, brincando à beira de precipícios.

IHU On-Line – Nesse sentido, como a questão da técnica aparece em Hans Jonas?

Jelson de Oliveira – Jonas estava lutando contra o nazismo na segunda guerra mundial, em uma brigada do exército inglês formado por judeus. Ali, diante da experiência da guerra, que é uma experiência de destruição e de morte, ele compreendeu que a vida estava sendo ameaçada não apenas do ponto de vista individual, mas sobretudo coletivo, e que as novas dimensões da técnica representavam essa mudança de magnitude: não se matava mais com arco e flecha ou armas de fogo, mas com a bomba atômica, com os campos de concentração, com os experimentos com seres humanos cuja crueldade e terror eram produto também do novo tipo de afã pelo conhecimento que orientava uma ciência sem ética, sem princípios e valores.

Foi ali que ele começou a estudar tanto o fenômeno da vida, para compreender a sua fragilidade, quanto o fenômeno da técnica. O produto dessas reflexões são as chamadas “Cartas Formativas”, que ele enviou à sua esposa Lore Jonas e são consideradas os embriões da sua obra de 1966, The phenomenon of Life [9], traduzida para português como O princípio vida [10]. Foi esse paradoxo entre a fragilidade da vida e o poder imenso da técnica que a coloca em risco, que despertou Jonas para o problema ético que envolve o que ele chama de “civilização tecnológica”, reconhecendo, portanto, que nossa sociedade é marcada culturalmente por uma novidade no que tange aos poderes da tecnologia.

Essa questão aparece como o diagnóstico que funda a sua obra de 1979, que agora completa 40 anos, O princípio Responsabilidade [11]. Ali encontramos a formulação de uma ética capaz de enfrentar o paradoxo que marca o nosso tempo: a utilização de um conhecimento que, ao invés de promover a vida, acaba por colocá-la em risco. Além disso, a pergunta sobre por que a técnica se tornou um problema filosófico e ético, forma os dois primeiros capítulos de Técnica, medicina e ética [12], publicado em 1985 e traduzido para português pelo nosso GT Hans Jonas da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia - Anpof. Esses dois textos são absolutamente claros e inspiradores sobre a problemática da técnica, principalmente porque articulam a questão da magnitude dos poderes com o aspecto da sua ambiguidade e ambivalência: a técnica é um poder imenso do ponto de vista do tempo e do espaço e, ao mesmo tempo, ambivalente porque não sabemos até onde ela pode ser boa ou má.

Princípio da precaução

Essa noção de ambivalência vai fundar o que se chama hoje de princípio precaução, do qual Jonas foi um dos precursores: para ele, in dubio pro malo, ou seja, na dúvida sobre o bem ou o mal de determinado procedimento, deveríamos agir com parcimônia e precaução, dando preferência para o prognóstico negativo.

Outra questão levantada por Jonas em relação à técnica tem a ver com o futuro que ela projeta: a utopia do progresso tecnológico anuncia as maravilhas trazidas pela ação da tecnociência, mas no geral escamoteia os seus riscos e não quer – por motivos obviamente econômicos – ser questionada a respeito deles. O fato é que a ambivalência da técnica nos obriga a pensar neles.

IHU On-Line – De que maneira Hans Jonas, e seu princípio da responsabilidade, pode nos ajudar a pensar um projeto ético à altura de nossas sociedades tecnocientíficas?

Jelson de Oliveira – Nenhum autor foi tão longe quando se trata de pensar os desafios trazidos pela técnica como Jonas. E isso, por si só, já é um feito. Podemos até não concordar com suas premissas ou pressupostos, podemos discordar dos fundamentos éticos que ele formulou, podemos até mesmo achar que suas previsões são exageradas. O que não podemos é fechar os olhos para o diagnóstico que ele foi capaz de estabelecer e sobre o fato de que a filosofia precisa assumir, também ela, em conjunto com as demais ciências, um desafio dessa magnitude.

Do meu ponto de vista, o princípio responsabilidade, tal como foi formulado por Jonas, é um instrumento eficaz para pensarmos e praticarmos uma ética capaz de nos ajudar a enfrentar os grandes desafios ambientais de nossos tempos, cuja responsabilidade tem sido o modelo de desenvolvimento depredatório em vigor desde o século XVII, pelo menos. Um dos principais elementos da proposta de Jonas é que a responsabilidade não pode ser compreendida como pós-ato (associada à ideia de culpa), como fazemos geralmente (alguém fez algo e então, caso tenha feito pelo uso da racionalidade e da liberdade que marcam o sujeito ético, seja ele responsabilizado, ou seja, pague pelo ocorrido). Para Jonas, a responsabilidade é algo prévio ao ato, ou seja, deve ser um modo de pensar as consequências antes que o fato seja efetivado.

Para isso, Jonas lança mão de dois conceitos fundamentais, que atuam de forma conjugada: a heurística do temor e a futurologia comparativa.

A futurologia comparativa tem a ver com a projeção das consequências do ato em longo prazo, apoiado em informações trazidas pelas várias ciências (climatologia, biologia, zoologia, geografia, geologia etc.) com o fim de desenhar um cenário o mais próximo possível daquilo que poderia acontecer caso não mudemos as nossas atitudes no presente.

Assim, a heurística do temor tem a ver com a preferência pelo prognóstico negativo, já que Jonas acredita que nós sabemos melhor o que não queremos do que aquilo que queremos e que, por isso, projetando o mal futuro, isso poderia despertar um sentimento capaz de fazer com que alteremos as nossas atitudes em vista de evitá-lo.

Responsabilidade metafísica

Além disso, o filósofo destaca que a responsabilidade deve ser pensada politicamente e que os homens públicos têm a obrigação de aderir a políticas capazes de orientar eticamente as tecnologias e evitar as suas consequências danosas para o meio ambiente. Para ele, é urgente evitar o empobrecimento geral da vida, promovidos pelo “saque, a depauperação de espécies e a contaminação do planeta”, o “esgotamento das reservas naturais”, “inclusive uma mudança insana no clima mundial causada pelo homem”, que vem “se desenvolvendo a toda velocidade”, ainda mais porque está somada a uma “dieta socioeconômica” baseada em hábitos de consumo insustentáveis (TME, p. 49).

Assim, a responsabilidade adquire um aspecto metafísico de novo tipo: ela pergunta sobre o Ser a partir da pergunta “por que o ser e não antes o nada?”. Para Jonas, é a técnica que nos obriga a formular uma questão destas: se podemos destruir a vida em geral, por que não o fazemos? Se podemos destruir toda a humanidade com o desgaste geral do planeta ou com uma bomba atômica, o que nos impede?

A pergunta sobre o Ser, portanto, em confronto com o poder da técnica, nos leva ao dever ético da responsabilidade porque trata-se de reconhecer que a vida tem uma finalidade (a autoafirmação de si mesma) e que, sendo assim, porque ela diz sim para si mesma, ela é boa, ou seja, tem um valor. E tendo valor, a vida vale a pena e dela emana para nós o dever de protegê-la. Para Jonas, por isso, “torna-se uma obrigação transcendente do homem proteger o menos reconstruível, o mais insubstituível de todos os ‘recursos’: a incrivelmente rica dotação genética depositada pelas eras da evolução” (TME, p. 36).

IHU On-Line – Qual a importância de se superar uma perspectiva ética demasiadamente antropocêntrica, estendendo o projeto ético a todas as demais espécies?

Jelson de Oliveira – Jonas reconhece que todas as formas de vida, desde as mais primitivas até a mais evoluída, que é a humana, existem graus de interioridade/espiritualidade. Para ele, quando a vida entra no mundo da existência, ela já carrega a premeditação espiritual que se desenvolve em etapas que vão do metabolismo, passam pela sensação, pela emoção, pela percepção, pela mobilidade e alcançam a racionalidade. Nesse sentido, sua ética não deixa de reconhecer que o ser humano é o mais evoluído espiritualmente, mas ao mesmo tempo é ele o único ser de responsabilidade, ou seja, o único capaz de agir em vista dos demais, ainda mais porque ele é o responsável pela onda veloz de extinção da vida no planeta. Para ele, porque pode se responsabilizar, o ser humano deve fazê-lo, pois poder é dever, nesse caso.

Sua proposta, contudo, foge do antropocentrismo porque não tem em vista apenas a vida humana. Ele traduz essa ideia no conceito de “solidariedade de interesses”: a vida é um conjunto de seres que coexistem e dependem uns dos outros, em uma rede de interesses comuns. Assim, só quando entendemos que a vida é frágil e que os seres e os recursos naturais não podem ser usados a nosso bel-prazer, como se tudo estivesse a nosso serviço, só assim poderemos dar um passo significativo em direção à sua proteção. Esse é um ato revolucionário: mudar a nossa consciência em relação ao nosso lugar no reino da vida e a como nos relacionamos nessa casa comum.

IHU On-Line – O que significa pensar isso em um planeta cada dia mais suscetível a eventos climáticos extremos?

Jelson de Oliveira – Significa que devemos nos empenhar em dois sentidos: individualmente e coletivamente. Individualmente devemos nos esforçar para manter atitudes ambientalmente corretas, que contribuam para que o meio ambiente e a vida em geral sejam preservados, segundo o novo imperativo categórico proposto por Jonas: “aja de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a terra” (PR, p. 47). Tal ação é um apelo individual à responsabilidade. Mas isso não é tudo.

Diante das mudanças climáticas que colocam o nosso modelo civilizacional em xeque, precisamos de atitudes coletivas no âmbito da política, porque a urgência do problema nos impõe a necessidade de que alguma coisa seja feita em nível planetário. Infelizmente, os sinais não são bons, seja porque vemos diariamente o agravamento da crise, seja porque os países mais poluentes, em geral, pouco empenhados em uma mudança significativa em suas matrizes produtivas. Bem ao contrário. O atual modelo de desenvolvimento, embora absolutamente fracassado do ponto de vista ambiental, continua sendo incentivado como o único possível. Precisamos não apenas de alternativas de desenvolvimento, mas sobretudo de uma alternativa ao desenvolvimento. Ou isso, ou vamos perecer todos.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Jelson de Oliveira – Para Jonas, o problema da tecnologia se articula diretamente com a questão do niilismo, que é um conceito central da filosofia jonasiana (tratei disso no meu recente livro Negação e poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Caixas do Sul: EdUCS, 2018). Creio que esse tema é importante porque ele tem a ver com o esvaziamento dos valores capazes de orientar o uso dos poderes.

O niilismo antropológico, de um lado, esvaziou o ser humano de qualquer ideia de essência, natureza ou imagem; do ponto de vista cósmico, ele esvaziou o mundo de sentido, abrindo-o para a “vontade de ilimitado poder”, que se transformou na vontade técnica; do ponto de vista ético, ele deixou a humanidade sem um critério moral capaz de orientar a técnica.

Para Jonas, o maior dos vazios se encontrou com o maior dos poderes. É esse o clima em que estamos: falta-nos referências capazes de orientar as nossas ações. E é contra esse vazio que Jonas formula a sua filosofia. Para ele, pela primeira vez, a filosofia precisa assumir a sua “tarefa cósmica”: contribuir para que a ordem do cosmos seja mantida, ajudando a humanidade a salvar a si mesma e a todos os organismos com os quais partilhamos o evento cósmico mais importante, o aparecimento da vida.

 

Notas:

[1] René Descartes (1596-1650): filósofo, físico e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, tendo também sido famoso por ser o inventor do sistema de coordenadas cartesiano, que influenciou o desenvolvimento do cálculo moderno. Descartes, por vezes chamado o fundador da filosofia e da matemática modernas, inspirou os seus contemporâneos e gerações de filósofos. Na opinião de alguns comentadores, ele iniciou a formação daquilo a que hoje se chama de racionalismo continental (supostamente em oposição à escola que predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. (Nota da IHU On-Line)

[2] Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo, ensaísta inglês, barão de Verulam e visconde de Saint Alban. É considerado como o fundador da ciência moderna. Desde cedo, sua educação orientou-o para a vida política, na qual exerceu posições elevadas. Em 1584 foi eleito para a câmara dos comuns. Sucessivamente, durante o reinado de Jaime I, desempenhou as funções de procurador-geral (1607), fiscal-geral (1613), guarda do selo (1617) e grande chanceler (1618). Como filósofo, destacou-se com uma obra em que a ciência era exaltada como benéfica para o homem: o Novum Organum. (Nota da IHU On-Line)

[3] Tempos modernos: filme do cineasta britânico Charles Chaplin de 1936, em que o seu famoso personagem "O Vagabundo" (The Tramp) tenta sobreviver em meio ao mundo moderno e industrializado. (Nota da IHU On-Line)

[4] Charles Chaplin (1889-1977): ator, diretor, produtor, humorista, empresário, escritor, comediante, dançarino, roteirista e músico britânico. Um dos principais atores da era do cinema mudo, notabilizado pelo uso de mímica e da comédia pastelão. Bastante conhecido pelos seus filmes O Imigrante, O Garoto, Em Busca do Ouro, O Circo, Luzes da Cidade, Tempos Modernos, O Grande Ditador, Luzes da Ribalta, Um Rei em Nova York e A Condessa de Hong Kong. Considerado por alguns críticos o maior artista cinematográfico de todos os tempos e um dos pais do cinema, junto com os Irmãos Lumière, Georges Méliès e D.W. Griffit. Sua carreira no ramo do entretenimento durou mais de 75 anos, desde suas primeiras atuações quando ainda era criança nos teatros do Reino Unido, durante a Era Vitoriana, quase até sua morte aos 88 anos de idade. (Nota da IHU On-Line)

[5] Galileu Galilei (1564-1642): físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano que teve um papel preponderante na chamada revolução científica. Desenvolveu os primeiros estudos sistemáticos do movimento uniformemente acelerado e do movimento do pêndulo. Descobriu a lei dos corpos e enunciou o princípio da inércia e o conceito de referencial inercial, ideias precursoras da mecânica newtoniana. Galileu melhorou significativamente o telescópio refrator e terá sido o primeiro a utilizá-lo para fazer observações astronômicas. Com ele descobriu as manchas solares, as montanhas da Lua, as fases de Vênus, quatro dos satélites de Júpiter, os anéis de Saturno, as estrelas da Via Láctea. Estas descobertas contribuíram decisivamente na defesa do heliocentrismo. Contudo a principal contribuição de Galileu foi para o método científico, pois a ciência se assentava numa metodologia aristotélica de cunho mais abstrato. Por essa mudança de perspectiva é considerado o pai da ciência moderna. (Nota da IHU On-Line)

[6] São paulo: PAULUS Editora, 2014. (Nota da IHU On-Line)

[7] Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, e 187, de 3-7-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica. Confira, ainda, Cadernos IHU em Formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica, e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, intitulada O biologismo radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Line)

[8]  Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881): um dos maiores escritores russos e tido como um dos fundadores do existencialismo. De sua vasta obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov. A esse autor a IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006. dedicou a matéria de capa, intitulada Dostoiévski. Pelos subterrâneos do ser humano. Confira, também, as seguintes entrevistas sobre o autor russo: Dostoiévski e Tolstoi: exacerbação e estranhamento, com Aurora Bernardini, na edição 384, de 12-12-2011; Polifonia atual: 130 anos de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, na edição 288, de 06-04-2009; Dostoiévski chorou com Hegel, entrevista com Lázló Földényi, edição nº 226, de 02-07-2007. (Nota da IHU On-Line)

[9] Northwestern University Press, 2001. (Nota da IHU On-Line)

10]] Petrópolis: Vozes, 2005. (Nota da IHU On-Line)

[11] São Paulo: Contraponto, 2007. (Nota da IHU On-Line)

[12] São Paulo: Paulus Editora, 2013. (Nota da IHU On-Line)

 

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