'Amazônia é totalmente estratégica para nossa sobrevivência enquanto espécie'. Entrevista especial com Marcela Vecchione

Foto: Tiago Miotto - CIMI

Por: Vitor Necchi e Patricia Fachin | 13 Fevereiro 2019

Nos últimos 60 anos, as propostas de desenvolvimento para a Amazônia e os povos tradicionais que habitam a região, como indígenas, quilombolas e amazônidas, visam “integrar a região - e as várias ‘regiões’ dentro da Amazônia - ao país”, diz a pesquisadora Marcela Vecchione à IHU On-Line. No entanto, lamenta, “dificilmente há um debate sobre desenvolvimento de dentro da região para fora, com contribuições endógenas para o desenvolvimento nacional”. O desenvolvimento regional entendido como integração, argumenta, “produz mais periferização”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Marcela destaca que hoje a Amazônia enfrenta dois problemas que estão correlacionados: no nível macro, informa, o desmatamento e a degradação dos ecossistemas têm impactado a diminuição da cobertura florestal, enquanto no nível micro o desmatamento tem como consequência a perda de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. “Desde 2009, em pesquisa contínua, tenho percebido que a violação de direitos humanos caminha de mãos dadas com o desmatamento e a degradação ambiental na Amazônia. Os motivos são óbvios. De maneira mais direta, o desmatamento vem acompanhado de um processo violento, que não é apenas cartorial, de grilagem de terras. Perceba que nos locais de maior foco de desmatamento na Amazônia, é justamente onde ocorre o maior número de assassinatos no campo. De forma igualmente perceptível, mas com efeitos mais no médio e longo prazo, o desmatamento e a degradação, em conjunto com a apropriação indevida de terras, que passou por um movimento acelerado de consolidação pelo Programa Terra Legal, leva à despossessão dos povos, que não têm mais a base material necessária para a reprodução de seus modos de vida”, informa.

Nesse cenário, adverte, as tentativas de resolver os conflitos na região não podem ser unicamente militares. “A alternativa para isso não pode ser a militarização, seja de ordem conservacionista, com a criação de áreas ambientais de proteção integral, ou intervencionista, no sentido de dispor de efetivos militares ou de milícias dentro dos territórios, independentemente de os mesmos territórios serem regularizados ou não, tal como versa boa parte dos sistemas e planos que Bolsonaro pretende revitalizar, como o Plano Nacional de Desenvolvimento de Fronteiras ou o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras - Sisfron e, mais especificamente, com a regulamentação da Lei da Grilagem (Nova Lei de Regularização Fundiária, a 13.465)”, pontua.

Marcela Vecchione também comenta as especulações em torno da possibilidade de o Brasil abandonar o Acordo de Paris a partir do governo Bolsonaro. “Nas negociações internacionais de clima e biodiversidade, perpetradas desde então, o Brasil sempre foi referência em suas experiências desenvolvidas a partir dessa concertação, que foi global. Cabe dizer que os movimentos socioambientalistas do Brasil tiveram importante contribuição nesse processo, que fortaleceu a ideia de multilateralismo com a participação de atores estatais e não estatais no processo, incluindo os povos e comunidades tradicionais. Agora, imagine se toda essa história e as práticas dela resultantes acabam com um simples decreto presidencial, que pode fundir o Ministério do Meio Ambiente com o seu antagonista, dadas as configurações políticas atuais, o Ministério da Agricultura? Ou um decreto que pode nos retirar do Acordo de Paris?”

Marcela Vecchione (Foto: Gabriela Garrido - PUC-SP)

Marcela Vecchione é doutora em Ciência Política/Relações Internacionais pela McMaster University, Ontário, Canadá, e mestra em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Atualmente leciona no Programa de Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido - PPDSTU no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – Naea.

A entrevista foi publicada, originalmente, aqui em Notícias do Dia, 05-12-2018.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como a Amazônia e os povos tradicionais são tratados pelos políticos?

Marcela Vecchione - As exceções são muito poucas para um fator geral que vemos se repetir em vários temas específicos de planos de governos, ainda que sob discursos distintos: o fato de que pensar um tipo desenvolvimento para a Amazônia e suas gentes, sendo povos indígenas, povos tradicionais, quilombolas e todos os outros amazônidas, envolve integrar a região - e as várias “regiões” dentro da Amazônia - ao país. Desenvolvimento regional para Amazônia, e tal como praticado na região nos últimos 60 anos, é definitivamente sinônimo de integração nacional, com esse movimento convergindo para um só centro que é o governo federal e seus fluxos prioritários no e para o Centro-Sul do Brasil, e a partir do que se coloca no Centro-Sul para o mundo. Ou seja, o desenvolvimento regional infelizmente entendido como integração produz mais periferização. Seja na sua versão para dentro - para o crescimento total do país e com suposta diminuição do que se vê como desigualdade e atraso na Amazônia -, seja na sua versão para fora - com o crescimento que se complementaria e se tornaria ainda maior a partir de uma integração regional, com o Brasil como liderança, e para a qual a Amazônia é peça geopolítica fundamental, como foi o caso da IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana).

De ambos os pontos de partida (ou de chegada), se olharmos para as metas a se alcançar, a Amazônia e seu povo são espaço e sujeito, respectivamente, com muito pouca agência; como se fossem parte do Brasil para que o Brasil pudesse ser Brasil de verdade e grande. Só que isso ocorre sem consulta e sem consentimento dos diversos povos e populações dessa parte do Brasil, inclusive de suas cidades. A contribuição da relação do povo amazônida para construir a Amazônia e fazer o Brasil do jeito que é (sociobiodiverso e urbanodiverso), portanto, tem pouco ou nenhum reconhecimento.

Debate eleitoral sobre a Amazônia

Nas eleições deste ano, apenas nos programas de governo do PSOL e do PT/PCdoB foram dedicados itens específicos para a região. No primeiro caso, de maneira muito mais detalhada, a Amazônia é colocada como um dos lugares do país onde existem variados povos e comunidades tradicionais, e povos indígenas, apontando que o reconhecimento e a demarcação de suas terras seria fundamental para garantir os direitos desses povos que tanto contribuem para a conservação da natureza e para a produção e existência da biodiversidade, desde a reprodução de seus modos de vida. Por trazer na chapa uma mulher amazônida e indígena, a campanha do PSOL foi um marco histórico para o processo eleitoral na região. Não importa que não foram para o segundo turno. Sonia e Boulos pautaram um debate que se tornou de grande importância no segundo turno e, ousaria dizer, daqui para a frente, de forma mais disseminada. Questionaram o modelo de desenvolvimento vigente e suas consequências diretas para os povos e comunidades que vivem suas vidas de forma distinta das vidas em grandes cidades do Sul e do Sudeste.

Essas formas distintas de viver resistem na sua permanência, mesmo depois de terem sido esmagadas com a colonização antiga, ou a mais recente, na forma dos megaprojetos infraestruturais e agrícolas. Ainda assim, esses povos continuam contribuindo para que a vida possa continuar a existir nas cidades com água boa e de qualidade. Isso ocorre de forma difusa ainda que não optem, em muitos casos, por viverem nas cidades, mostrando opções de crescer diferente, de outras economias, questionando profundamente as desigualdades, seja por serem sem teto na cidade, ou sem terra no campo. No final das contas, estavam falando de espaços de vida, que no ambiente rural ou urbano demandam terra.

Esse debate puxou a corda dos debates do segundo turno de uma maneira que nunca pensei que veria Haddad, por exemplo, fazendo: falando de aumento de imposto rural progressivo de acordo com o tamanho da propriedade, assumindo o compromisso com a diminuição do uso dos agrotóxicos e a transição agroecológica, e reconhecendo o papel central da demarcação das terras indígenas e dos povos tradicionais, bem como da proteção ampla de seus direitos, como fundamental à manutenção do equilíbrio ambiental, climático e da agenda de direitos humanos. Não tenho dúvida que foi a inflexão da chapa Boulos-Sonia que levou a isso.

A figura de Sonia nos mostrou a resistência e a persistência pela permanência do seu ser mulher indígena quando voltava para dialogar e plantar ainda mais política na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, que queima pela voracidade do agronegócio no entorno. Penso mesmo que a chapa foi um evento político, e que representou o conjunto da defesa da diversidade e da necessidade de terras e espaços de viver para que os territórios dessa diferença pudessem continuar a prosperar e a se reproduzir; foi a chapa da resistência, no campo e na cidade. Foi a chapa de pensar a política para além das eleições, pelas eleições, puxando o discurso eleitoral da esquerda para a autocrítica, e ainda mais à esquerda. Sendo assim, o reconhecimento da diversidade produtiva da Amazônia e de seus povos foi intrinsecamente ligado à defesa no programa de governo Boulos-Sonia de políticas de reconhecimento de direitos territoriais, sem os quais essa produção não poderia acontecer, e isso levou à inflexão no programa de Haddad também.

Não importa que não representaram 1% dos votos. O importante foi que representaram e, sobretudo, apresentaram uma proposta de governo, de políticas para o público em sua diversidade em escala nacional, a partir de temas que nunca haviam despontado em debates eleitorais. Isso é um ganho democrático inestimável, especialmente nesse momento do desespero de fazer escolhas e do medo de que as partes que nunca, ou poucas vezes foram parte, para lembrar Jacques Rancière, estão tendo suas existências oficialmente e institucionalmente ameaçadas por lideranças de governo e de Estado. Neste sentido, o procedimento eleitoral da campanha nos lembrou que a democracia é muito mais que apenas procedimento político, podendo representar escolhas de como nos organizaremos coletivamente nas eleições para existirmos coletivamente e politicamente para além delas.

No segundo turno, esse movimento de pensar a política cotidianamente e baixar a escala da representação no tratar com o grande público em suas diversidades ficou ainda mais claro. Algumas variações na proposta de programa de governo PT/PCdoB demonstraram isso. A Amazônia, assim como os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais, apareceram como itens específicos no programa, com particularidades, chamando atenção para as vocações produtivas em diversas áreas da região a depender de suas particularidades. Além disso, ainda que o programa também tenha mudado de forma a fazer algumas concessões ao grande capital, não se furtou nesse segundo momento a destacar o potencial de produção da agricultura familiar em torno das estradas da região, precisando este grupo, assim, de vias de integração para escoar suas produções. Ou seja, outro tipo de integração está sendo vislumbrado programaticamente, o que dá mais base para o movimento social e os povos e comunidades fazerem suas reivindicações e disputas a posteriori, ainda que o candidato que as tenha proposto não tenha vencido o pleito.

Até o cacau da Transamazônica, plantado em sistemas agroflorestais, foi lembrado no último debate eleitoral do primeiro turno ao relacionar incentivo à produção e à redução do desmatamento na região amazônica. Algo um tanto quanto inesperado para partidos políticos que outrora defenderam a construção da hidrelétrica de Belo Monte na mesma área. O fato é que a região apareceu de forma específica no programa, ainda que dentro da vocação produtiva e expansionista. Isso é um ganho quando esses assuntos tinham visibilidade zero ou tinham visibilidade quando algo de muito impacto se interpunha a seus povos.

IHU On-Line - Como vê a participação de indígenas na política brasileira?

Marcela Vecchione - Novamente, coloco o fato na análise do discurso político e das disputas em todo o processo eleitoral, e para além dele. Talvez, se Sonia Guajajara e sua ampla rede de apoio vinda de povos indígenas e de povos e comunidades tradicionais não tivessem aparecido como atores emergentes e fundamentais neste processo eleitoral, as declarações absurdas de Bolsonaro, de que  quilombolas não servem para nada e que não demarcaria nem um centímetro de Terra Indígena, não teriam ganho tanta notoriedade, provocando contestação.

Cabe notar que esta onda de ocupação na política pelos povos indígenas e povos e comunidades tradicionais já vem ocorrendo desde 2013, com a ocupação do Congresso no Abril Indígena, e foi ganhando força nos últimos anos com a culminância do maior número de candidaturas vindas destes segmentos desde a redemocratização, sendo a região Norte a de maior incidência destas candidaturas. Estamos falando aqui de um processo de democracia radical e profunda que absolutamente apavora políticos de tendências fascistas como Bolsonaro; obviamente, pois os mesmos não poderiam sobreviver em uma democracia mais plural e mais democratizada, por assim dizer.

IHU On-Line – Como avalia o discurso de Bolsonaro sobre a Amazônia?

Marcela Vecchione - Há problemas no estado de coisas da Amazônia antes de ele ser eleito. De fato, há muitos problemas. Mas, tornar os problemas de desenvolvimento na Amazônia em problemas unicamente de segurança, ou mais especificamente, em problemas de militarização, é assumir que a Amazônia é uma floresta sem gente, sem cultura e sem política, espaço vazio a ser coordenado por forças de inteligência militares para garantir a tranquila destinação de suas terras aos setores do agro-hidro-minério negócio. Em última instância, está se dizendo que o povo amazônida não tem capacidade de se governar e decidir seus futuros possíveis, de acordo com seus modos de vida, seja em uma colocação seringueira, em um sistema agroflorestal, em uma aldeia, ou em uma grande cidade, como Manaus ou Belém. A Amazônia não é só floresta, ou só fronteira, da mesma forma que a floresta e as fronteiras que existem, por vezes dentro das cidades, têm suas particularidades a respeito de como querem ser urbanizadas, de fato já o sendo.

A alternativa para isso não pode ser a militarização, seja de ordem conservacionista, com a criação de áreas ambientais de proteção integral, ou intervencionista, no sentido de dispor de efetivos militares ou de milícias dentro dos territórios, independentemente de os mesmos territórios serem regularizados ou não, tal como versa boa parte dos sistemas e planos que Bolsonaro pretende revitalizar, como o Plano Nacional de Desenvolvimento de Fronteiras ou o Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras - Sisfron e, mais especificamente, com a regulamentação da Lei da Grilagem (Nova Lei de Regularização Fundiária, a 13.465). Não se pode dizer que isso é uma questão de ideologia, também. Estamos tratando aqui de direitos à terra e ao território que garantem à Amazônia ser patrimônio de todos e todas, que foram adquiridos por meio de muita batalha, nacionalmente e internacionalmente, sem militarização, muito pelo contrário. A proposta dos direitos territoriais e coletivos veio em resposta ao simplismo da militarização, da vigilância e da concentração de terras nas mãos de muito poucos ou sob o domínio exclusivo do Estado, como ocorria, enquanto política pública de segurança nacional na Amazônia, ou na Politica de Integração Nacional - PIN, no período ditatorial.

A ideia de usufruto sobre os territórios da União para os povos é justamente o reconhecimento de sua melhor capacidade de gestão e manutenção desses territórios alicerçada em direitos a esse mesmo usufruto. É muito angustiante ver que os candidatos que defendem a região, colocando esses direitos no centro do debate, tenham sido taxados de comunistas por uma parte importante da população brasileira que não vive e não conhece a realidade amazônica. Isso só contribui para as pessoas com menos informação pensarem que direitos territoriais e conservação de territórios pelos povos, em respeito aos seus modos de vida, é privilégio. Tirar direitos de um grupo abre precedentes para que direitos possam ser tirados de qualquer um, a despeito de sua garantia prévia. O que todos precisamos prestar atenção é que a criação de precedentes para a exceção independe da região em que se vive ou a que grupo se pertence; trata-se de tornar o estado de exceção presente, em um ato específico, em regra.

Vimos isso ocorrer na Alemanha, com o nazismo, no Peru, com o fujimorismo, especialmente no que tocou aos povos da Amazônia do lado de lá na fronteira. Quando se ancora isso em objetivos supostamente de base econômica que beneficiariam a nação, a violência da exceção pode se tornar a regra, pois anuncia-se que o bem de todos, nestas condições, se torna mais importante que a sobrevivência de poucos. Sendo assim, o que está em jogo é justamente a permanência da exceção como regra e a despossessão de direitos como prática. Mas vamos lembrar que, independente da contabilidade, o que vale é a humanidade, e só na Amazônia brasileira somos aproximadamente 30 milhões de pessoas, e mais de 150 povos distintos. É muita diversidade e muita gente em xeque por uma ideia que não confere de nação. Lembremos também que nós, na Amazônia, fazemos parte da nação, e não de uma ideia que pretende nos objetificar, tirando de nós o caráter de sujeitos de direitos, coletiva ou individualmente.

IHU On-Line - Qual a importância estratégica da maior floresta tropical do mundo?

Marcela Vecchione - É totalmente estratégica para nossa sobrevivência enquanto espécie. Para além da lógica centrada no carbono, pela qual desde o primeiro relatório do IPCC a floresta amazônica aparece como o maior estoque de gás no mundo, podendo a sua conversão e modificação influenciar diretamente na quantidade de CO2 jogada na atmosfera e no próprio ciclo do carbono no mundo, a floresta amazônica é fonte de resistência e inovação. Há muitos outros pesquisadores mais bem qualificados em suas áreas para falar sobre isso, como os arqueólogos e os ecólogos, mas o que posso dizer é que é preciso resistência, não somente resiliência, para sobreviver na floresta.

A resistência que as espécies, incluindo aí nós, os homo sapiens, manifestados na forma de diferentes modos de vida dos povos da floresta, praticam para existir na floresta é fonte infinita de tecnologia socioambiental, de adaptação climática, de sociobiodiversidade. Resistência que se dá à forma colônia, à forma Estado, que se combina aos processos naturais ferozes que na floresta se desenvolvem. Essa resistência não naturaliza a natureza e traz à tona a ligação profunda entre as visões de mundo em constante processo de transformação na criação contínua - e plantada - do que é a floresta. Ou seja, natureza e o homo sapiens, natureza e povos, não se separam. Isso é uma contribuição estratégica em termos de base de pensamento, e de ação política, se quisermos sobreviver neste mundo.

Em termos políticos e históricos - ainda que provavelmente a cosmopolítica e suas cosmologias de referência não devam ter sido a base para a tomada desta decisão -, foi a partir do entendimento da contribuição da floresta amazônica para o desenvolvimento sustentável em nível global que foi criado o primeiro Programa Piloto de Proteção de Florestas Tropicais, o PPG7, no marco da Conferência da Terra (Convenção da ONU sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento), a Rio Eco 92. Naquele momento, entendeu-se que, com estratégias coordenadas de cooperação internacional, auxiliando a criação das estruturas institucionais para a instalação e o funcionamento do Ministério do Meio Ambiente no Brasil, até então inexistente, em consonância com a criação de programas específicos para a demarcação de Terras Indígenas e de Unidades de Conservação, seria possível gerar lições importantes para a governança ambiental global.

Nas negociações internacionais de clima e biodiversidade, perpetradas desde então, o Brasil sempre foi referência em suas experiências desenvolvidas a partir dessa concertação, que foi global. Cabe dizer que os movimentos socioambientalistas do Brasil tiveram importante contribuição nesse processo, que fortaleceu a ideia de multilateralismo com a participação de atores estatais e não estatais no processo, incluindo os povos e comunidades tradicionais. Agora, imagine se toda essa história e as práticas dela resultantes acabam com um simples decreto presidencial, que pode fundir o Ministério do Meio Ambiente com o seu antagonista, dadas as configurações políticas atuais, o Ministério da Agricultura? Ou um decreto que pode nos retirar do Acordo de Paris?

Mapa da Amazônia Brasileira (Foto: IPAM Amazônia)

IHU On-Line - Pela importância da Amazônia, por que ela não é mais valorizada no debate político?

Marcela Vecchione - Diria que é valorizada tanto quanto pode ser um fator de mais integração e de garantia de posições de liderança para o país, seja na agenda de infraestrutura e comércio intra e inter-regional, seja no debate ambiental. Dificilmente há um debate sobre desenvolvimento de dentro da região para fora, com contribuições endógenas para o desenvolvimento nacional. Mas, de novo, penso que a chapa Boulos-Sonia trouxe uma inflexão para este debate, como também trouxe o engajamento dos povos da região no processo eleitoral, conectando isso às suas necessidades e à sua sobrevivência. Acho que principalmente Sonia foi capaz de comunicar o que são estas riquezas e suas particularidades para uma parte do país, pelo menos, que se interessou em ouvir e saber mais sobre isso. Foi bastante pedagógico, neste sentido.

IHU On-Line - Os brasileiros, no geral, estão atentos e preocupados com a situação da floresta? A sociedade não deveria estar mais mobilizada e pressionando para a preservação do bioma e de seus povos?

Marcela Vecchione - Sinto essa preocupação aumentando. Não penso que temos um conjunto de sociedade homogêneo no grupo atual do que se chama sociedade brasileira. Temos uma sociedade partida e várias sociedades ou ideias de viver em grupo que nunca foram contempladas por esta sociedade mais envolvente. Para além da ideia da polarização que hoje domina como nossa sociedade estaria constituída, eu acrescentaria que acima disso nós somos muito diferentes mesmo, mas acho que essa não é a principal reflexão agora. A reflexão é como pensar e fazer para que aqueles que sejam conscientes dessa diferença e estejam dispostos a comunicá-la possam ter espaço para fazer isso com segurança, garantia de recursos e de maneira ampla, pública e irrestrita. Quando falo isso, estou me referindo diretamente à educação.

No segundo turno das eleições, vimos um lado defendendo veementemente o fim da liberdade de formularmos e circularmos conteúdos, de termos incentivo e investimento público para continuarmos estudando e pesquisando, e tudo isso influencia diretamente na queda da produção e divulgação científica de informações sobre a região. A educação e a divulgação científica têm um papel primordial no preenchimento da lacuna de (des)conhecimento sobre a Amazônia e seus povos. Se temos um governo que defende a educação a distância, em vez de investimento e construção de mais polos educacionais, com produção de material diferenciado e formação de professores com conteúdo crítico, dificilmente esta sociedade envolvente, que não dialoga com os povos amazônicos, poderá conhecer mais sobre a realidade amazônica e, consequentemente, respeitá-la e reconhecê-la.

IHU On-Line - Nos últimos anos, qual o principal problema que atinge o bioma e em que dimensão?

Marcela Vecchione - Em termos macro é aquilo que o senso comum debate: o desmatamento e a degradação da terra e dos ecossistemas com acentuada diminuição da cobertura florestal. Em termos mais específicos, é a perda e ameaça aos direitos territoriais de povos e comunidades frente à reformulação do que significa o direito à terra na Amazônia. Penso que mais enfaticamente e de forma visível a partir do massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, ficou claro que não podemos pensar de forma desvinculada a proteção da natureza, na forma dos direitos ambientais, dos direitos humanos e a garantia do direito à terra na região.

Desde 2009, em pesquisa contínua, tenho percebido que a violação de direitos humanos caminha de mãos dadas com o desmatamento e a degradação ambiental na Amazônia. Os motivos são óbvios. De maneira mais direta, o desmatamento vem acompanhado de um processo violento, que não é apenas cartorial, de grilagem de terras. Perceba que nos locais de maior foco de desmatamento na Amazônia, é justamente onde ocorre o maior número de assassinatos no campo. De forma igualmente perceptível, mas com efeitos mais no médio e longo prazo, o desmatamento e a degradação, em conjunto com a apropriação indevida de terras, que passou por um movimento acelerado de consolidação pelo Programa Terra Legal, leva à despossessão dos povos, que não têm mais a base material necessária para a reprodução de seus modos de vida. Essa despossessão também gera apropriação indevida de biodiversidade, da feita em que se apropria da riqueza da terra, possível na Amazônia quase sempre em associação com o conhecimento tradicional.

IHU On-Line - Alguns pesquisadores têm sugerido que é preciso pensarmos no desenvolvimento da Amazônia em conjunto com o desenvolvimento da chamada Revolução 4.0. O que seria um desenvolvimento adequado da região, na sua avaliação?

Marcela Vecchione - Para nós, pesquisadores engajados na e com a região, essa é a pergunta-chave, mas ao mesmo tempo muito difícil de responder definitivamente. Não acho que somente entrar e adentrar na Amazônia a partir da Revolução 4.0, que é justamente a revolução da biodiversidade, mas, contraditoriamente, também da apropriação desta para a biologia sintética com base em regimes de propriedade intelectual bastante desiguais, vá resolver os problemas de desenvolvimento por aqui. Como apontei na resposta anterior, nossos problemas podem já ir começando a ser resolvidos com a promoção dos direitos humanos, aliados à garantia dos direitos territoriais, e de políticas públicas construídas em arranjo com os povos da região.

Por exemplo, quando estava sendo negociada a Lei 13.123/2015, que constitui o novo marco legal de acesso e proteção da biodiversidade, os povos da Amazônia, bem como os povos do Cerrado, apontaram os inúmeros problemas relacionados ao bioma. Aqueles que propuseram essa lei disseram que ela seria a via para a entrada do país na Revolução 4.0. Entretanto, aqueles que são os principais produtores do conhecimento que torna possível a biodiversidade teoricamente protegida dessa lei, apontaram a mesma como via de flexibilização para se abrir à apropriação indevida e/ou sem repartição justa de benefícios dos seus conhecimentos tradicionais. Então, essa revolução seria mesmo para quem, da maneira como vem sendo regulada globalmente e nacionalmente? De fato, apostar em um desenvolvimento baseado na biodiversidade seria estratégico para a Amazônia, mas não sem antes várias questões relativas aos direitos territoriais e à real proteção dos conhecimentos tradicionais serem resolvidas. Do contrário, estaríamos apenas dando novos apostos ao desenvolvimento, sem repensá-lo de fato.

Leia mais