Desvelando o Movimento dos Focolares. Entrevista com o jornalista investigativo Ferrucio Pinotti

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26 Novembro 2021

 

Quando “A Armada do Papa” (Ed. Transworld, 1995; em português publicado por Ed. Record, 2002) foi publicado, era o primeiro livro a questionar a natureza sectária dos novos movimentos eclesiais, como Focolares, Comunhão e Libertação e o Caminho Neocatecumenal.

O livro era baseado, em partes, nos meus noves anos como membro e uma liderança dos Focolares.

Agora, Ferruccio Pinotti, jornalista investigativo italiano, publicou um novo livro chamado “La Setta Divina” (Ed. Piemme).

Este é o primeiro livro a lidar exclusivamente com os Movimentos dos Focolares e, com total abertura, contribuí com meu testemunho pessoal para os esforços do autor.

Pinotti concedeu esta entrevista sobre seu novo livro (atualmente disponível apenas em italiano).

 

A entrevista é de Gordon Urqhart, publicada por La Croix International, 25-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

Depois que publiquei “A Armada do Papa”, as lideranças do Movimento dos Focolares proibiram seus membros de lerem o livro e fizeram de tudo para restringir sua distribuição nos países onde havia sido publicado.

A reação oficial ao “La Setta Divina” tem sido mais silenciosa e apologética. Mas, embora o Movimento dos Focolares agora admita que foi responsável por abuso de poder, com o que o Papa Francisco os acusou diretamente, eles falam sobre o zelo dos primeiros dias e minimalizam os problemas como se fosse comportamento de poucos. A sua pesquisa confirma essa posição?

Não me parece correta esta visão dos problemas típicos dos Focolarinos, de afirmar que as distorções e os abusos foram apenas fruto do ‘período heroico’ e do início do movimento; parece reducionista e manipulador.

Os problemas sempre existiram e ainda existem porque são estruturais e se baseiam em um tipo de ‘teologia’ e um tipo de ‘carisma’ que apresenta grandes problemas tanto no nível religioso como no existencial.

 

O Papa Francisco disse ao movimento Comunhão e Libertação: “O carisma não é o centro: só existe um centro e é Jesus, Jesus Cristo. Quando coloquei o meu método espiritual no centro... perdi o meu caminho ... Todos os os carismas na Igreja devem ser ‘descentralizados’” (7 de março de 2015). Mas os Focolarinos insistem no “carisma de Chiara” como um mantra. Quais são os problemas com essa atitude?

O Papa Francisco pediu, com razão, ao Comunhão e Libertação (CL) uma mudança profunda e até a renúncia de seu presidente, Pe. Julian Carron. Ele também decretou recentemente uma visita apostólica no caso da rama do CL, Memores Domini.

Neste momento, o CL está em crise devido à impossibilidade de eleger um sucessor para a Carron e aos problemas de viabilidade dos seus estatutos.

O sinal de Francisco é claro: estes movimentos como CL, os Legionários de Cristo, Opus Dei, Renovação Carismática, o Caminho Neocatecumenal e os Focolares já não podem continuar a explorar os seus carismas particulares para fazer o que querem, para tratar as pessoas como eles acham adequado se tornarem igrejas de facto dentro da Igreja, serem grupos leigos carregados de dinheiro, mas sem prestar contas a ninguém.

A advertência do Papa sobre Comunhão e Libertação é certamente válida também para os Focolarinos, que, no entanto, tiveram a sorte de renovar sua liderança em janeiro deste ano, o que lhes dá uma pequena vantagem.

No entanto, esse movimento está sendo observado pelo Papa e pelo Dicastério dos Leigos.

 

Quando eu era membro dos Focolares, havia muitos escritos inéditos da fundadora, Chiara Lubich, que nos disseram para mantermos em segredo porque os estranhos e até os líderes da Igreja não iriam ‘entender’. Lendo Paraíso de 1949, o relato de Lubich sobre sua série de visões de dois meses logo após o início do movimento, e também conhecendo aspectos ocultos de sua história, qual a sua impressão sobre a pessoa de Chiara Lubich?

A minha impressão de Lubich – e digo com o maior respeito – é que ela era uma muito boa jovem católica que vivia em Trento e que durante os anos de guerra foi animada por um desejo sincero de fazer o bem e ajudar os pobres.

Ela viveu sua fé de forma messiânica, convencida de que havia sido designada por Nossa Senhora com uma missão especial, a de criar um movimento de virgens totalmente dedicado à ideia de unidade.

Em 1949 ela recebeu o que é tecnicamente conhecido como “revelações privadas”; isto é, visões, inspirações religiosas e místicas que foram então transcritas por ela e sobretudo pelas pessoas ao seu redor.

Essas visões, o chamado Paraíso 49, tornaram-se uma teologia por direito próprio, embora nos anos 1950 o Santo Ofício (agora Congregação para a Doutrina da Fé) as considerasse heréticas, tanto que elas ficaram escondidos em um cofre de um banco por muito tempo, até que voltaram à superfície em 1974.

Mas, desde então, permaneceram substancialmente desconhecidos do grande público e da maioria dos próprios Focolarinos, na sua forma mais completa, precisamente porque contém passagens muito extremas que podem perturbar muitas consciências.

Digo isso com o maior respeito, tendo lido cuidadosamente todo o texto do Paraíso 49.

 

O que realmente significa o termo “unidade”, de que os Focolarinos se consideram mestres?

O termo “unidade” é definido pela fundadora em muitas passagens de Paraíso 49 como a necessidade de aqueles que a seguem “não serem nada”, abandonarem a própria identidade, renunciarem às suas próprias aspirações e sonhos que não os da fundadora do movimento, “cortarem suas cabeças”, “esvaziar-se”.

Esta é basicamente a exigência para alcançar a chamada unidade: apagar a própria identidade, o próprio caráter, os seus impulsos mais profundos, as suas necessidades emocionais.

Tudo isso é uma mensagem que não corresponde à mensagem original de Cristo nem à doutrina católica, que, ao ensinar o amor de Deus e a devoção ao ensinamento de Jesus Cristo, não exige de forma alguma o aniquilamento da personalidade ou a redução a um ser não pensante, não senciente, a um “nada”.

O que emerge dos escritos da fundadora é, infelizmente, uma visão profundamente niilista, além de se caracterizar por formas de pelagianismo porque pressupõe um diálogo direto entre Chiara Lubich – que se autodenominava “vigária de Maria” – e a Trindade.

 

A causa da canonização de Lubich está bastante avançada – já ultrapassou o nível diocesano e agora na Congregação para as Causas dos Santos do Vaticano. A santidade está nas virtudes heroicas. Você vê isso em Lubich?

A primeira fase da beatificação, a fase diocesana, já foi concluída. O resultado foi uma conclusão precipitada, pois a diocese encarregada disso é Frascati, onde está localizada a Rocca di Papa, sede do Movimento dos Focolares.

A isso se segue a segunda fase, que se realiza no Vaticano, na Congregação para os Santos, que recentemente esteve em problemas pelo escândalo da renúncia do cardeal Becciu, o grande protetor dos Focolarinos.

É necessário, portanto, ver como e quando se dará a segunda fase da beatificação da Serva de Deus Chiara Lubich e se prosseguirá a canonização.

Pessoalmente, tenho minhas dúvidas, pois acho que será difícil encontrar milagres confiáveis.

Mas a revelação de abusos e violações dos direitos humanos diretamente ligados ao pensamento da fundadora também desperta perplexidade.

 

Você concorda que o abuso que o movimento praticou é certamente igual em gravidade ao abuso sexual, deixando vidas arruinadas ou destruídas, e você poderia dar exemplos?

Absolutamente sim. Acredito que os casos de abuso sexual e pedofilia que surgiram e continuam surgindo no Movimento dos Focolares são tão graves quanto os casos de manipulação psicológica e humana.

Talvez estes últimos sejam ainda mais graves porque prejudicam estruturalmente a existência do indivíduo e sua possibilidade de recuperação.

No meu livro de investigação, escrito com a ajuda do jovem jornalista Stefano Mazzola, existem inúmeros testemunhos que referem situações semelhantes e idênticas em diferentes latitudes do globo, resultando em episódios de depressão gravíssima e até suicídio.

Algumas das histórias comoveram-me profundamente, devo confessar.

 

Por outro lado, parece que os Focolares pedem piedade pelos problemas do passado e do presente. Eles se mostram humildes, mas os ex-membros são céticos quanto a essa reação. Eles acham que o movimento não é capaz de um diálogo real. Pedir desculpas certamente não é suficiente. Então, como o movimento pode reparar esse dano?

Acredito que as novas lideranças do movimento terão muita dificuldade em fazer mudanças justamente porque a resistência é principalmente interna, na base, enraizada nas pessoas que acreditam que o movimento é perfeito.

Por meio das redes sociais, recebo muitas cartas de pessoas do movimento que me confessam que sentem que algo está errado, mas ao mesmo tempo têm pavor de ler meu livro por medo de descobrir verdades dolorosas.

Em vez disso, acredito que as pessoas devem enfrentar a verdade mesmo ao custo do sofrimento.

Posto isto, a reparação dos abusos e danos deve ser feita tanto coletiva como individualmente; ou seja, com uma autocrítica profunda e pública, que já começou em parte, mas também atendendo às vítimas, pedindo desculpas a elas e até oferecendo uma compensação financeira nos casos em que essas pessoas deram muitos anos de suas vidas ao movimento, ou mesmo muita renda pessoal ou patrimônio familiar, se esvaziando completamente de possibilidades futuras.

 

O Papa Francisco falou com bastante vigor aos líderes dos Focolares em fevereiro deste ano e, a seguir, no dia 16 de setembro, a todos os líderes do movimento. Naquela ocasião, ele até se referiu a um fundador de um movimento como “Hitler de hábito”. Você acha que ele e o cardeal Kevin Farrell, do Dicastério para os Leigos, estão perfeitamente cientes do que está em jogo no caso dos Focolares – ou também estão no escuro?

Creio, a julgar pelas palavras do Papa nestas duas ocasiões, que Francisco está bem ciente da complexidade dos problemas que afligem o Movimento dos Focolares.

No entanto, também acredito que é muito difícil para ele e para o cardeal Farrell intervir diretamente, já que o Movimento conta com muito apoio entre os bispos (há mais de 180 bispos amigos do movimento), entre os cardeais e também nas estruturas internas da Cúria Romana.

Em sua audiência no início de fevereiro de 2021, o pontífice até aceitou um considerável cheque para os pobres oferecido pelo Movimento e, embora o tenha advertido, até agora não tomou medidas mais decisivas.

Evidentemente, ele tem confiança na nova presidente e em sua capacidade de mudar profundamente a estrutura e as práticas do Movimento.

Pode-se dizer que os Focolarinos estão atualmente sob judice, sob estrita observação do Papa e do Dicastério dos Leigos, que já em 2020 proibia o movimento de continuar com a prática do chamado schemetti, interrogatórios diários escritos minuciosamente detalhados com que o movimento violou a privacidade de seus membros, monitorando todos os seus movimentos e censurando todos os aspectos de suas vidas.

 

O Presidente da Itália frequentemente elogiava Lubich – assim como Romano Prodi e centenas de políticos e funcionários de instituições internacionais. Quais são os aspectos desta investigação que eles devem estar cientes e como deveriam responder? Poderiam eles serem vistos, em certo sentido, como cúmplices que facilitaram os abusos no movimento?

O presidente Sergio Mattarella é um fiel apoiador do Movimento dos Focolares e, em particular, da figura do seu cofundador Igino Giordani, cuja biografia ele mesmo escreveu o prefácio e quem também era amigo de seu pai.

O presidente Mattarella, ao defender a ideologia da unidade do movimento, indiretamente apoia um conjunto de práticas que provavelmente desconhece.

Muitos políticos italianos como Rosy Bindi ou Romano Prodi – e muitos outros – são amigos do movimento, cujo poder e influência conhecem.

Mas nenhum deles está disposto a ouvir a voz das vítimas ou a proteger seus motivos.

 

Você escreveu um livro sobre o “outro lado” de João Paulo II. O caso dos Focolares é mais um aspecto negativo do seu reinado, que agora se tornou um grande problema para toda a Igreja, que precisa ser resolvido. Por que o julgamento estava em falta?

Em meu livro “The Secret Wojtyla”, escrito em conjunto com o vaticanista Giacomo Galeazzi, analisei em profundidade o cerne do apoio de Wojtyla à galáxia de movimentos fundamentalistas e sectários.

Certamente, é claro que esse apoio decorre do sofrimento que a Igreja experimentou sob o comunismo soviético e da busca de apoio de grupos com fortes valores conservadores que os capacitariam a lutar contra o comunismo na Europa Oriental.

Todos esses movimentos são caracterizados por práticas questionáveis e recorrentes violações dos direitos humanos.

Isso, sem dúvida, faz parte das características geopolíticas e pessoais do pontificado de um papa que desempenhou um papel fundamental na queda do Muro de Berlim e no colapso do Império Soviético, mas que carecia de discernimento das tendências sectárias na Igreja, que ele próprio fomentou.

Este é o problema que o Papa Francisco está agora, gentilmente, mas decididamente, tentando resolver.

 

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