Francisco assume os movimentos. O papa jesuíta e um difícil discernimento de espíritos. Artigo de Massimo Faggioli

Foto: Paul Haring | CNS

23 Junho 2021

 

 “O atual pontificado representa uma mudança de curso da política pós-Vaticano II para os novos movimentos. Na primeira fase da história dos movimentos (aproximadamente da década de 1950 e do Vaticano II até o pontificado de Bento XVI), o papado comprometeu-se implicitamente a respeitar qualquer forma de governo interno que os movimentos desejassem se dar – até mesmo a mais personalista. Com Francisco, vemos o início de uma segunda fase na história dos novos movimentos", analisa Massimo Faggioli, historiador italiano, professor da Villanova University, em artigo publicado por La Croix International, 22-06-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Segundo ele, "depois das hesitações de Paulo VI, João Paulo II se tornou o herói dos movimentos. Bento XVI manteve a linha do seu predecessor polonês. Francisco é uma história muito diferente, e os movimentos, provavelmente, lembrarão dele de forma muito diferente".

 

Eis o artigo.

 

Nem todos os documentos históricos ganham a atenção que merecem.

Um caso é o decreto do Dicastério do Vaticano para o Laicato, Família e Vida, publicado em 11 de junho, sobre a governança interna das associações internacionais de fiéis.

Assinado pelo prefeito do Dicastério, cardeal Kevin Farrell, e aprovado em forma specifica (que significa imutável) pelo Papa Francisco, o texto é um divisor de águas na história dos novos movimentos leigos e a Igreja Católica.

Ele diretamente afeta apenas as “associações internacionais de fiéis reconhecidas ou erigidas pela Sé Apostólica e as sujeita à supervisão direta do Dicastério para o Laicato, Família e Vida”.

Mas também envia uma importante mensagem para todos os movimentos leigos e toda a Igreja.

Esse pequeno decreto, que consiste de um preâmbulo e oito artigos, coloca tempo limite sobre os mandatos dos líderes dos movimentos leigos – cinco anos, renováveis apenas uma vez, fechando um máximo de dez anos.

O decreto também acerta eleições regulares para a substituição dos líderes (artigo 1 e 2), ordena que todos os membros participem na eleição dos líderes (artigo 3), embora garanta a possibilidade de exceções para os fundadores dos movimentos que ainda estão vivos (artigo 5).

Isso tem consequências precisas para os atuais líderes que agora têm mandato limitado.

 

Siga meu líder

 

O decreto força uma agenda de mudança nos órgãos de governos nos próximos dois anos (artigo 4). Também revoga qualquer lei interna dos movimentos que contradigam o decreto, e, caso isto ocorra, ainda força os movimentos a revisarem seus estatutos (artigo 8).

O decreto deixa claro – há alguma superficialidade, mas significativo entendimento para entender a intenção do documento – que associações clericais, institutos de vida consagrada ou sociedades de vida apostólica não são atingidas pelo decreto (artigo 6).

 

O que motivou a publicação desse decreto?

 

No preâmbulo diz-se que “é necessário que o exercício do governo seja devidamente organizado no âmbito da comunhão eclesial e realizado como meio para os fins que a associação persegue”.

Mas fala também de algo mais problemático do ponto de vista jurídico: o objetivo de “promover uma renovação saudável” e “a utilidade da mudança geracional nos órgãos de governo e a oportunidade de promover a mudança de responsabilidades no governo”.

De certa forma, isso fala sobre este momento na vida da Igreja. E oferece outra razão para esta intervenção do Vaticano.

“O Dicastério para os Leigos, Família e Vida considerou necessário regular os mandatos de governo, no que diz respeito à sua duração e número, bem como a representatividade dos órgãos de governo, a fim de promover uma sã renovação e prevenir desvios que de fato levam a violações e abusos”, diz (grifo nosso).

Esta é provavelmente a intenção fundamental do decreto – pôr em prática medidas que possam ajudar a prevenir dinâmicas doentias de poder e autoridade em grupos eclesiais às vezes em alto risco por causa da liderança carismática que pode criar cultos de personalidade.

Nesse sentido, o decreto responde à crise dos abusos e sua expansão da tipologia original – abuso de menores por clérigos – para as novas tipologias que vimos nos últimos anos: abuso de poder e autoridade contra todos os tipos de membros da Igreja, e também nos movimentos eclesiais leigos.

 

Alguns aspectos problemáticos do decreto

 

Este é um problema emergente que foi apontado por Hans Zollner, padre jesuíta, que é o principal conselheiro do Vaticano sobre a crise dos abusos, uma crise que ainda pode estar apenas nos estágios iniciais em termos de revelações e investigações.

Portanto, este decreto é um bom sinal de que o Vaticano continua a moldar e refinar sua resposta à crise dos abusos.

Por outro lado, existem aspectos problemáticos neste decreto.

Diz que “a Igreja reconhece que os fiéis têm, devido ao seu batismo, o direito de associação e protege a sua liberdade de os fundar e governar”.

Como alguém que fez extensas pesquisas sobre esses movimentos, muitas vezes tenho criticado a cultura institucional dos movimentos católicos leigos que às vezes distorcem a teologia e a eclesiologia do Vaticano II.

Mas o novo decreto marca uma intervenção sem precedentes e bastante pesada do Vaticano em uma área delicada da vida da Igreja.

Em uma importante análise publicada alguns dias após sua publicação, o (leigo) canonista italiano Pierluigi Consorti apontou algumas peculiaridades do decreto.

Por exemplo, ele observou a escolha de definir um mandato de cinco anos para os presidentes e não permitir maior flexibilidade. Por que cinco anos e não três ou sete anos, por exemplo?

Também é sabido que uma mudança na liderança não significa necessariamente uma mudança de cultura em uma organização. Novos nomes geralmente servem apenas para legitimar práticas antigas.

 

Uma forma clericalista de combater o clericalismo?

 

Este decreto, por um lado, é outro exemplo das inconsistências entre a teologia da Igreja do Papa Francisco e o discernimento contra o clericalismo, por outro, uma forma terrivelmente clerical de legislar.

Essa inconsistência foi cuidadosamente estudada em um livro (disponível neste link, em italiano) que acaba de ser publicado.

Inconsistências semelhantes podem ser vistas no novo Livro VI do Código de Direito Canônico sobre os procedimentos penais da Igreja.

Parece ser mais o resultado de um projeto iniciado pelo cardeal Joseph Ratzinger no final dos anos 1980 (e explicitamente pelo Papa Bento XVI em 2007) do que a obra de Francisco.

Mas também há uma clara coerência entre o que Francisco disse e fez sobre os novos movimentos católicos desde sua eleição em 2013.

Este pontificado representa uma mudança de curso da política pós-Vaticano II para os novos movimentos.

Na primeira fase da história dos movimentos (aproximadamente da década de 1950 e do Vaticano II até o pontificado de Bento XVI), o papado comprometeu-se implicitamente a respeitar qualquer forma de governo interno que os movimentos desejassem se dar – até mesmo a mais personalista.

 

“Eclesiologia do povo” e anti-elitismo

 

Com Francisco, vemos o início de uma segunda fase na história dos novos movimentos. E há pelo menos três fatores para a mudança.

Primeiro: é um dos efeitos do pontificado do papa jesuíta, do discernimento, que sempre alertou para os riscos do sectarismo espiritualizante.

O discernimento dos carismas é algo que Francisco fala desde o início de seu pontificado. Mas agora tem um custo para a liberdade dos movimentos leigos de se organizarem internamente como quiserem.

Segundo: o escândalo global dos abusos sexuais, que recentemente envolveu alguns movimentos católicos, sugere que mecanismos devem ser estabelecidos para evitar o culto da personalidade até mesmo na Igreja.

Esse decreto é indiretamente uma avaliação severa da primeira metade de um século de história dos novos movimentos católicos e de algumas das decisões feitas pelos predecessores do Papa Francisco nesta área.

Terceiro: mais de 50 anos se passaram desde a fase de fundação dos movimentos e é tempo para uma revisão à luz da experiência, a qual João Paulo II e Bento XVI assumiram que foi uma das grandes esperanças – se não a maior – para o futuro da Igreja Católica.

Não para o Papa Francisco: esse é um dos efeitos de sua ênfase na “eclesiologia do povo” e seu anti-elitismo.

 

Francisco intervém na história dos movimentos

 

O papa jesuíta representa uma interrupção e uma nova fase na história dos novos movimentos.

Uma primeira fase era a fundação, extra legem, e entre as profundas suspeições de muitos líderes da Igreja, entre 1950 e 1970.

Uma segunda fase foi o florescimento e reconhecimento (tanto moral quando canônico) pela Igreja institucional entre 1980 e o início dos anos 2000.

E uma terceira fase foi uma mudança de liderança de uma primeira geração, de fundadores, a segunda geração, mas também um platô em termos de suas habilidades para atrair e se renovar nos últimos anos.

Essa perspicaz periodização foi oferecida apenas três anos antes por Piero Coda, dos Focolares, um dos mais importantes teólogos que é membro de um movimento.

Agora, Francisco intervém nessa história.

Várias vezes ele recordou aos movimentos, com singular parrésia, que eles não são a Igreja ou o melhor da Igreja. Esse decreto confirma uma linha fundamental do pontificado.

Os novos movimentos leigos lembrarão desse papa de uma maneira muito diferente que de João Paulo II, que lhes deu um espaço importante na Igreja: espaço que permanece com eles, mas de agora em diante sob condições parcialmente diferentes.

O novo decreto, tecnicamente, se aplica somente sobre os movimentos sob jurisdição do dicastério Vaticano que os publicou. Mas sua mensagem é para todos os movimentos e laicato.

Essa instrução também está no contexto da sinodalidade, o plano de Francisco para a mudança que a Igreja precisa em sua forma de se governar, baseado na participação de todo o povo de Deus.

Uma questão chave que emerge do decreto do Vaticano é, “quem são o ‘povo de Deus’”?

Quem determina quem o povo é e quais as formas que esse povo encontra para se expressar na Igreja?

 

Obediência cega ou liberdades dos filhos de Deus?

 

Neste caso, em particular, o decreto pode ser visto como uma forma de forçar a sinodalidade nos movimentos católicos, mas também uma forma de impor – e de forma detalhista – um Vaticano, cultural clerical sobre experiências eclesiais cujo valor também estava na autonomia garantida deles pela Igreja institucional.

Agora essa autonomia foi reduzida e o futuro dos movimentos não está claro.

Então, nós temos que escutar a reação daqueles que são afetados por esse decreto. É compreensível.

A história dos novos movimentos católicos leigos é uma história, por vezes, de culto de personalidade, de laicato clericalizado e uma obediência cega ao Vaticano.

Mas também é uma história dolorida de ser incompreendida pela Igreja clerical, os bispos e o Vaticano. Frequentemente essa também é uma história de obediência ao Espírito Santo e um exemplo de liberdade dos filhos de Deus dentro da Igreja Católica.

Depois das hesitações de Paulo VI, João Paulo II se tornou o herói dos movimentos. Bento XVI manteve a linha do seu predecessor polonês.

Francisco é uma história muito diferente, e os movimentos, provavelmente, lembrarão dele de forma muito diferente.

 

Leia mais