12 Março 2020
“Nem todas as escolhas de saúde pública são racionais. Todos os tipos de preconceitos culturais e cálculos políticos entram em jogo. Isso deixa muita liberdade de apreciação e até um toque de espírito crítico”, escreve Jean-Pierre Denis, publicado como editorial da revista francesa La Vie, 10-03-2020. A tradução é de André Langer.
Eis o texto.
Imagine! Imagine que continuamos a fazer a crônica no mesmo tom, mostrando mapas interativos, curvas enlouquecedoras, estatísticas febris, histórias edificantes e outras reportagens sobre o homem que viu aquele que parecia tossir. Imagine que fizemos isso por conta da gripe sazonal, levando em consideração cada morte. Ou a propósito de acidentes rodoviários. Ou os mortos da rua (provavelmente milhares por ano), para se perguntar por que eram “pessoas vulneráveis” e como construir com urgência abrigos suficientes para os nossos moradores de rua. Ou, espere! Imagine que rastreamos o “climatovírus”.
Teríamos sido alertados em tempo real para uma emergência planetária que ameaça provocar um número incalculável de vítimas e causar desastres em série: o aquecimento climático. Um dia, leremos o seguinte: “Na China, alerta máximo para o ambiente. O governo toma medidas drásticas, suspendendo Xingtai, Hotan e Baoding”. Tomadas de pânico diante dos defeitos do capitalismo desenfreado, quem sabe, as Bolsas de Valores entrariam em colapso... Inimaginável, você diria.
É verdade... Mas não estamos vivendo um momento inimaginável, quando a gestão de um grave problema de saúde pública se transforma em panurgismo econômico global, em um salve-se quem puder geral, esmagando tudo e levando o resto?
Entendamos bem. Obviamente, não há como negar aqui que se trata de uma epidemia e que reclama medidas responsáveis. Obviamente, não vamos contestar os apelos ao civismo e transmitiremos todos os conselhos, recordando-nos do que disse nossa mãe: “Vai lavar as mãos!” Além disso, por falta de certeza e até pela competência mais elementar, não se julga a relevância das medidas tomadas. Estamos fazendo muito? Pouco? Agimos rápido demais? Devagar demais? Este não é momento para balanços, e seríamos negligentes se acrescentássemos mais confusão à confusão já existente.
Mas uma simples comparação entre a Itália e a França mostra que cada povo reage do seu modo. Na China, optou-se por interromper a epidemia, aparentemente com sucesso, com medidas brutais dignas desse estado de vigilância meticuloso. Na França, país livre e inquieto, recomenda-se gerenciar a propagação do vírus suavizando-o com o tempo. Isso indica que nem todas as escolhas de saúde pública são racionais. Todos os tipos de preconceitos culturais e cálculos políticos entram em jogo. Isso deixa muita liberdade de apreciação e até um toque de espírito crítico.
Mas veja! Previram o fim da morte, o homem eternamente substituído peça por peça, sem falar do data que diz tudo, sabe tudo, pode tudo. Percebemos que estamos vivos, isto é, que somos mortais, frágeis, carnais. Pregaram a salvação pelo individualismo. Constatamos que a humanidade é um só corpo.
O entrelaçamento extremo de nossas sociedades e essas características ingênuas de confiança na técnica se combinaram. O mesmo acontece com os vírus físicos como os vírus informáticos. Onde quer que substituamos a antiga robustez pela sofisticação, subestimamos a mesma tendência à embolia, agravada pela nossa sensibilidade ao pânico.
De fato, foi acreditando-nos invulneráveis que nos tornamos novamente vulneráveis, até o espanto e o fatalismo. Como referência, deve-se notar que a Frat, a mais que centenária associação de estudantes do ensino médio da Île-de-France, que este ano se reúne em Lourdes, não tinha sido cancelada desde a última guerra. Entre os fatos que requerem bom senso e o efeito bola de neve, ainda sabemos ver as coisas em perspectiva?
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