Francisco e a “terceira via”

Refugiados ucranianos desembercam na Eslováquia | Foto: Vatican News

06 Mai 2022

 

Há uma recordação que não me abandona há dias. No dia 10 de janeiro de 1995, a Comunidade de Santo Egídio apresentou o texto de um dificilíssimo entendimento entre as principais forças políticas argelinas, incluindo as seculares e islâmicas da Frente Islâmica de Salvação.

 

O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado em Settimana News, 04-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Em 1991, os argelinos haviam votado virando as costas para aquela Frente de Libertação Nacional que havia se transformado em uma máquina militar, interceptadora de dinheiro, de fortes vínculos com Moscou. Os militares cancelaram a votação, impondo a sua própria.

 

Imediatamente me pareceu um erro decisivo. O regime no poder, então, não aceitou um acordo que comprometia todas as partes a um caminho que respeitasse as regras fundamentais da democracia. Grande parte do mundo secular e liberal – aqui no Ocidente e em parte também em Argel – se opôs a isso. Dizia-se: “Não se fala com fundamentalistas”. Com generais, evidentemente, sim.

 

Eu fiquei estupefato, mas também entristecido, porque, desde então, cada vez mais, percebi a afirmação de um fundamentalismo antifundamentalista. A máquina do poder, assim, continuou apoiando juntas e elites opressoras com base em uma propaganda que escondia a interceptação de todas as riquezas, instigando o povo oprimido contra um “mundo corrupto e a ser odiado”, o Ocidente. Tudo isso foi tranquilamente aceito pelo próprio Ocidente democrático. Foi um desastre humanitário: seguiram-se extermínios, guerra civil, recurso muito frequente à tortura.

 

Os extremismos opostos

 

Essa recordação traz à tona outras recordações. Pelo menos algumas.

 

Em 2003, George W. Bush ordenou a nefasta invasão do Iraque. Muitos aqui propuseram os “escudos humanos” contra as bombas. Ninguém disse aos iraquianos: “Rendam-se!”; pelo contrário, disseram aos estadunidenses: “Retirem-se!” As ruas e praças do mundo estavam superlotadas.

 

Em 2015, a Rússia “interveio fraternalmente” em auxílio do regime de Bashar al-Assad na Síria, ré de comprovados e arrepiantes crimes contra a humanidade e da sistemática interceptação de todos os bens do país. Nenhuma rua ou praça ficou lotada, nenhum escudo humano foi oferecido.

 

A única pessoa que se opôs à guerra – não compreendida – foi Francisco. Somente ele se esforçou contra a intervenção estadunidense temida em 2013: mas não para salvar o regime, mas sim para favorecer um círculo virtuoso russo-estadunidense que realmente desarmasse Assad do seu arsenal químico e iniciasse um processo capaz de reformar o sistema sírio.

 

Moscou preferiu – ao que parece com o placet estadunidense – transformar esse caminho em uma nova invasão, totalmente análoga à do Iraque de uma década antes. A questão síria, portanto, se entrelaçou, desde as origens, com a ucraniana, como outra invasão.

 

Eu me pergunto: o que liga o Iraque à Síria e à Ucrânia? A meu ver, no princípio dessa sequência, está a mesma abordagem mental que provocou o desastre argelino, ou seja, em particular, a ilusão de que, contra o fundamentalista, pode funcionar outro fundamentalismo antifundamentalista, “laico e liberal”.

 

O pesadelo fundamentalista – o mais verdadeiro hoje – é encarnado pelo patriarca de Moscou, segundo cujas imagens apocalípticas existe apenas um único posto avançado do Reino de Deus na terra, com o mandato de aplicar a lei divina na terra e, portanto, de combater, com todos os meios, o “mundo corrupto e a ser odiado”, o Ocidente.

 

Essa alucinação fundamentalista que move ou justifica o imperialismo russo tem a mesma matriz de muitos outros fundamentalistas religiosos: é totalmente análoga à dos nacionalistas seculares árabes, ontem apoiados pela URSS – hoje ainda por Moscou –, inimigos jurados do corrupto Ocidente. Enquanto existe, por outro lado, outro erro fundamentalista que move ou justifica o imperialismo dos Estados Unidos, como “nação abençoada por Deus”.

 

Parece-me evidente, portanto, que os extremismos opostos simplesmente mascararam, em todos estes anos, a existência de um único tipo de fundamentalismo imperialista, embora de origens e feições diferentes, com aptidão a se representar com a imagem antifundamentalista.

 

Quem ainda diz – mesmo na esquerda libertária – que a visão dos direitos civis do vituperado catolicismo polonês, aliado ao governo, é a mesma do contrariado Patriarcado de Moscou, aliado do seu governo? E quem ainda observa – para quem hoje vê Moscou como a capital do verdadeiro “mundo corrupto e a ser odiado” (e possivelmente destruído) – que está fazendo o mesmo discurso que Kirill e Putin?

 

Fonte: Wikimédia Commons

 

Estamos na pós-democracia?

 

Neste ponto, é oportuno citar outro elemento relativo ao nosso mundo contemporâneo: a pós-democracia. Entramos na era pós-democrática? Quem pensa ou teme isso se sente legitimado a usar as guerras – todas as guerras – para travar a sua própria guerra particular contra o sistema pós-democrático.

 

A pós-democracia, portanto, seria aquela invenção pela qual as democracias ocidentais teriam se transformado em tiranias do capitalismo financeiro. Apoiar os inimigos do Ocidente – a começar por Putin – teria como fim, na realidade, travar uma luta contra a pós-democracia. É nesse ponto que setores de extrema direita e de extrema esquerda convergem singularmente na Europa.

 

A solidão em que Francisco foi jogado por todos – se é que existe – está precisamente nesse nó. Muitos sentimentos de amargura se entrelaçam agora na trágica história da Ucrânia. Expõe-se um certo pacifismo a tal ponto que se esquece até a mais elementar empatia pelas vítimas – pelas quais, desde fevereiro, não soube fazer nada mais do que pedir a rendição –, bem como o belicismo extremo.

 

O que dizem, por exemplo, hoje, os belicistas dos talibãs afegãos, que se apoderaram de armas abandonadas pelos estadunidenses por um valor de sete bilhões de dólares? Ambas as posições subestimam os traços do agressor que legitima o neocolonialismo com outras invasões neocoloniais.

 

A terceira via de Francisco

 

Francisco, portanto, é o único líder global que aponta para a possibilidade de uma “terceira via”. A pós-democracia é um risco real, mas somente a democracia pode nos permitir corrigir os desvios, não a constante descoberta de complôs globais. O neocolonialismo subsiste, mas não será um neocolonialismo diferente que nos libertará dele.

 

Em última análise, a terceira via de Francisco pede que nos libertemos de uma visão irremediavelmente dualista, aquela que pinta o mundo com traços pretos e brancos, reduzindo tudo a duas raivas contrapostas. Não se pensa – tendo chegado a este momento – nos argelinos, nos iraquianos, nos sírios ou nos ucranianos de carne e osso, mas apenas nas próprias ideologias totalizantes.

 

 

Francamente, eu não sei se aquela que eu chamo de “terceira via” é a via do Evangelho. Parece que sim. Mas certamente é aquela perspectiva que, sozinha, livra do ímpeto de dizer: “Só nós temos toda a verdade!”

 

Há meses, a terceira via de Francisco reside em três palavras. No início do conflito – quando Moscou proibiu que se falasse de guerra, criando a expressão “operação militar especial” – ele disse que isso é “guerra”. Tendo fixado esse princípio, ele explicou que tipo de guerra era e ainda é: uma guerra de “invasão”. Tendo esclarecido do que se estava efetivamente falando, ele ofereceu uma única receita muito clara: “parem!

 

Esse imperativo, facilmente compreensível a todos, não especifica que apenas um deve parar, talvez o agredido, mas sim ambos: continha e contém um pedido explícito ao agressor e, consequentemente, também ao agredido: faça todo o possível para parar a guerra!

 

Seguiu-se o gesto profético da Sexta-Feira Santa, a das duas amigas – uma ucraniana e uma russa – com a mesma cruz nas mãos! Ao contrário do que alguns entenderam, Francisco certamente não equiparou as condições, mas implorou pelo reconhecimento recíproco, de vida e de dignidade. No alarido das opiniões cada vez mais radicais, indicou a única estrada para enfrentar e buscar uma solução para o conflito: a das palavras cada vez mais francas, não das armas cada vez mais bombásticas.

 

O bem das pessoas

 

O desastre que eu vejo agora no horizonte – mais um – está na sede de contraposição binária: a abordagem emocional do chamado campo pacifista, em oposição ao campo belicista pró-estadunidense, ao campo belicista pró-russo: dois campos que retiram os ucranianos de cena em uma representação puramente ideológica do conflito, entre dois bens e dois males em absoluto.

 

É evidente que, se não sairmos dessa lógica dualista, ninguém poderá mais entender onde está o bem comum do humano, aquele pelo qual apenas o Papa Francisco permaneceu em campo, o único que antepõe o bem das pessoas humanas. E se for realmente assim – ou seja, se Francisco realmente foi deixado sozinho –, então a lógica de Kirill vence, já que todos estamos transformando um conflito claramente colonial em um conflito ideológico ou, na linguagem do patriarca russo, “metafísico”.

 

No dia 30 de abril, Francisco não falou de metafísica – mas sim de caridade – ao receber um grande grupo de eslovacos. Ele disse: “Nestes meses, muitas das suas famílias, paróquias e instituições receberam sob o seu teto as mães com os filhos das famílias ucranianas forçadas a se dividirem para se salvar, que chegaram com a sua pobre bagagem. Olhando nos seus olhos, vocês são testemunhas de como a guerra comete violência contra os laços familiares, priva os filhos da presença dos pais, da escola e deixa os avós abandonados”.

 

Eu me pergunto e pergunto: quem está realmente dentro ou fora da realidade?

 

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