Metropolita de Kiev obriga a fazer outra cronologia da guerra

Metropolita de Kiev | Foto: Wikimedia Commons Anton Bondarev

04 Março 2022

 

O texto de Onofre [disponível em inglês aqui] subverte a narrativa eslavista do Kremlin e obriga a um relato não etnicista dos fatos. Retira a centralidade na cronologia eslava da questão da extensão da Otan a leste e coloca ali a questão da descoberta da fraternidade negada. Ao fazer isso, Onofre também nos obriga a uma cronologia que não pode ignorar o ano de 2013.

 

O comentário é de Riccardo Cristiano, jornalista italiano, publicado em Formiche, 03-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Os políticos visam ao controle dos espaços, mas não podem fazer isso se não controlarem o tempo. A verdadeira questão é controlar as cronologias, porque quem tem uma cronologia pode levantar o mundo, mudar a história.

 

Basta pensar na Ucrânia para entender isso. Quando a guerra começou? A pergunta é decisiva não só para entender quando se poderia evitá-la, mas também para estabelecer quem é a vítima e quem é o carrasco.

 

Todo evento parece ter um início, mas não é assim, não há auroras seguras e entardeceres indiscutíveis ao longo da história. A guerra não escapa dessa evidência.

 

Se pensássemos em fazer a cronologia da guerra na Ucrânia, poderíamos partir da entrada dos tanques russos na Ucrânia há poucos dias, ou da anexação russa da Crimeia, ou da Praça Majdan. Mas não seria indispensável voltar ao extermínio stalinista dos kulaki ucranianos, sobre o qual o Patriarcado de Moscou e de todas as Rússias também chegou a silenciar?

 

Mas talvez seja a história czarista, ou a da conversão da Rus’, há muitos séculos, o verdadeiro ponto de início. Putin menciona isso com frequência e de bom grado: mas essa história da unidade russa também poderia nos dizer que Moscou fazia parte dos territórios de Kiev.

 

Portanto, ter uma cronologia não fixa uma responsabilidade certa, um culpado e uma vítima. Mas muda a história. A cronologia que se escolhe muda a representação da realidade, embora a realidade assim delimitada não seja interpretável de uma única maneira.

 

Há um livro, lançado nestes dias, que nos explica muito bem a importância das cronologias. Quem o escreveu foi Lorenzo Trombetta e se intitula “Negoziazione e potere in Medio Oriente” [Negociação e poder no Oriente Médio], publicado pela editora Mondadori. Esse livro nos ajuda a pensar: se escolhermos uma cronologia que parta da invasão destes dias, a responsabilidade é toda de Putin, isso é claro. Se voltássemos a 860 e à conversão da Rus’, a culpa poderia parecer dos separatistas ucranianos, que querem se separar da grande mãe Rússia, mesmo tendo nascido em Kiev e não em Moscou.

 

Procedendo assim, porém, não poderíamos mais fazer a história de nada. O fluxo dos eventos nos levaria para fora do tempo em vez de para a sua compreensão. E, acima de tudo, as grandes reviravoltas da história seriam apagadas, aquelas que não podemos ignorar. Apagar essas reviravoltas nos ajuda a apagar as nossas próprias responsabilidades. É por isso que o fazemos.

 

Por exemplo: ao voltar a 860, Putin apaga o significado do dia em que ordenou a invasão de um Estado soberano. Esse evento, essa decisão pesará sobre os russos, sobre todos os russos, mesmo sobre aqueles contrários a ela. É impossível que não seja assim.

 

Assim, a partir daquele dia, nós nos confrontamos com a escolha de reagir a uma ação que desafia a ordem mundial e envolve um risco nuclear. Poderia ter sido evitada? Sim, se pensarmos que essa cronologia é falsa e esconde outra reviravolta histórica que evidencia as responsabilidades do Ocidente e da sua falsa consciência.

 

Essa reviravolta histórica remonta ao dia 21 de agosto de 2013, quando o Exército de Bashar al-Assad perpetrou o holocausto químico de Douma. Naquele dia, a Rússia ainda não havia intervindo na Síria. Mas o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, preferiu, em vez da intervenção militar destinada a impor No Fly Zones que impedissem que Assad massacrasse o seu próprio povo, um acordo sobre o desarmamento químico de Assad por meio de um entendimento com os russos.

 

O que os russos entenderam? O que os Putin entenderam? Entenderam que os Estados Unidos estava se retirando e, no seu relativismo ético, também aceitavam o Holocausto químico em troca de uma honrosa saída que os libertasse do temor de que aquelas armas acabassem em mãos mais perigosas do que as de Assad.

 

Assim, nos anos seguintes, ela prosseguiu com a anexação da Crimeia primeiro e depois com a intervenção fraterna na Síria. Foi um autêntico genocídio, e, se hoje nos assustamos com o terrível risco de bombardeios de saturação na Ucrânia, não podemos nos esquecer de que aqueles bombardeios de saturação destruíram vários bairros sírios, do leste de Aleppo para baixo.

 

Assim, chegamos ao dia de hoje, no qual dizemos que Putin, depois de ter assassinado mulheres e crianças, não poderá voltar a participar da vida internacional como seu protagonista. Mas, ao dizer isso, apagamos o fato de que ele já fez isso na Síria, assim como o seu aliado Assad, que foi aceito a ponto de chegar à beira da readmissão internacional.

 

Então, ao dizer isso, também se diz que, para o Ocidente, a civilização existe apenas na Europa, a vida importa apenas na Europa. Essa é a tese que emana daquilo que foi afirmado nestas horas tanto por quem critica Putin, dizendo que agora ele não poderá voltar a ser protagonista do cenário internacional, quanto por quem o defende, dizendo que a Otan o provocou.

 

Ambos esquecem que ele comete crimes contra a humanidade desde 2015, quando aniquilou cidades sírias inteiras, incluindo escolas, hospitais, abrigos e todo o restante que se possa imaginar, sem que isso tivesse qualquer custo, muito pelo contrário.

 

O eurocentrismo de quem remove essa questão tira credibilidade dos valores que propõe: como é possível que quem comete crimes de guerra ou crimes contra a humanidade não pode voltar a ser protagonista do cenário internacional, quando acaba de ser aceito há anos pelo mesmo sujeito?

 

Eis, então, que a lição ao mudar a cronologia se torna terrível. Se tivéssemos intervindo na Síria em defesa dos valores da convivência civil em 2013, ou seja, antes da intervenção russa naquele país, teríamos não só defendido o princípio que se invoca hoje, demonstrando que acreditamos que os princípios valem porque são princípios, e não pelo lugar onde são ou não aplicados, mas também se teria evitado um conflito direto com a Rússia.

 

A intervenção na Síria em 2013 teria sido um aviso a Putin: podemos entrar em acordo, mas as linhas vermelhas existem. Certamente, era preciso coragem, e ninguém diz que foi absolutamente justo, porque a cronologia deveria contemplar outras passagens também.

 

Mas a reviravolta da história não teria sido ignorada e poderia ter nos impedido de chegar àquilo que temos diante de nós. Se hoje temos que considerar um conflito europeu com o risco nuclear que ele acarreta, isso ocorre porque absolutamente não nos interessamos em um genocídio que ocorreu entre 2013 e 2017, e quem o perpetrou entendeu aquilo que achava certo entender.

 

Agora, porém, na cronologia russa, entra de forma disruptiva o comunicado do primaz da Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia, fiel a Moscou, aquela que Putin define como perseguida pelos separatistas e em defesa de cujos fiéis ele teria intervindo.

 

O Metropolita Onofre, porém, diz o contrário e acusa Putin de cometer o mesmo pecado de Caim, matando o irmão. O texto de Onofre subverte a narrativa eslavista do Kremlin e obriga a um relato não etnicista dos fatos. Retira a centralidade na cronologia eslava da questão da extensão da Otan a leste e coloca ali a questão da descoberta da fraternidade negada. Ao fazer isso, Onofre também nos obriga a uma cronologia que não pode ignorar o ano de 2013.

 

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