Desconstruindo os dualismos de que somos reféns: sobre “Salvar a fraternidade – juntos” (parte 3). Artigo de Andrea Grillo

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24 Junho 2021

 

"A salvação da fraternidade passa assim por esta “ascese de desconstrução”, que implica um grande trabalho de conversão, de tradução e de atualização da linguagem e do pensamento, das formas institucionais e das formas de vida, pelo menos no âmbito da experiência eclesial", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 22-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

As partes 1 e 2 deste artigo podem ser lidas, respectivamente, aqui e aqui.

 

Eis o artigo.

 

Após a articulada descrição da crise como kairós, dos sinais dos tempos que se anunciam e da teologia como bem comum, o texto assume a verdadeira e própria forma de um "apelo" dirigido aos discípulos e depois de carta aberta, dirigida aos sábios.

 

Vamos examinar primeiro a primeira dessas duas mensagens.

 

O apelo aos discípulos

 

Uma visão da Igreja, configurada pela Ecclesiam Suam (1964) segundo círculos concêntricos cada vez mais amplos, realiza-se em Fratelli tutti (2020) como uma profecia de uma "evidência testemunhal da forma eclesial", isto é, como destino universal da salvação. Este ponto-chave da doutrina e da autoconsciência cristãs deve voltar a ser "imediato na percepção de qualquer pessoa e firme na convicção dos crentes" (SF 15). Isso tem consequências estruturais importantes, que implicam uma “dupla despedida”:

 

“A missão religiosa subtrai-se ao governo político da cidade secular. O domínio eclesiástico da sociedade civil, fatalmente condenado a aliar-se aos poderes mundanos, tolhe demasiado a liberdade ao evangelho e oferece demasiadas oportunidades ao demônio. Agora é necessário completar o processo, despedindo-se também do projeto cultural de um domínio eclesiástico dos saberes humanos” (SF 15).

 

O objetivo dessa "dupla despedida" - da "direção eclesiástica da sociedade civil" e da "direção eclesiástica dos saberes humanos" - é elementar: a reabertura, na história comum, de uma esperança de redenção pelo mundo compartilhado, em primeiro lugar pelos pobres e pelos descartados. Trata-se da superação de um “modelo de cristandade” que o passado conheceu e que acabou:

 

“A edificação de um mundo cristão paralelo, alternativo ao humano que é comum, representa um passado na história do testemunho, que já não ilumina o futuro que lhe é aberto por Deus” (SF 16).

 

Está em jogo um modelo de autoconsciência eclesial, desenvolvido nos últimos séculos, e que cultiva uma relação "nostálgica" com a tradição, tanto no caso de "resistência a toda reforma" como no caso de "mitificação das origens". Na realidade, é necessário aceitar que existe um “dado novo” - um novo paradigma de cultura - com o qual os recursos das soluções anteriores já não bastam mais:

 

“Em ambos os casos, a imagem de fundo insiste, contudo, na reabilitação de um regresso ao passado. Esta retoma arqueológica, mesmo que se prescinda de toda a avaliação dos seus argumentos, subtrai a mente e o coração à missão de habitar o novo kairos de Deus: que não existia, simplesmente, no passado. Um mundo humano institucionalmente não-religioso é um interlocutor historicamente inédito" (SF 16).

 

Aqui, como é evidente, a assunção desta novidade torna-se um desafio realmente decisivo, que teologicamente requer o repensamento de um “duplo dualismo”. Visto que pensamos "separado" o que deve estar unido, segue-se que acabamos unindo o que deve ser distinto. Aqui está a tarefa que o apelo chama de "desconstrução de um duplo dualismo" e a apresenta assim:

 

"O nosso apelo é um convite entusiasta à teologia profissional – e, em geral, a todo o crente – para que proporcione um espaço privilegiado e comum ao empenho de desconstrução do duplo dualismo que nos mantém hoje reféns: entre a comunidade eclesial e a comunidade secular; entre o mundo criado e o mundo redimido” (SF 16).

 

Estamos aqui no nó central do texto, aquele que resulta mais rico e prenhe de implicações teóricas, práticas, institucionais e culturais. Examinemos cuidadosamente esses dois dualismos a serem neutralizados:

 

a) Igreja e mundo não são "dois mundos"

 

Por assim dizer, "as duas cidades" não são "duas cidades": são uma dupla hermenêutica da cidade comum. Não existem "histórias paralelas". É por isso que o dualismo deve ser superado: para sair de uma divisão interna da experiência.

 

“A autoridade desta palavra sobre a compreensão do homem e da mulher, que é chamada a governar o mundo na espera quotidiana dos dons de Deus, é hoje demasiado mortificada por uma ciência presunçosa e por uma teologia de jargão. A missão primeira do intelectual, crente e não crente, é a de restituir autoridade de testemunho do humano à via comum dos povos. A própria fé aprende o humano a partir do humano” (SF 17).

 

Essa inter-relação entre o mundo que é igreja e a igreja que é mundo, e que está enraizada na humanidade divina e na divindade humana do Senhor, introduz uma pedagogia que não se consegue delimitar ser definida com campos alternativos:

 

“Nesta permuta emocionante, o pensamento da e o pensamento humano crescem juntos. Na nossa tradição eclesial moderna, o governo exclusivo dos clérigos, o modelo único dos religiosos, o enciclopedismo catequístico das doutrinas, produziram um efeito de saturação da forma fidei que a afastou desta imediatez da vida comum: e agora vê-se obrigada a ceder, sob o seu próprio peso” (SF 17).

 

Essa é uma visão singularmente clara e que causa desconcerto. Fala de um “aprendizado recíproco” e de uma “evidência dos sinais dos tempos” que a consciência eclesial costuma ter dificuldade para elaborar. Muitas vezes, de fato, as coisas são reconstruídas de forma invertida:

 

“O isolamento do sistema eclesiástico é, maioritariamente, atribuído à debilitação da tradição sacral e ao cerco do progresso secular. Em realidade, é o efeito de uma Igreja que se concentra, cada vez mais, em si mesma: e, como acontece com tudo, se procura a própria vida em si mesma, segundo o evangelho, perdê-la-á” (SF 17-18).

 

O movimento decisivo deste apelo, e substância da reforma eclesial, é a “dilatação da rede da fraternidade batismal”. Isso comporta um profundo repensamento das lógicas do ministério e do testemunho, em sua relação correlativa. Em suma, a saída do primeiro dualismo acarreta consequências institucionais claramente delineadas:

 

“A saída do modelo clerical da forma cristã, que restitui ao ministério ordenado a sua autoridade específica e a sua configuração limitada, começará teologicamente por aqui. Sem esquecer que o novo paradigma da eclesialidade fraterna e testemunhal dos batizados, ao serviço do qual se devem reconfigurar ministérios e carismas, deve ser determinado cuidadosamente e autorizado no contexto sinodal da comunidade inteira, e não apenas encorajado ou recomendado” (SF 18).

 

A “inadequação dos aparelhos teológicos, canônicos e formativos” exige uma pronta reforma, para que as energias positivas desta mudança de paradigma possam ser liberadas. No entanto, nessa mudança será necessário atentar para não reinserir "dualismos" através do uso de categorias não suficientemente calibradas: um exemplo pode ser a correlação entre ministério ordenado e sacerdócio comum, que as categorias oficiais distinguem "essentia et non gradu tantum", mas de forma alguma dispensam o dever de pensar a distinção numa correlação maior, sem paralelismo ou concorrência. Caso contrário, o dualismo jogado para fora pela porta retornará pela janela.

 

b) Natureza e extra-natureza

 

O segundo dualismo de que se despedir é a mudança de registro que diz respeito à oposição entre natural e sobrenatural, entre criação e redenção. Aqui, também, o trabalho de conversão e de transcrição a que a teologia é chamada deve deixar cair as evidências fáceis demais de que em alguns casos é a natureza que garante a graça, enquanto em outros a graça tem lugar apenas "além", se não "contra" a natureza. O simplismo das soluções “padrão”, elaboradas em outros tempos e para outros mundos, quando as palavras natureza, cidade e cultura significavam coisas muito diferentes, e eram usadas com intenções às vezes invertidas, não são mais adequadas para as novas questões que temos que enfrentar. E essa segunda tarefa de desconstrução (e de reconstrução) termina com uma pequena profecia:

 

“A fé aprenderá a habitar as linguagens do mundo secular, sem prejuízo para o seu anúncio da proximidade de Deus. E a proximidade eclesial da fé será habitável também pela Cananeia, a Samaritana, Zaqueu e o Centurião. Sem prejuízo por sua distância” (SF 19).

 

A salvação da fraternidade passa assim por esta “ascese de desconstrução”, que implica um grande trabalho de conversão, de tradução e de atualização da linguagem e do pensamento, das formas institucionais e das formas de vida, pelo menos no âmbito da experiência eclesial.

 

Um comentário adicional e final será dedicado à última parte do documento, ou seja, à Carta Aberta aos Sábios.

 

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