Renda básica é a única saída para o Brasil. Entrevista especial com Paola Carvalho

Para ela, “o grande desafio para o franco debate acerca da renda básica e a justiça social é a concepção de Estado que é hoje majoritariamente difundida e aplicada pelo governo”

Foto: Valmir Neves Fernandes - MST

Por: João Vitor Santos | 23 Março 2021

 

Mesmo antes da pandemia, o debate sobre renda básica vinha se fazendo cada vez mais necessário. “O secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou, em setembro de 2018, que as mudanças no mundo do trabalho no século XXI exigem que os governos ao redor do mundo fortaleçam sua rede de proteção social, levando em conta a possibilidade de adotarem uma renda básica universal”, recorda a assistente e ativista social Paola Carvalho. Agora, com a vivência dos dramas a partir da pandemia, ela diz que não adianta, precisa ser direto: “não se trata de dizer que a Renda Básica é a melhor saída para o Brasil. Ela será, eventualmente, a única saída. Já era, para muitas pessoas, antes mesmo da pandemia. E o cenário só tende a se agudizar”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Paola detalha como “a crise sanitária que vivemos e as ferramentas estabelecidas para o enfrentamento das consequências econômicas demonstram que este é o caminho para o Brasil e que ele é possível”. Mas reconhece que o “grande desafio hoje, no Brasil, para o franco debate acerca da renda básica e a justiça social é a concepção de Estado que é hoje majoritariamente difundida e aplicada pelo governo”.

 

É por isso que acredita que esse debate deve vir associado à ideia de justiça social e redistribuição de renda. “Fizemos, no início da pandemia, um exercício a partir do levantamento das seis pessoas mais ricas do país, que concentram a renda de 100 milhões de brasileiros e juntas poderiam passar 36 anos em quarentena, gastando R$ 1 milhão por dia. Isso nos demonstra o abismo que vivemos e o enorme desafio de acertar a distribuição de renda no país”, analisa.

 

Paola também tem se colocado na linha de frente e ajuda pessoas que tiveram dificuldade em acessar o Auxílio Emergencial. “Não me esqueço da Dona Tânia, que foi avaliada como fora dos critérios por ter sido considerada morta pelo banco de dados do governo, ou mesmo relatos de mães engrossando água com farinha ou precisando se prostituir para ter um leite dentro de casa”, recorda. Nesse triste cenário em que o Brasil já mergulha na fome, a jovem defende, além do debate sobre a renda universal, ações urgentes e imediatas. “A degradação econômica agudizou. Muitas pessoas que podiam ajudar no ano passado, já não podem neste”, revela. “A solução é conhecida: recriar o Auxílio Emergencial nos parâmetros originais – R$ 600 – e até o fim da pandemia. É a forma para atravessarmos este momento”, sintetiza.

 

Paola Carvalho (Foto: Arquivo pessoal)

Paola Loureiro Carvalho é diretora de relações internacionais e institucionais da Rede Brasileira de Renda Básica. Graduada em Serviço Social pela Universidade Luterana do Brasil - Ulbra, possui especialização em Gestão de Políticas Públicas na perspectiva de gênero e promoção da igualdade racial. É mestra pela Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com a pesquisa sobre a ação da burocracia na rua como forma de manter as condições de subordinação dos mais vulneráveis, analisando a implementação do Cadastro Único para Programas Sociais. No Governo do Estado do Rio Grande do Sul, coordenou o RS Mais Igual, programa de transferência de renda, que atendeu 100.000 famílias de 2011 a 2014.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Quais os desafios para demonstrar que a renda básica é a maneira mais fácil para se alcançar justiça social no Brasil hoje?

Paola Carvalho – Para falar em Justiça Social precisamos falar da desigualdade histórica registrada no Brasil. O país ocupa atualmente o sétimo lugar de país mais desigual do mundo (segundo o último relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - Pnud), ficando atrás apenas de nações do continente africano, como África do Sul, Namíbia, Zâmbia, República Centro-Africana, Lesoto e Moçambique. O levantamento tem como base o coeficiente Gini, que mede desigualdade e distribuição de renda.

A parcela dos 10% mais ricos do Brasil concentra 41,9% da renda total do país, e a parcela do 1% mais rico concentra 28,3% da renda. Fizemos, no início da pandemia, um exercício a partir do levantamento das seis pessoas mais ricas do país, que concentram a renda de 100 milhões de brasileiros e juntas poderiam passar 36 anos em quarentena, gastando R$ 1 milhão por dia. Isso nos demonstra o abismo que vivemos e o enorme desafio de acertar a distribuição de renda no país.

O debate da Renda Básica de Cidadania existe há muitos anos, mas por muito tempo foi tratado como uma pauta impossível de um grupo de pessoas idealistas. Mas a pandemia do coronavírus escancarou os indicadores de desigualdades e situações até então tratadas sem destaque, como a fome e a extrema pobreza. E isso nos levou a um outro patamar de debate sobre a necessidade de uma renda básica, como mecanismo de reparar essas distorções históricas e produzir (um pouco) de justiça social.

 

  

Sem repensar o Estado, sem avanço

Entretanto, ao mesmo tempo, enquanto em outros lugares do mundo avançam propostas de estabelecer impostos sobre grandes fortunas e patrimônios, no Brasil a agenda política vai em direção contrária. Passamos por Reformas Trabalhista e da Previdência, que ampliaram significativamente a condição de precariedade do trabalho, de garantias e proteção social. E até mesmo a aprovação da nova etapa do novo Auxílio Emergencial foi condicionada à aprovação de um regramento ainda mais rígido sobre o gasto público. Então, o grande desafio hoje, no Brasil, para o franco debate acerca da Renda Básica e a justiça social é a concepção de Estado que é hoje majoritariamente difundida e aplicada pelo governo.

 

IHU On-Line – No caso do Brasil, a melhor saída é a renda básica ou esse seria o momento de discutir uma renda básica universal?

Paola Carvalho – O Brasil foi o primeiro país do mundo a aprovar uma lei para instituir uma Renda Básica de Cidadania - RBC, através da Lei Federal n° 10.835, sancionada em 8 de janeiro de 2004, de autoria do então senador Eduardo Suplicy. A Lei de Renda Básica de Cidadania instituída a partir de 2005 se constitui como um direito de todos os brasileiros ou estrangeiros residentes no Brasil, há cinco anos ou mais, independentemente de sua condição socioeconômica.

 

 

A proposta de lei visa garantir o direito, aos cidadãos que moram em território brasileiro, de receber anualmente um benefício monetário. O parágrafo primeiro da referida lei salienta que a RBC “será alcançada em etapas, a critério do Poder Executivo, priorizando as camadas mais necessitadas da população”.

Desde então, vivemos a primeira etapa de implementação da Renda Básica de Cidadania, por meio de um outro programa que ganhou reconhecimento internacional no combate à extrema pobreza e à fome, o Programa Bolsa Família. Criado em 2003 ainda pelo governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa Bolsa Família evoluiu de um contingente de 3,5 milhões de famílias beneficiadas, em dezembro de 2003, para 14,2 milhões de famílias em julho de 2014. Em 2020, em vista da pandemia e pressão de organizações sociais e ação do Congresso Nacional, o governo de Jair Bolsonaro criou o Auxílio Emergencial.

 

Única saída

A pandemia do novo coronavírus retirou o debate sobre Renda Básica de sua condição utópica, fazendo com que essa proposta se transformasse em um programa possível, para combater a crise e o pós-crise. Dentro desse contexto, pesquisadores, pessoas da sociedade civil e políticos passam a debater as problemáticas centrais da sociedade brasileira, como as condições de trabalho, a concentração de renda e a questão da pobreza.

E disso é importante levantar alguns dados:

 

1) em 2018, apenas 43,4% da população brasileira tinha um rendimento proveniente de trabalho (IBGE, Rendimento de todas as fontes, 2018, p.3);

2) em janeiro de 2020, antes de registrados os efeitos da pandemia, a taxa de desocupação da população brasileira já era de 11,2%;

3) estima-se que 54,45% dos empregos formais existentes no Brasil estão sob risco elevado ou muito elevado de automação até 2046; e

4) soma-se a isso a estimativa de que 17 milhões de postos de trabalho sejam destruídos por mês de isolamento no Brasil, e que, caso o isolamento seja mantido por três meses, haja uma redução de 21,6% no emprego total e uma elevação na taxa de desemprego a mais de 30,42%.

 

 

Então, não se trata de dizer que a Renda Básica é a melhor saída para o Brasil. Ela será, eventualmente, a única saída. Já era, para muitas pessoas, antes mesmo da pandemia. E o cenário só tende a se agudizar. Por isso o secretário-geral da ONU, António Guterres, afirmou, em Assembleia das Nações, em setembro de 2018, que as mudanças no mundo do trabalho no século XXI exigem que os governos ao redor do mundo fortaleçam sua rede de proteção social, levando em conta a possibilidade de adotarem uma renda básica universal.

A crise sanitária que vivemos e as ferramentas estabelecidas para o enfrentamento das consequências econômicas demonstram que este é o caminho para o Brasil e que ele é possível.

 

 

IHU On-Line – Em que a concepção de renda básica se associa e em que se dissocia de experiências como o Programa Bolsa Família e o próprio Auxílio Emergencial? Quais os limites do Bolsa Família e do Auxílio Emergencial?

Paola Carvalho – Os temas mais nítidos, e que unem estas concepções, são: a disposição de recursos para a complementação de renda aos mais vulneráveis e que ampliam a seguridade social, com diminuição da fome e da desigualdade social.

As diferenças são com relação ao acesso e, por óbvio, a temporalidade. A concepção da renda básica tem por princípio a incondicionalidade. Ou seja, fora o recorte elementar de renda, qualquer um é elegível ao recebimento da renda básica, sem condições. O Bolsa Família se distingue um pouco disso, ao exigir algumas condições para o recebimento do benefício. É necessária a comprovação da frequência escolar por parte das crianças dependentes de beneficiários do Bolsa Família, além do cartão de vacinação.

O Auxílio Emergencial, apesar de ter surgido como um programa incondicional, pode se tornar um programa que exija do seu beneficiário a realização de cursos de capacitação, delimitando portanto uma condição para o recebimento do recurso.

E estes temas se distanciam principalmente sobre a temporalidade das políticas. A renda básica não tem o intuito de se estabelecer como uma política temporária, ou emergencial, ela é uma política permanente de combate às desigualdades e garantia de condições mínimas e dignas para seus beneficiários viverem.

 

 

Mais do que política de governo

E apesar de o Bolsa Família já possuir anos de aplicação, com uma base institucional e tecnológica constituída, ele ainda está marcado como uma política de governo. E os movimentos do atual governo em transformar o programa, alterando orientações, reduzindo beneficiários, demarcam a fragilidade da ação. Neste caso, o Auxílio Emergencial é ainda mais nítido enquanto política temporária. Ele surge de uma necessidade objetiva e com prazo fixo, segundo seus criadores.

Estas características temporárias impedem um maior aprofundamento no combate às desigualdades. Tivemos um breve vislumbre do que uma política perene de renda pode trazer ao país, quando saímos do mapa da fome em 2014, 11 anos após a criação do Bolsa Família. E por este processo demorado, de transformação da base social, é que defendemos um programa de renda permanente.

 

IHU On-Line – A partir de sua experiência em Porto Alegre, tem destacado que a pandemia escancarou a emergência de uma agenda de políticas sociais. Mas, além da pandemia e do agravamento que ela traz, como compreender o contexto que leva à imensa degradação social que vemos hoje?

Paola Carvalho – A capital gaúcha já vinha dando sinais de aprofundamento da exclusão, da pobreza extrema e da fome antes mesmo da pandemia. Nessa perda de expressão econômica, nossa cidade reduziu 31 mil postos de trabalho formais entre 2016 e 2018, sendo que 18% dos desempregados buscam trabalho continuamente há mais de dois anos, e os investimentos públicos são cada vez menores. Prova disso é o Programa Bolsa Família, que atendia 57.309 famílias em 2016, e foi reduzido para 41.557 no início da pandemia, em março de 2020. Ou seja, são quase 16 mil famílias, cerca de 35 mil pessoas pobres e extremamente pobres, que deixaram de ter o suporte do Estado através da Assistência Social e da política de transferência de renda.

No cenário da pandemia, no primeiro semestre de 2020, os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - Caged indicam que Porto Alegre foi a quinta capital com maior fechamento de postos de trabalho: perderam-se 23 mil postos, atingindo os jovens (20,8%), as mulheres (10,4%) e os negros (12,3%). Além do mais, os dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - Dieese mostram que a nossa capital foi a terceira com a cesta básica mais cara, de R$ 615,66, perdendo somente para São Paulo e Rio de Janeiro.

Tal situação escancara os alertas que sempre apontamos: Porto Alegre, que já vinha aprofundando a desigualdade e a miséria, foi ainda mais abalada com a pandemia, de tal sorte que ¼ da população da capital sobreviveu neste período em função do Auxílio Emergencial, considerando que 321.797 pessoas receberam ao menos uma das parcelas.

 

 

Dados que se materializam nas ruas

Os dados são alarmantes, e basta olhar para a cidade para vê-los se materializar: são crianças nas sinaleiras; são mais pessoas em situação de rua e mais vítimas da fome e da miséria. Por isso chamamos atenção do prefeito [Sebastião] Melo. É urgente pensar e agir pelo povo mais pobre, priorizando o enfrentamento da fome e da miséria dos porto-alegrenses.

Porto Alegre tem história de solidariedade e o atual momento da cidade mostra que esses princípios estão vivos na população. A situação só não é mais grave, graças ao apoio de muitas mãos solidárias que distribuíram comida e se organizam através dos Movimentos do Pequenos Agricultores, Cozinheiros do Bem, Banho Solidário, Mesa Brasil do Sesc, e muitas instituições religiosas. No entanto, está na hora de institucionalizarmos a política para ampliarmos, cada vez mais, a capacidade de reação da cidade à fome e à miséria.

Por isso nos desafiamos a propor um Projeto de Lei para uma série de políticas de transferência de renda emergencial na nossa cidade. Queremos caminhar para a instituição de uma renda permanente, consolidada e garantidora de dignidade e de liberdade. Não podemos ter um Legislativo municipal alheio aos mais pobres e um Executivo que prioriza asfalto ao invés de um prato de comida. É hora de assumir a nossa responsabilidade referendada pelo voto popular.

 

 

IHU On-Line – Ainda antes da pandemia, o Brasil já estava fadado a voltar ao Mapa da Fome. Como chegamos a esse ponto? E agora, com os desafios trazidos pela pandemia, como conceber saídas?

Paola Carvalho – Houve um acelerado processo de dissolução da base de beneficiários do Bolsa Família a partir de 2016. Apesar da piora de basicamente todos os indicadores econômicos e sociais, foram removidas famílias inteiras do programa, por meio de alteração do regramento e burocratização do acesso. A verdade é que ambos os governos que sucederam o governo da presidenta Dilma [Rousseff] não tiveram ou têm compromisso com programas de transferência de renda e muito menos com o Bolsa Família, visto como um programa do PT.

Entretanto, nenhum deles teve coragem de encerrar o Bolsa Família, receosos dos impactos negativos da medida. O que fizeram então? Dificultaram o acesso, anunciaram revisões de benefícios, aumento de condicionalidades, entre outras, vendendo cada uma destas medidas como aprimoramento e otimização do programa.

Por causa disso, até o fim de 2019, a redução do Bolsa Família chegava a 4 milhões de famílias e a uma lista de espera de mais 5 milhões de pessoas aptas, mas ainda aguardando a inclusão. O impacto é este: estamos fadados a retornar ao Mapa da Fome, o que já teria acontecido se não fosse o Auxílio Emergencial.

Só que agora a situação é muito grave. A pobreza extrema explodiu nesse breve período de 2020 em que não foi distribuído o Auxílio Emergencial, e o “solapo” de auxílio que o Governo pretende pagar em 2021 não dará conta da demanda objetiva das pessoas que hoje estão passando fome.

 

IHU On-Line – Como a senhora avalia a ação de alguns estados e municípios na concepção de programas locais de distribuição de renda na pandemia? Qual a importância da concepção de planos locais de renda mínima e como os viabilizar para além do momento da pandemia?

Paola Carvalho – São ações limites e possíveis de entes federados que não possuem a capacidade econômica da União, para tentar aliviar a situação das pessoas ao mesmo tempo que estimula o distanciamento social. Agora mesmo, o governador do Pará, Helder Barbalho, anunciou um auxílio emergencial de R$ 500 para músicos, técnicos artísticos, manicures, cabeleireiros e professores de educação física autônomos durante o lockdown e mais um benefício para bares e restaurantes durante bloqueio total das atividades que será de R$ 2.000. E a isto se soma o auxílio de R$ 100, em cota única, criado dentro do Programa Renda Pará, que atendeu 909 mil famílias em dezembro de 2020.

Com isto, contabilizamos 15 estados que criaram algum tipo de política emergencial frente à pandemia. Aqui no Rio Grande do Sul, tramita o Projeto de Lei do deputado Valdeci Oliveira, o qual contribui diretamente na redação, que foi apresentado ao governador Eduardo Leite. O Projeto de Lei nº 74/2020 prevê que se possa instituir, de forma imediata, o Programa Emergencial de Renda Básica no âmbito do Rio Grande do Sul, ao criarmos os requisitos legais para constituição de uma política estadual, sugerindo duas importantes fontes de financiamento:

a) Destinação de ao menos 30% dos recursos previstos na Lei Estadual nº 15.149, de 16 de abril de 2018, que altera a Lei nº 14.742, de 24 de setembro de 2015, que cria o Fundo de Proteção e Amparo Social do Estado do Rio Grande do Sul - Ampara/RS. Por lei, o fundo deve ter seus recursos aplicados em ações de nutrição, habitação, educação, saúde, segurança, reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social voltados para melhoria da qualidade de vida;

b) Reativação do Fundo de Combate à Pobreza Extrema e Redução das Desigualdades Sociais, previsto na Lei N.º 13.862, de 28 de dezembro de 2011, que permite receber recursos oriundos das dotações do estado e contribuições e doações recebidas de pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado.

 

Aproveitamento de estruturas

Além do que, para garantir que a ação tenha implementação imediata, o que julgamos fundamental, foi sugerida a utilização da capacidade instalada pelo Cadastro Único, a estrutura de pagamentos do Bolsa Família (Caixa Econômica Federal) somadas à estrutura de pagamentos e cruzamentos de dados elaborada junto ao Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação do Estado do Rio Grande do Sul - Procergs, para o Programa Estadual de Erradicação da Pobreza, no governo Tarso Genro, do qual o RS Mais Igual era parte integrante.

A capacidade de implementação imediata se dá em função, justamente, de o Estado do Rio Grande do Sul já ter efetivamente aplicado essa modalidade de transferência de renda, mantendo o legado do conhecimento e dos sistemas informatizados, sob a propriedade do estado, dependendo somente da sua reativação. No entanto, mesmo com a faca e o queijo na mão, o governador Eduardo Leite não permitiu comida e sobrevivência ao povo gaúcho.

O difícil é que estas ações deveriam ser complementares à ação federal, ao Auxílio Emergencial. Entretanto, a realidade nos mostra que parte destes projetos surgiram da demora do Governo Federal em restabelecer o Auxílio Emergencial, ao final de 2020 e começo de 2021.

 

 

IHU On-Line – O Brasil da pandemia precisa urgentemente rever suas políticas públicas de assistência social, mas, enquanto isso não ocorre, como agir para livrar a população da fome e do desalento?

Paola Carvalho – A solução é conhecida: recriar o Auxílio Emergencial nos parâmetros originais – R$ 600 – e até o fim da pandemia. É a forma para atravessarmos este momento, que não produzirá no curto espaço de tempo uma retomada econômica e de criação de empregos e que necessita, sobretudo, da redução de circulação das pessoas.

Em pesquisa apresentada pelo Datafolha, em agosto de 2020, vimos que o principal destino do benefício, representando 53%, foi a compra de alimentos; outros 25% foram utilizados para pagar contas, 16% para pagar despesas da casa e 1% para comprar remédios. Quando se trata das pessoas com renda familiar de até dois salários mínimos, sobe para 61% o percentual gasto com alimentação.

Ademais, para avaliar os impactos do auxílio é imprescindível fazer também o recorte racial. Entre os que se autodeclararam negros (pretos e pardos), 49% tinham o Auxílio Emergencial como única fonte de renda, contra 38% entre os brancos. A população negra é a primeira que fica desempregada e é a que mais está na informalidade.

 

Empurrando para a fome

A proposta pautada no limite de R$ 44 bilhões, teto do Auxílio Emergencial, além de estabelecer um limite ainda mais restrito ao número de beneficiários, ainda vai estabelecer valores absurdos para que uma família sobreviva frente à crise econômica e sanitária. Segundo dados do governo, serão cerca de 20 milhões de famílias – 43% do total de contemplados estimados na nova rodada – na categoria “unipessoal”, isto é, composta por apenas uma única pessoa. Outros 16,7 milhões de famílias têm mais de um integrante e vão receber R$ 250. Já a maior cota, de R$ 375, deve ser paga a cerca de 9,3 milhões de mulheres que são as únicas provedoras de suas famílias. E o pagamento das novas parcelas do auxílio está previsto somente para começar em abril.

 

 

Reduzir o valor do benefício e o número de beneficiários a esse nível, é empurrar a população brasileira a morrer de fome ou a circular o vírus e não ter como atendê-la.

 

IHU On-Line – A senhora tem acompanhado de perto ações de assistência à família em situação de risco. O que mais tem ouvido dessas pessoas? Aliás, quem são essas pessoas e o que suas histórias de vida revelam?

Paola Carvalho – Antes mesmo de iniciar a pandemia, já tinha um canal estabelecido no Facebook (@eusoupaola) onde tratava de temas como a renda básica, acesso ao Bolsa Família e atividades da Rede Brasileira de Renda Básica - RBRB, da qual sou diretora. Quando iniciou a crise do novo coronavírus, me envolvi muito pessoalmente nas articulações nacionais que culminaram na organização da campanha Renda Básica que Queremos. Esta campanha conseguiu, a partir de ampla mobilização e articulação com o Congresso Nacional, a aprovação da lei do Auxílio Emergencial.

E quando o Governo começou a implementar a primeira etapa do Auxílio Emergencial, sem uma estrutura e suporte para a população, com informações desencontradas e confusão generalizada, peguei todo meu conhecimento da estrutura do estado brasileiro, minha formação como Assistente Social e fui tentar traduzir para as pessoas o que fazer. Em um mês estava fazendo lives para mais de mil pessoas no Facebook, em contato direto com beneficiários do auxílio.

 


Já não consigo calcular com quantas pessoas tratei, sei que tratei basicamente porque a implementação do Auxílio Emergencial teve muitos e graves problemas. Contestações intermináveis, falta de canais telefônicos e físicos, implementação via um aplicativo – quando parte da população é analfabeta, não tem internet, nem celular –, golpes, aglomeração bancária, e tantos outros. Elencamos só nessa fase inicial 15 gargalos que transformaram a vida de milhões num martírio para o recebimento do benefício. E isto só na primeira etapa.

 

 

E pessoas que precisavam do benefício. Não me esqueço da Dona Tânia, que foi avaliada como fora dos critérios por ter sido considerada morta pelo banco de dados do governo, ou mesmo relatos de mães engrossando água com farinha ou precisando se prostituir para ter um leite dentro de casa.

 

 

IHU On-Line – No começo da pandemia, ações de solidariedade eram vistas em vários lugares. Um ano depois, essas ações ainda persistem?

Paola Carvalho – Não, a degradação econômica agudizou. Muitas pessoas que podiam ajudar no ano passado, já não podem neste. Estamos em uma situação que só piorou e as reservas foram secando. A pandemia também está em tal estágio que determinadas mobilizações se tornaram um risco, mesmo assim vemos o esforço de diversas entidades em manter o mínimo.

As ações solidárias são muitas, os próprios movimentos do campo, como Movimento dos Trabalhadores Sem Terra - MST, fazem campanhas de distribuição de cestas básicas e alimentos. Mas nem a ajuda humanitária, que deveria ter uma organização e priorização do governo, é fomentada e organizada, o que despotencializa e desmobiliza ainda mais as ações de solidariedade.

 

 

IHU On-Line – Quais os desafios para catalisar ações assistenciais, fundamentais num momento de crise e emergência, para um debate acerca de justiça social e redistribuição de renda?

Paola Carvalho – É sobre o sentido de Estado. Aqui no Brasil, o Estado tem sido visto como vilão, oneroso e disfuncional. Quem diz isso defende a contenção de gastos, a terceirização de atividades para a iniciativa privada e a diminuição do investimento em áreas fundamentais, como saúde e educação.

Veja bem, tivemos que encarar, na semana passada mesmo, este debate covarde: para termos o Auxílio, teríamos que aceitar uma alteração constitucional que limita o investimento estatal. Este é o nível de desafio que enfrentamos: o da chantagem.

É elementar que o Estado Brasileiro pode e deve ser otimizado, mas alguém viu as maiores disfuncionalidades serem combatidas? Alguma mudança foi produzida sobre o poder judiciário e militar?

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Paola Carvalho – Apesar de já estar divulgado que o Governo Federal irá realmente reduzir o valor do Auxílio Emergencial para menos da metade do valor do ano passado, nós ainda estamos mobilizados. Em 2020 mais de 160 entidades brasileiras organizaram a campanha “Renda Básica que Queremos”, que recebeu apoio de mais de 500 mil pessoas e transformou a proposta de R$ 200 do Governo em R$ 600, que durou por 5 meses.

A Campanha em 2021 soma mais de 300 associações mobilizadas para retomar o Auxílio Emergencial de R$ 600 até o fim da pandemia. Você pode se somar a essa campanha, assinando no nosso site e contatando seu parlamentar para pressionar. Em 2020 o Congresso Nacional foi um parceiro fundamental na vitória da sociedade, e em 2021, somente um ano antes das eleições, a Câmara e o Senado não poderão se eximir.

 

Site da campanha que realiza mobilizações para o Auxílio Emergencial até o fim da pandemia  

 

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