A figura tenebrosa de Jair Bolsonaro ameaça a democracia. Artigo de Leonardo Boff

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil – Agência Senado

06 Outubro 2022

 

"Com o atual presidente e com o séquito de seus seguidores, o que era oculto e recalcado saiu do armário. Sempre estava lá, recolhido mas atuante, impedindo que nossa sociedade, dominada pela elite do atraso, fizesse as transformações necessárias e continuasse com uma característica conservadora e, em alguns campos, como nos costumes, até reacionária e por isso de fácil manipulação política. Dentro da alma de uma porção de brasileiros há um pequeno 'bolsonaro' reacionário e odiento. O Bolsonaro histórico deu corpo a esse 'bolsonaro' escondido. O mesmo aconteceu com o 'hitler' escondido dentro de uma porção do povo alemão", escreve Leonardo Boff, teólogo e filósofo e autor de Brasil: concluir a refundação ou prolongar a dependência (Vozes, 2018).

 

Eis o artigo.

 

O atual presidente apresenta traços desvairados e tem feito constantes ameaças à normalidade democrática, caso venha perder as eleições. No primeiro turno em 2 de outubro, ele recebeu 43,44% dos votos enquanto o ex-presidente Lula levou 48,5% dos votos. Há grande expectativa que este venha a ganhar a eleição, pois a superioridade sobre Bolsonaro é notável.

 

Lula tem recebido o apoio de quase todos os partidos até dos mais distantes. Pois percebeu-se que a democracia está em jogo e também o destino histórico de nosso país. A vitória de Bolsonaro levaria avante seu projeto de desmonte das instituições de forma abertamente autoritária e ameaçadora de um golpe de estado.

 

Precisamos tentar entender por que irrompeu esta onda de ódio, de mentiras como método de governo, fake news, calúnias e corrupção governamental, impedida de ser investigada. Veio-me à mente um artigo que publiquei tempos atrás e que aqui reformulo.

 

Duas categorias parecem esclarecedoras: uma da psicanálise junguiana, a da sombra, e outra da grande tradição oriental do budismo e afins e entre nós, do espiritismo, o karma.

 

A categoria de sombra, presente em cada pessoa ou coletividade, é constituída por aqueles elementos negativos que nos custa aceitar, que procuramos esquecer ou mesmo recalcar, enviando-os ao inconsciente, seja pessoal, seja coletivo.

 

Efetivamente, cinco grandes sombras marcam a história político-social de nosso país:

 

A primeira é o genocídio indígena, persistente até hoje, pois suas reservas estão sendo invadidas e, durante a pandemia, foram praticamente abandonadas pelas autoridades atuais.

 

A segunda é a colonização que nos impediu de ter um projeto próprio, de um povo livre, mas, ao contrário, sempre dependente de poderes estrangeiros de outrora e de hoje. Criou a síndrome do “vira-lata”.

 

A terceira é o escravagismo, uma de nossas vergonhas nacionais, pois implicava tratar a pessoa escravizada como coisa, ”peça”, posta no mercado para ser comprada e vendida e submetida constantemente à chibata, ao desprezo e ao ódio.

 

A quarta é a permanência da conciliação entre si dos representantes das classes dominantes, sejam herdeiras da Casa Grande, sejam  membros do industrialismo especialmente a partir de São Paulo, denominadas por Jessé Souza de “elites do atraso”. São profundamente egoístas a ponto de Noam Chomsky ter afirmado: “O Brasil é uma espécie de caso especial, pois raramente vi um país onde elementos da elite tenham tanto desprezo e ódio pelos pobres e pelo povo trabalhador”. Estes nunca pensaram num projeto nacional que incluísse o povo, projeto somente deles e para eles, capazes de controlar o Estado, ocupar seus aparelhos e ganhar propinas e fortunas nos projetos estatais.

 

A quinta sombra representa a democracia de baixa intensidade acordada por golpes de Estado mas que sempre se refaz sem, entretanto, mudar de natureza. Perdura até hoje e atualmente mostra grande debilidade pelo grau dos representantes de direita ou extrema-direita, com suas maracutaias como o orçamento secreto. Medida pelo respeito à constituição, pelos direitos humanos pessoais e sociais, pela justiça social e pelo nível de participação popular, comparece antes como uma contradição de si mesmo do que, realmente, uma democracia consolidada.

 

Sempre que algum líder político com ideias reformistas, vindo do andar de baixo, da senzala social, apresenta um projeto mais amplo que abrange o povo com políticas sociais inclusivas, estas forças de conciliação, com seu braço ideológico, os grandes meios de comunicação, como jornais, rádios e canais de televisão, associados a parlamentares e setores importantes do judiciário, usaram o recurso do golpe, militar (1964) ou jurídico-político-mediático (2016) para garantir seus privilégios.

 

O desprezo e o ódio, outrora dirigidos aos escravizados, foram transferidos covardemente aos pobres e miseráveis, condenados a viver sempre na exclusão. Estas sombras pairam sobre a atmosfera social de nosso país. São sempre ideologicamente escondidas, negadas e recalcadas.

 

Com o atual presidente e com seus seguidores, o que era oculto e recalcado saiu do armário. Sempre estava lá, recolhido mas atuante, impedindo que nossa sociedade, dominada pela elite do atraso, fizesse as transformações necessárias e continuasse com uma característica conservadora e, em alguns campos, como nos costumes, até reacionária e por isso de fácil manipulação política. Dentro da alma de uma porção de brasileiros, há um pequeno “bolsonaro” reacionário e odiento. O Bolsonaro histórico deu corpo a esse “bolsonaro” escondido. O mesmo aconteceu com o “hitler” escondido dentro de uma porção do povo alemão.

 

As cinco sombras referidas foram agravadas atualmente pela aquisição incentivada de armas na população, pela magnificação da violência até da tortura, pelo racismo cultural, pela misoginia, pelo ódio aos de outra opção sexual, pelo desprezo aos afrodescendentes, aos indígenas, aos quilombolas e aos pobres em geral. É de estranhar que muitos, até pessoas sensatas, inclusive acadêmicos e gente da classe média, possam seguir uma figura tão destemperada, deseducada e sem qualquer empatia pelos sofredores que perderam entes queridos pela Covid-19.

 

Essa é uma explicação, certamente não exaustiva, através da categoria da sombra que subjaz às várias crises político-sociais.

 

A outra categoria é a do karma. Para conferir-lhe algum grau analítico e não apenas hermenêutico (esclarecedor da vida), valho-me de um longo diálogo entre o grande historiador inglês Arnold Toynbee e Daisaku Ikeda, eminente filósofo japonês, recolhido no livro Elige la vida (Buenos Aires: Emecé, 2005).

 

Karma é um termo sânscrito que, originalmente, significa força e movimento, concentrado na palavra “ação” que provocava sua correspondente “re-ação”. Aplica-se aos indivíduos e às coletividades.

 

Cada pessoa é marcada pelas ações que praticou em vida. Essa ação não se restringe à pessoa, mas conota todo o ambiente. Trata-se de uma espécie de conta corrente ética cujo saldo está em constante mutação consoante as ações boas ou más que são feitas, vale dizer, os “débitos e os créditos”. Mesmo depois da morte, a pessoa, na crença budista e espírita carrega esta conta; por isso se reencarna para que, por vários renascimentos, possa zerar a conta negativa e entrar no nirvana ou no céu.

 

Para Toybee, não é preciso recorrer à hipótese dos muitos renascimentos porque a rede de vínculos garante a continuidade do destino de um povo (p. 384). As realidades kármicas impregnam as instituições, as paisagens, configuram as pessoas e marcam o estilo singular de um povo. Esta força kármica atua na história, marcando os fatos benéficos ou maléficos, coisa já vista por C. G. Jung em suas análises psico-sócio-históricas.

 

Em sua grande obra em dez volumes "Um estudo da história(A Study of History), Toynbee  trabalha a chave Desafio-Resposta (Challange - Response) e vê sentido na categoria do karma. Mas dá-lhe outra versão que me parece esclarecedora e nos ajuda entender um pouco as sombras nacionais, especialmente da extrema-direita brasileira e até internacional, sempre ligando-se à religião de versão moralista e fundamentalista que facilmente chegam ao coração do povo, normalmente religioso.

 

A história é feita de redes relacionais dentro das quais está inserida cada pessoa, ligada com as que a precederam e com as presentes. Há um funcionamento kármico na história de um povo e de suas instituições consoante os níveis de bondade e justiça ou de maldade e injustiça que produziram ao largo do tempo. Este seria uma espécie de campo mórfico que permaneceria impregnando tudo.

 

Tanto Toynbee quanto Ikeda concordam nisto: “a sociedade moderna (nós incluídos) só pode ser curada de sua carga kármica, acrescentaríamos, de sua sombra, através de uma revolução espiritual e social começando no coração e na mente” (p. 159), na linha da justiça compensatória, de políticas sanadoras e instituições justas.

 

Entretanto, elas sozinhas não são suficientes e não desfarão as sombras e o karma negativo. Faz-se mister o amor, a solidariedade a compaixão e uma profunda humanidade para com as vítimas. O amor será o motor mais eficaz porque ele, no fundo, afirmam Toynbee e Ikeda, “é a Última Realidade” (p. 387). Algo semelhante diz James Watson, um dos descodificadores do código genético: o amor está em nosso DNA.

 

Uma sociedade, perpassada pelo ódio e pela mentira como em Bolsonaro e em seus seguidores, alguns fanatizados, é incapaz de desconstruir uma história tão marcada pelas sombras e pelo karma negativo como a nossa. Não se trata um veneno com mais veneno ainda. Isso vale especificamente pelos modos rudes, ofensivos e mentirosos do atual presidente e seus ministros.

 

Só a dimensão de luz e o karma do bem livram e redimem a sociedade da força das sombras tenebrosas e dos efeitos kármicos do mal, como os grandes sábios da humanidade, como o Dalai Lama e os dois Franciscos, o de Assis e o de Roma, o testemunham.

 

Se não derrotarmos eleitoralmente o atual presidente neste segundo turno a realizar-se no dia 30 de outubro, o país se moverá de crise em crise, criando uma corrente de sombras e karmas destrutivos, comprometendo o futuro de todos. Mas a luz e a energia do positivo sempre se mostraram historicamente mais poderosas que as sombras e o karma negativo.

 

Estamos seguros de que serão elas que garantirão, assim esperamos, a vitória de Lula, que não guarda rancor nem ódio no coração, mas se move pela amorosidade e pela política do cuidado do povo, especialmente dos empobrecidos e de suas necessidades

 

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