Eleições 2022: Uma maioria democrática e uma direita forte e resiliente. Algumas análises

A seguir, pesquisadores analisam o resultado do primeiro turno das eleições

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

Por: João Vitor Santos e Patrícia Fachin | 03 Outubro 2022

O primeiro turno das eleições presidenciais, em que o ex-presidente Lula obteve 48,41% dos votos válidos ante 43,22% do atual presidente, Jair Bolsonaro, revela a "a existência de uma maioria democrática", mas, igualmente, a existência de "uma direita forte e resiliente", disse o sociólogo Benedito Tadeu César. Segundo ele, "as pesquisas acertaram os índices do Lula, que estavam dentro da margem de erro. Mas, potencialmente, se imaginava que haveria um voto maior no Lula por causa de um voto cauteloso que as pessoas não estavam revelando por medo dos atos fascistas da extrema-direita. Mas o que se viu foi o contrário: há um voto envergonhado muito consistente e significativo para o Bolsonaro. Isso não aconteceu somente no plano nacional. No Rio Grande do Sul, Onyx Lorenzoni aparecia em segundo lugar, mas quando a direita se uniu, elegeu Mourão com força. Há uma força de direita muito grande em muitos estados. Há, obviamente, uma força de esquerda, de centro-esquerda ou de insatisfação e recordação dos bons tempos no Nordeste e não só; há a possibilidade de o candidato do PT vencer na Bahia, o que parecia impossível. Então, tem conquistas", afirma. 

Na avaliação do economista Róber Iturriet Avila, o resultado do primeiro turno indica que "extrema-direita está enraizada e muito mais forte do que se supunha. Tem um tamanho que nunca teve na história brasileira, alavancada por empresários, produtores rurais e organizações internacionais". De outro lado, sublinha, "o PT e o Lula conseguiram resistir a esse crescimento e hoje representam o campo democrático no Brasil". 

Para o pesquisador Ricardo Evandro Santos Martins, a votação deste domingo sinaliza uma "mudança nos ventos da eleição para Presidência. Tudo parece indicar, em mera projeção ainda, a vitória de Lula sobre Bolsonaro neste segundo turno que ainda vem. Isto significa que a gestão, a governamentalidade, as políticas sobre vidas e mortes, do atual presidente, geraram mesmo grande rejeição". 

Segundo o cientista político Giuseppe Cocco, "o voto que outra vez chamaríamos de classe, hoje está compacto na procura de um outro mundo e dividido nas opções eleitorais. O desafio colossal é de revitalizar a democracia no terreno mesmo de uma política dos trabalhadores pobres e dos pobres trabalhadores". 

O historiador Valter Pomar destaca que o "resultado do primeiro turno mostrou que a maioria do eleitorado não aprova o 'cavernícola'. E que há mais de 56 milhões de brasileiras e de brasileiros que consideram que a saída para a crise nacional é pela esquerda". De acordo com ele, "há resultados positivos em vários estados, que poderiam ter sido maiores se a linha política predominante no PT tivesse sido outra. O caso do Rio Grande do Sul é exemplar: se não tivessem atrapalhado, o segundo turno seria de esquerda contra direita", afirma. 

Para o jurista e ex-reitor da Universidade de Brasília – UnB, José Geraldo de Sousa Júnior, o resultado das eleições aponta para o resgate das esperanças. "Abre enormes possibilidades para, como afirmou o presidente Lula, poucos dias antes da votação, em encontro com economistas, personalidades e empresários, criar um ambiente político para a 'reunião dos divergentes para vencer os antagônicos'". 

Entre os fenômenos desta eleição a serem analisados nos próximos dias, o cientista político Rudá Ricci destaca o número de bancadas conquistadas no Congresso pelo PT e o PL. "PT e PL fizeram as maiores bancadas federais. PL fez 99 deputados e PT saltou de 56 para 76. Como se percebe, Bolsonaro transferiu o voto do PSL para o PL. Este é o fenômeno a ser analisado". Ele destaca ainda que a votação expressiva de Bolsonaro e do bolsonarismo se deu no Brasil profundo do Centro-Sul, mas não ocorreu no Nordeste". 

A seguir, publicamos a primeira impressão dos entrevistados acerca do resultado das eleições, nas entrevistas abaixo concedidas ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

Confira as entrevistas.

 

Benedito Tadeu César, graduado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro, mestre em Antropologia Social e doutor em Ciências Sociais com ênfase em Estrutura Social Brasileira, ambos pela Universidade Estadual de Campinas  Unicamp. É professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul  UFRGS.  

Benedito Tadeu César (Foto: Leslie Chaves | IHU)

 

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

Benedito Tadeu César – As luzes são as seguintes: o crescimento da votação do Lula, comparando com Haddad no primeiro turno da eleição passada, e, no Rio Grande do Sul, o PT se recolocou no jogo político porque a esquerda estava completamente desarticulada no estado. Se ela tivesse ampliado as suas alianças, estaria no segundo turno, com grandes chances de vencer. Faltou essa capacidade de articulação e de superar os ressentimentos antigos. Quando se faz política com hegemonias, de um lado, e ressentimento, de outro, a coisa complica. 

Nesta eleição, também se revela, nacionalmente, a existência de uma maioria democrática. Isso é bom e é um alento porque se, compararmos a situação com quatro anos atrás ou de 2013 para cá, com tudo que ocorreu em termos de desconstrução do Estado, e o aparelho do Estado nas mãos do Bolsonaro, distribuindo benesses nas últimas semanas, dá para dizer que [o resultado] foi uma grande conquista. Achar que não foi uma grande conquista porque não se venceu no primeiro turno é ilusão, porque era muito difícil. 

IHU – E quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições? 

Benedito Tadeu César – A sombra é que se tem uma direita forte, resiliente. Mesmo com quase 700 mil mortes [da Covid-19], sendo que por volta de 400 mil são responsabilidade do governante, com todo o desmonte da ciência, da tecnologia, da educação no país, a direita está aí. Isso tem muito a ver com o controle da máquina [estatal], mas não só. Se analisarmos, por exemplo, em São Paulo, a vitória do astronauta que destruiu a ciência e tecnologia e foi para o Senado, e a votação do Haddad, nos perguntamos o que aconteceu. É que o voto envergonhado na direita, na extrema-direita e no Bolsonaro, se revelou. 

As pesquisas acertaram os índices do Lula, que estavam dentro da margem de erro. Mas, potencialmente, se imaginava que haveria um voto maior no Lula por causa de um voto cauteloso, que as pessoas não estavam revelando por medo dos atos fascistas da extrema-direita. Mas o que se viu foi o contrário: há um voto envergonhado muito consistente e significativo para o Bolsonaro. Isso não aconteceu somente no plano nacional. No Rio Grande do Sul, Onyx Lorenzoni aparecia em segundo lugar, mas quando a direita se uniu, elegeu Mourão com força. Há uma força de direita muito grande em muitos estados. Há, obviamente, uma força de esquerda, de centro-esquerda ou de insatisfação e recordação dos bons tempos no Nordeste e não só; há a possibilidade de o candidato do PT vencer na Bahia, o que parecia impossível. Então, tem conquistas. 

IHU – Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas? 

Benedito Tadeu César – As perspectivas são, de um lado, a consolidação de uma extrema-direita que parecia que antigamente era envergonhada e que hoje está aí e se mostra mais resiliente do que se imaginava, mas tem uma perspectiva promissora, alentadora. 

Vamos considerar o segundo turno: toda a literatura diz que é muito difícil um candidato ir para o segundo turno com 10% de diferença não vencer a eleição. Então, é muito difícil que Lula não vença as eleições. Óbvio que os bolsonaristas vão entrar com tudo e é uma nova eleição, mas me parece que Bolsonaro tem pouco espaço para crescimento. É óbvio que ele vai ter apoio do governador eleito em Minas Gerais, mas provavelmente o crescimento [do PT] na Bahia e em outros lugares compense. De fato, há uma polarização estabelecida entre uma direita antidemocrática e o alentador é que as forças democráticas vão ter que se unir, superar divergências e se articular; isso parece que está se esboçando. A Simone Tebet disse que tem lado e vai se definir. O Ciro pode não se definir, mas o PDT vai se definir. Então, vai haver um movimento parecido com as Diretas Já e isso vai ser muito importante porque o Congresso Nacional que foi eleito é arrasador e a situação econômica do país e o quadro político são muito ruim. Se o Lula for eleito, ele vai precisar de um grande arco para poder governar, mas isso é possível e alentador. 

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Róber Iturriet Avila é doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul  UFRGS e professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul  UFRGS. Foi professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos  Unisinos, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística  FEE e diretor sindical do Sindicato dos Empregados em Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas e de Fundações Estaduais do Rio Grande do Sul  Semapi.

 

Róber Iturriet Avila (Foto: Arquivo IHU)

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

Róber Iturriet Avila – Houve alguma renovação de lideranças nos níveis parlamentares, a bancada negra da Câmara de Vereadores de Porto Alegre teve um bom desempenho nas eleições gerais. São Paulo elegeu uma deputada transexual. A esquerda mais radical percebeu o momento em que vivemos e compôs para defender valores mais importantes. 

A votação de Lula foi expressiva, ainda que tenha frustrado a expectativa de vitória em primeiro turno. Está claro sua imensa força política frente ao crescimento da extrema-direita que engoliu a direita tradicional brasileira. Lula foi capaz de edificar uma frente ampla com grupos de centro-direita e de centro, os quais manifestaram apoio, em oposição à extrema-direita. 

Tais grupos tentaram cacifar a chamada terceira via, não foram bem-sucedidos e acabaram por declarar voto em Lula no final do primeiro turno. Essa União inexistiu em 2018 e nos oportunizou quatro anos de destruição em praticamente todas as áreas (ambiental, institucional, democrática, educacional, artística, vacinal, cultural, imagem externa, harmonia federativa, articulação de políticas anticorrupção etc.). 

Ainda assim, não é pouca expressiva essa frente ampla liderada pela esquerda com os mesmos atores das Diretas Já de 1983-1984 contra os mesmos atores do outro lado, o autoritarismo conservador. 

IHU – E quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições? 

Róber Iturriet Avila – A extrema-direita está enraizada e muito mais forte do que se supunha. Tem um tamanho que nunca teve na história brasileira, alavancada por empresários, produtores rurais e organizações internacionais. Muito embora esse aglutinado seja formado por antigos atores da direita brasileira: militares, setor rural, grupos religiosos, alguns liberais. 

São os mesmos que fizeram oposição a Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek na década de 1950 e ao João Goulart na década de 1960. Ainda que não tenha um partido forte atualmente, uma sigla pode vir a constituir-se. No parlamento, tais grupos ficam mais fortes e com capacidade de barrar reformas e de persistir a ameaçar as instituições democráticas mesmo que Lula vença o segundo turno. 

Para além do parlamento, nos últimos anos formaram-se grupos radicalizados, que visam desmontar a institucionalidade da democracia liberal e a constituição de 1988, a qual trouxe enormes ganhos em termos de direitos sociais e serviços públicos amplos. 

É curioso que esse grupo, que é heterogêneo, está aglutinado mais em valores ultraconservadores, o que é coerente com o antirracionalismo que muitos dos conservadores advogam. Quer dizer, ainda que o setor primário tenha de fato atingido ganhos com o governo Bolsonaro e tenha ocorrido elevação de políticas de transferência de renda, as classes médias urbanas tiveram perdas de poder aquisitivo, houve restrição de serviços públicos que tais segmentos também utilizam, como a educação. 

É evidente que o governo Bolsonaro não foi bem e tinha muito pouco ou quase nada a apresentar de resultado. O governo foi inepto e incapaz de efetuar mudanças profundas. De toda forma, mostrou uma força eleitoral muito maior do que todos imaginavam, baseada em valores conservadores como "Deus, pátria e família". Isto é, contra um suposto comunismo, uma suposta ideologia de gênero. De outro lado, a bandeira contra a corrupção demonstrou-se de fachada, já que seus eleitores fizeram vista grossa à corrupção do governo e da família Bolsonaro. 

Assim, é preocupante e muito assustador que esses grupos estejam tão consolidados, já que são violentos e disruptivos. Eles continuam querendo colocar tudo abaixo para impor sabe-se lá o que no lugar. 

IHU – Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas? 

Róber Iturriet Avila – Em 2018, a extrema-direita surpreendeu ocupando o espaço de uma direita tradicional brasileira. Em 2022, o fenômeno repetiu-se e consolidou-se. De outro lado, o PT e o Lula conseguiram resistir a esse crescimento e hoje representam o campo democrático no Brasil. 

Caso Lula seja eleito no segundo turno, terá dificuldades para governar. O parlamento deu uma guinada à extrema-direita e haverá muitos governadores deste campo. A destruição nesses últimos quatro anos foi grande e será necessário moderar as altas expectativas. Mesmo dentro do governo haverá forças que visam barrar avanços sociais e a atuação do Estado para reduzir desigualdades e gerar crescimento econômico.

A fracassada terceira via tentará colonizar o governo Lula, ainda mais em um momento em que o apoio desse grupo será crucial. Além disso, o primeiro ano de governo está sob a égide orçamentária deste ano vigente. O Plano Plurianual e o orçamento do novo governo passam a vigorar apenas em 2024. Então, o espaço fiscal é restrito para efetuar grandes alterações em 2023, a não ser que haja uma excepcionalização legal, como uma PEC de calamidade pública. No plano internacional, haveria um alívio com a saída de Bolsonaro, seja nos países vizinhos, na Europa, nos Estados Unidos ou na China. Lula teria condições de liderar uma pauta ambiental a partir da Amazônia, trazendo inclusive recursos internacionais para a sua preservação. 

Caso Bolsonaro seja reeleito, terá mais condições de avançar naquilo que não conseguiu nesses quatro anos: privatização da Petrobras, produção rural e mineração na Amazônia, imposição do conservadorismo na educação, redução do tamanho do SUS, mais armamentismo, perseguição a lideranças de esquerda e sindicalistas, redução de direitos trabalhistas, crescimento sobre os demais poderes constitucionais, notadamente o judiciário. 

Do ponto de vista da política econômica, o governo perdeu ingerência sobre o Banco Central, instituição que influencia o nível de emprego, de renda, de produção e de salários e há um emaranhado legal bastante restritivo sobre o orçamento, emperrando a política fiscal, a qual também influencia o nível de emprego, de renda e da produção.

Adicionalmente, a fraqueza política do governo Bolsonaro fez o parlamento ganhar cada vez mais terreno sobre as decisões orçamentárias, ou seja, sobre o que chamamos de "governo", algo que já vinha ocorrendo desde o final do governo Dilma. O Congresso está cada vez mais tomando espaço do executivo. 

IHU – Deseja acrescentar algo? 

Róber Iturriet Avila – Serão necessárias mudanças legais para a retomada do poder do Executivo sobre os rumos do país. Além do controle sobre o orçamento, precisamos de uma reforma política. Já houve uma reforma eleitoral, que gerará uma menor fragmentação partidária, caminhamos para a redução do número de partidos, o que é bom. 

As campanhas eleitorais são muito caras, o que torna a disputa eleitoral desigual, favorecendo grupos que possuem poder econômico e visibilidade, que representam grandes interesses. O fim da doação de pessoas jurídicas ajudou a diminuir esse problema, mas não solucionou. 

Precisamos ainda eliminar as reeleições infinitas, no sentido de renovar mais o parlamento e bolar algum mecanismo que impeça as chantagens parlamentares para aprovar leis, que são rotinas de ofício, mas que viraram formas de obter recursos e cargos para os parlamentares e seus afiliados. Dificilmente qualquer governo terá maioria no parlamento sem negociar, quer dizer, ceder poder e dinheiro, ou, de forma mais clara: corromper o executivo. 

É muito inusitado que a esquerda brasileira tenha se tornado defensora das instituições da República e da democracia, ao passo que a extrema-direita é a força antissistêmica, já que identifica nessas instituições barreiras a mudanças e fonte de corrupção. De fato, elas são isso mesmo e são muito problemáticas. 

Pois justamente essa disfuncionalidade ajudou a formar uma extrema-direita disruptiva que quer jogar o bebê fora junto com a água de banho. Ser favorável à democracia e à institucionalidade não pode ser confundido com fechar nossos olhos a escassa representatividade política, às falhas enormes do poder Judiciário, à politização do ministério público, ao baixo republicanismo do legislativo, ao executivo tomado por interesses espúrios, às forças armadas ilegalmente intervindo na política. 

Para prosperar, o país precisa de estabilidade política e a forma como está arranjada nossa institucionalidade fragiliza o Executivo frente ao Legislativo.

 

Economia

 

Adiciono ainda que do ponto de vista econômico, está claro que precisamos de uma política anticíclica para deixar a crise para trás de vez e a forma de efetuar isso é através de investimentos públicos. Uma ampla política habitacional certamente ajudaria não apenas a gerar emprego como também a reduzir o deficit habitacional. Para tanto, é necessário refazer e unificar nossas quatro grandes regras fiscais, como a lei do teto dos gastos. Todos sabem que precisamos de uma ampla reforma tributária, que não apenas simplifique e elimine a cumulatividade de impostos, mas também amplie a progressividade e incentive a competitividade. Há espaço para melhorar a eficiência na prestação de serviços públicos e uma reforma de Estado não pode ser um tabu para as forças progressistas, há distorções e excessos que precisam de correção.

A direita tradicional precisa fazer sua autocrítica e parte já está fazendo ao apoiar o Lula. O governo atual é uma catástrofe em diversos aspectos. São pessoas desqualificadas e ignorantes que envergonham o Brasil no mundo. Houve diversos ataques à democracia no Brasil desde o final da eleição de 2014 e houve baixa reação até recentemente. Passo a passo, a democracia vem sendo atacada. O judiciário e parte da mídia perceberam e reagiram quando a guilhotina passou a ameaçá-los, mas aplaudiram quando essa guilhotina foi contra a esquerda entre 2015 e 2019.
Independentemente do resultado final do segundo turno, é inegável o avanço da extrema-direita no Brasil e é preciso ainda mais reflexão sobre os motivos desse movimento, sobretudo após um governo tão inepto quanto o atual. 

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Ricardo Evandro Santos Martins é professor adjunto da Universidade Federal do Pará – UFPA e docente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Possui doutorado em Direito, também pela UFPA. É membro do GT de Filosofia Hermenêutica da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia – ANPOF. Sua pesquisa de mestrado se desenvolveu especialmente sobre as relações entre teoria pura do direito e neokantismo (Hans Kelsen e Heinrich Rickert). No doutorado, sua pesquisa versou sobre a epistemologia das ciências do direito e hermenêutica filosófica (Hans-Georg Gadamer). Atualmente coordena o Grupo de Pesquisa "Direitos humanos e teologia política: neoliberalismo, forma-de-vida e insurreição do uso" e integra o Grupo de Pesquisa Grupo de Estudos sobre as Normalizações violentas das vidas na Amazônia-CESIP-Margear

Ricardo Evandro Santos Martins (Foto: Arquivo pessoal)

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

Ricardo Evandro Santos Martins – As luzes se revelam pela mudança nos ventos da eleição para Presidência. Tudo parece indicar, em mera projeção ainda, a vitória de Lula sobre Bolsonaro neste segundo turno que ainda vem. Isto significa que a gestão, a governamentalidade, as políticas sobre vidas e mortes do atual presidente geraram mesmo grande rejeição. Seus discursos grosseiros na pandemia, seu desrespeito aos lutos daqueles e daquelas que foram vítimas da Covid-19 (686 mil mortos), além da miséria, da fome, do ataque às universidades públicas, da trágica situação na Amazônia, vitimando indígenas e seus territórios, parecem mesmo ter sido compreendidos como causas para o fim deste governo. Um governo que precisa se encerrar o quanto antes. 

Nem guerra na Ucrânia, nem crise no crescimento das economias mundiais, nem aumento de inflação em outros países são motivos suficientes para justificar a tragédia que tem sido o governo Bolsonaro. Uma tragédia que nos prejudicou internacionalmente, diminuindo nossa importância no mundo, no jogo político. 

Parece, então, que algo se ilumina: um desejo de mudança. Mudança para que se possa ter segurança alimentar, poder de compra, fim da violência na Amazônia, fim da violência eleitoral, respeito aos professores, professoras e cientistas no Brasil. Enfim, desejo "daqueles que têm fome e desejo de justiça", nas suas diversas dimensões. 

IHU – E quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições? 

Ricardo Evandro Santos Martins – Por mais que as eleições tenham sido aparentemente pacíficas, contrariando a violência eleitoral cometida, nesses últimos meses, pelos apoiadores de Bolsonaro contra os de Lula, ainda sim o clima de medo persiste, medo de se sofrer violência por ir votar com as cores de seu partido, por exemplo. Ainda que os dados de votos tenham mostrado que talvez o chamado "voto envergonhado", aquele por medo de repressão sobre a manifestação de seu voto, não tenha sido fato relevante, uma vez que o resultado das eleições não tenha revelado este voto silencioso, mesmo assim persiste entre os eleitores de Lula uma certa apreensão. 

Além disso, por mais que tenhamos visto rapidez e organização nessas eleições, e constatado um bom funcionamento do procedimento eleitoral, contudo a abstenção não recuou. Mais de 20% dos eleitores mostram seu desinteresse político na democracia burguesa em que vivemos, sob nossa atual Constituição Federal de 1988 (fato que me faz lembrar, cada vez mais, a cada eleição que experiencio, da obra de ficção de José Saramago, Ensaio sobre a lucidez). 

Outra sombra que aparece é um certo descompasso ideológico entre eleição para Presidência e membros do Legislativo. E os principais atores da Operação Lava-Jato, os envolvidos em escândalos históricos de ilegalidade judicial, foram eleitos para o Legislativo. Eles voltam então, à cena política, podendo ter relevância numa futura provável vitória de Lula para a Presidência a partir de 2023. 

O país parece dividido ideologicamente entre suas regiões. Norte, lugar da Amazônia brasileira, de onde falo, Nordeste, segundo maior colégio eleitoral regional, seguem, com exceção de Minas Gerais, em oposição histórica em relação ao Centro-oeste, Sudeste e Sul do Brasil. Não apenas classes, famílias e religiões estão divididas, mas as regiões também refletem os diferentes projetos políticos para o país. É certo que essa diversidade é esperada e considerada saudável para o modelo de democracia vigente. Entretanto, isto revela o abismo histórico entre norte e sul brasileiros, provavelmente refletindo suas divisões, desde a da desigualdade de investimento, de políticas fiscais, até mesmo em relação à divisão racial do Brasil por regiões. 

 

IHU – Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas? 

Ricardo Evandro Santos Martins – Por mais que tenha falado de indicadores de mudança, as perspectivas não são tão boas. Ainda que haja a derrota de Bolsonaro, o bolsonarismo não acabará com o fim de seu primeiro, e possivelmente, único mandato. Ainda há aquilo que o Prof. Fábio Py chama de cristofascismo, especialmente entre as igrejas pentecostais – apesar de termos visto gestos pontuais de resistência. Não acredito que haverá pragmatismo entre os líderes religiosos evangélicos e um futuro terceiro governo Lula. A pauta moralista, escandalizada, paranoide, anticomunista, muito preocupada com questões como banheiro nas escolas, direitos LGBTQIA+, etc., que opõe a direita, vista como defensora da família, dos "bons costumes", do "bem", contra a esquerda, vista como cínica, "maligna", "satânica", patologizada ("esquerdopata") e corrupta, continuará num eventual governo Lula. 

Uma pauta que irá mascarar, como ainda mascara: os avanços das reformas legislativas, que fazem a classe trabalhadora perder mais direitos, trabalhistas, previdenciários; os avanços nas privatizações de setores estratégicos do país; e encolhimento orçamentário, aliado com calúnias e desinformação anticientífica, odiosa contra as universidades públicas, e, especialmente, contra as ciências humanas. 

IHU – Deseja acrescentar algo? 

Ricardo Evandro Santos Martins – Se a mudança ocorrer neste segundo turno de eleição presidencial, nada estará seguro para trabalhadores, indígenas, quilombolas, comunidade LGBTQIA+, mulheres, para a preservação do meio ambiente, memórias históricas sobre escravidão e ditadura civil-militar no Brasil. A mudança somente virá com a desativação dos dispositivos que nos levaram às tragédias sociais, econômicas e existências em que vivemos depois das reformas trabalhistas, previdenciárias e do teto de gastos, forjados após o golpe contra Dilma Rousseff, no governo de Michel Temer. Se eleito, Lula encontrará um país de volta no mapa da fome, com um Congresso envolvido no provável maior escândalo de corrupção da história brasileira, que é o orçamento secreto.

As marcas do antipetismo, também produzidas pelas seletas famílias donas da mídia brasileira, ainda existem. Olavismo, cristofascismo, a ideologia do chamado "Partido Militar", fundado num manual ideológico radical de direita, o Orvil, ainda persistem. E uma crise econômica que tem afetado diretamente a saúde física e mental do povo brasileiro, são os desafios gigantescos para um novo governo. 

Aliás, um governo que provavelmente enfrentará forte oposição no novo Congresso eleito. E será um governo que encontrará um dos mais importantes países de seu bloco econômico fora da região do Mercosul, os Brics, em plena guerra e sob impressionantes sanções internacionais. 

Enfim, muitos desafios externos, especialmente internos, como a luta contra o neoliberalismo gêmeo do neofascismo brasileiro. Uma luta que não terminará ano que vem. E que pode trazer uma outra direita, mais extremada ainda, talvez mais bem resolvida com sua só aparente dialética interna em relação ao neoliberalismo, potencializando, assim, seus ideais tanatopolíticos.

 

Rejeição aos pobres

 

Ainda há um segundo turno indefinido pela frente. Há um perigo iminente de que neste segundo turno o ódio aos governo de Lula e de Dilma seja maior do que o sofrimento pelo qual o povo brasileiro tem passado, sob tamanha crise econômica e escândalos de corrupção. E este ódio ao Partido dos Trabalhadores talvez não seja somente por causa do antipetismo promovido pela mídia nesses últimos 20 anos, tampouco pelos escândalos de corrupção, como o “mensalão” e os esquemas envolvendo empreiteiras, indústria de proteína animal e Petrobras, ou, ainda, pela catástrofe ambiental causada pelas obras da hidrelétrica de Belo Monte, no meu Estado, no Pará

Contudo, com os imóveis comprados com dinheiro vivo pelo clã Bolsonaro, “rachadinhas”, e inúmeros crimes contra a humanidade sob os quais Bolsonaro tem sido acusado (contra indígenas e contra as vítimas da sua negligência durante a pandemia), parece que o “escândalo” dos bolsonaristas não se trata mesmo de algo causado por algum tipo de horror à corrupção ou pelo amor à pátria e à família. O que escandaliza mesmo, para além do que pauta moralista cristofascista demanda, é a diminuição da desigualdade social, o horror à presença das classes mais pobres nos espaços que antes eram somente de privilegiados (de aeroportos às universidades, por exemplo). 

 

Trata-se de uma verdadeira rejeição aos pobres, de uma fobia, horror por quem esmola nas ruas, ou seja, aquilo que o Pe. Julio Lancellotti, inspirado na filósofa espanhola Adela Cortina, chama de “aporofobia”. Pois o que se quer mesmo não é defender os valores da família ou o erário público, mas, sim, defender a necessidade de se manter distinção social e econômica, associada com o apartamento racial, cuja miséria produzida e imputada a essas pessoas, para além de causa de medo e rejeição de pessoas pobres, também serve como fonte necessária de acúmulo de capital financeiro e político-partidário. 

Por isso, nas eleições deste ano de 2022, em jogo estão as promessas de emancipação ainda não cumpridas no Brasil, as promessas libertadoras e de justiça social dos mais oprimidos na nossa história; as promessas que poderiam ter sofrido maiores e melhores avanços pelos governos de Lula e Dilma, mesmo até os limites que uma democracia burguesa permite.

 

“Nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer”

 

Assim, estão em jogo os desafios que parecem cada vez mais insolúveis neste regime de democracia, ainda tocado regionalmente por uma elite que se renova por meio de seus filhos candidatos aos cargos eletivos. Uma nova geração cool, que se diz “liberal”, conforme a formação que eventualmente pode ter recebido pelas thin tanks neoliberais infiltradas nas universidades e pela internet brasileiras. Em verdade, também se trata de um resto, ou de uma extensão, do capitalismo imperialista estrangeiro, que nos vende sua versão neoliberal/fascista, e que nos impõe um lugar muito subalterno na divisão internacional do trabalho, muitíssimo interessado na nossa desindustrialização e na nossa dependência do extrativismo mineral e do agronegócio, enquanto, sem pagar justamente seus impostos, também fazem os rentistas lucrar na bolsa de valores em São Paulo

Sigo ao final dessa entrevista, lembrando que é muito difícil falar do que ainda pode vir ocorrer. Sabia-se que o governo Bolsonaro seria trágico para muitos setores nacionais, mas nem de longe se esperava a tragédia da pandemia e do seu “deixar e fazer morrer” como modo de governo. Mas posso encerrar lembrando do filósofo judeu e alemão Walter Benjamin, e, com isto, não tentando projetar um futuro, mas mais lembrando do passado; não de passado um melancólico e derrotado, mas da história de resistências e dos sonhos do que poderia ter ocorrido, dos sonhos pelos quais ainda se vale a pena lutar, pois, como também Benjamin dizia, se não derrotarmos o adversário, "nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”. 

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Giuseppe Cocco (Foto: Acervo IHU)

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro  UFRJ e editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Publicou, entre outros livros, New Neoliberalism and the Other: Biopower, Antropophagy and Living Money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava, e Entre cinismo e fascismo (Autografia: Rio de Janeiro, 2019). 

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

Giuseppe Cocco – Não há muitas luzes. Em termos gerais, podemos mencionar a participação e a realização do voto sem violência, de maneira democrática. Em termos eleitorais, temos vários "segundos turnos" importantes, a começar naturalmente pela disputa em torno do cargo presidencial. Podemos ver positivamente o desempenho eleitoral de Simone Tebet e deveremos ver no detalhe quem foi eleito no Congresso

IHU – E quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições?

Giuseppe Cocco – Digamos que as eleições como um todo são assombrosas. Fica até difícil fazer uma lista, pois ela seria muito longa: os resultados nos estados, os senadores etc. A onda conservadora se radicaliza ao mesmo tempo que se confirma de maneira estrutural. O resultado presidencial é muito incerto, e o segundo turno será muito apertado e com acentos dramáticos. 

IHU – Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas? 

Giuseppe Cocco – Podemos dividir a dinâmica do voto em quatro dimensões: 

Em primeiro lugar, o voto contra o bolsonarismo. 

Em segundo lugar, o voto contra o lulismo. Os institutos de pesquisa davam um forte diferencial que as urnas eletrônicas não confirmaram. Parecia que Lula e o PT conseguissem demonstrar que a polarização que promoveram (que provocou a vitória de Bolsonaro em 2018) tivesse se transformado em tábua de salvação, mas o voto mostrou que a polarização é muito equilibrada entre os dois polos. Bolsonaro soube usar a máquina de governo bem mais do que as pesquisas previam. A polarização continua firme e fora de controle e ameaça o futuro do país. Ela é o principal problema e infelizmente será o marco da próxima década. 

Em terceiro lugar, a memória da gestão necropolítica da pandemia pelo Bolsonaro acabou diminuída pela atmosfera de fim do contágio que o país vivencia. 

Em quarto lugar, temo o voto afirmativo, dos que votaram porque atribuem ao candidato alguma qualidade. 

Esse voto é, em boa parte, o voto dos pobres e dos trabalhadores. Uma parte, evangélica, microempreendedora, suburbana, procura por certeza e seguranças e apoia a radicalização da extrema-direita. Uma outra parte precisa das políticas de distribuição de renda e tem em sua memória o período feliz dos governos Lula

Paradoxalmente, o voto que outra vez chamaríamos de classe, hoje está compacto na procura de um outro mundo e dividido nas opções eleitorais. O desafio colossal é de revitalizar a democracia no terreno mesmo de uma política dos trabalhadores pobres e dos pobres trabalhadores. 

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Valter Pomar é historiador formado pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em História Econômica pela mesma instituição. Foi secretário de Cultura, Esportes, Lazer e Turismo da Prefeitura Municipal de Campinas de 2001 a 2004. É professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC – UFABC e dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores. 

Valter Pomar (Foto: 180 Graus)

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

Valter Pomar – O resultado do primeiro turno mostrou que a maioria do eleitorado não aprova o cavernícola. E que há mais de 56 milhões de brasileiras e de brasileiros que consideram que a saída para a crise nacional é pela esquerda. E há resultados positivos em vários estados, que poderiam ter sido maiores se a linha política predominante no PT tivesse sido outra. O caso do Rio Grande do Sul é exemplar: se não tivessem atrapalhado, o segundo turno seria de esquerda contra direita. 

IHU – E quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições? 

Valter Pomar – As sombras são inúmeras. A primeira delas é que praticamente 51 milhões de brasileiros e brasileiras votaram numa candidatura cavernícola. A segunda delas é que parte importante dos governadores, dos senadores e dos deputados eleitos são partidários das políticas do cavernícola. Ou seja: há muita gente que discorda da pessoa, mas concorda com a política do atual governante. A terceira delas é que o conjunto da obra mostrou que a esquerda como um todo, a começar pelo PT, precisa passar por um processo de reorganização, a começar pela política. 

IHU – Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas? 

Valter Pomar – A perspectiva imediata é de luta. A eleição presidencial não está definida, o resultado não é garantido, só a mobilização e a politização podem nos salvar. E há segundos turnos importantes, como em São Paulo e na Bahia

Agora, mesmo que consigamos vencer o segundo turno, a luta vai continuar, porque o bolsonarismo e o neoliberalismo demonstraram uma enorme força nas eleições de 2022. Para derrotar as direitas, temos pela frente uma maratona. E o tema de fundo é o seguinte: como se combate a direita? Se aproximando dela ou polarizando com ela? A opção de se aproximar, fazendo alianças com setores neoliberais para combater o bolsonarismo, mostrou seus limites. O caso do estado de São Paulo é didático. É preciso tentar outro caminho, polarizando pela esquerda. 

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José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal  AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília  UnB, onde leciona desde 1985 e foi reitor de 2008 a 2012. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos. 

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da universidade. É autor de, entre outros, Sociedade democrática (Universidade de Brasília, 2007), O direito achado na rua: concepção e prática (Lumen Juris, 2015) e Para um debate teórico-conceitual e político sobre os direitos humanos (Editora D'Plácido, 2016). 

José Geraldo de Sousa Jr. (Foto: Agência Brasil)

 

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

José Geraldo de Sousa Júnior – Para responder às questões, recupero uma reflexão que fiz, um dia antes do fechamento das urnas, para uma coluna que mantenho no Jornal Brasil Popular

Lá, com base nas pesquisas que estimavam até uma vitória no primeiro turno, minha análise esteve evidentemente influenciada por essa possibilidade. Aqui, já divulgados os resultados do primeiro turno, diferentemente do que indicavam essas pesquisas, organizei minha reflexão sob o impacto do clima político e social no qual se desenrolou o que já é considerado o “mais acirrado da história republicana brasileira” balizador da eleição que se consumou neste 2 de outubro. Para Marina Basso, autora do livro “O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro”, em depoimento aqui no espaço do IHU, isso deriva da polarização provocada por 40 anos de neoliberalismo, cuja agonia expõe a tensão entre políticas de morte (direita) e política de vida (esquerda), para retomar conceitos que ajudam a discernir entre elas. 

Mesmo assim, o desempenho de Lula repercute como resgate de esperanças, para abrigar as expectativas, diz Basso “da ampla maioria de progressistas que habitam o Brasil”, todavia, ainda nubladas pela inoculação na cultura e nas mentalidades, do fascismo (em qualquer de suas formas perenes como caracteriza Umberto Eco), simbolizado pelo bolsonarismo, que ainda vai permanecer, com ou sem Bolsonaro

Por isso, concordando com Marina Basso, tudo que se representou nesse “movimento global de engajamento de parcelas da população de negação dos valores consagrados pelo liberalismo político que hegemoniza o Ocidente há quase 250 anos”, manifestando-se nos antagonismos que nos dividem atualmente, permanecerão por um bom tempo como “polarizações que haverão de continuar fechadas as urnas no Brasil”.

 

Esperança que abre possibilidades

 

As eleições, resgatando essas esperanças, abre enormes possibilidades para, como afirmou o presidente Lula, poucos dias antes da votação, em encontro com economistas, personalidades e empresários, criar um ambiente político para a “reunião dos divergentes para vencer os antagônicos”. Lula voltou a se declarar contra o teto de gastos e defendeu a volta da “normalidade” no país. 

Na mesma ocasião, o presidente foi enfático: “A fome não pode esperar. E não adianta dizer ‘não, primeiro nós temos que arrumar a casa, é preciso olhar a política fiscal, é preciso fazer tal coisa, porque se não você vai gastar dinheiro’. A fome não pode esperar. E nós vamos cuidar disso”, acrescentou Lula, ao lado de seu candidato a vice, o ex-governador Geraldo Alckmin (PSB). “Quero que todo mundo saiba, eu sou contra o teto de gastos. E sou contra por uma única razão: o teto de gastos foi o aprisionamento que o sistema financeiro fez do governo. Porque, na verdade, quem tem responsabilidade não precisa de teto de gastos”. 

Em boa medida, abertas as urnas, esse será o desafio para construir uma governança que precisa ser viabilizada à base de muito diálogo e articulação. Discernir no lusco-fusco das tensões políticas e das urgências angustiantes que vão galvanizar essas esperanças, sufocadas por uma política de morte, literalmente falando, se se toma a estatística monstruosa dos indicadores letais da pandemia, com quase 700 mil óbitos.

 

Mobilizar para o fim de todas as guerras

 

Volto a Marina Basso quando ela diz que “parte das pessoas pobres, desesperadas, sem poder, tendem a se agarrar a posições conservadoras, tradicionalistas, como um modo de proteção contra o desmoronamento da vida, a falta de oportunidades, de perspectivas. Portanto, eu vejo alguns aspectos das manifestações da ultradireita, sim, como um grito, mas não diante da redistribuição de forças no sistema geopolítico, e sim com a queda, de décadas, das políticas de bem-estar”. Mas essas injunções não se dão apenas num contexto interno. Elas repercutem e incidem num sistema mundo igualmente tensionado, quase ao limite (guerra entre a Rússia e a OTAN) e colapso planetário. 

Aqui também no espaço do IHU, o ex-vice presidente boliviano Álvaro Garcia Linera, tratando do tema da reversão do processo golpista e da derrota da extrema-direita na Bolívia, vinculou esse processo ao concomitante enfrentamento dos desafios da crise climática e dos horizontes de luta que se abrem com a nova onda progressista latino-americana em um mundo cada dia mais conflagrado. 

As eleições no Brasil nos repõem na mesa de interlocução regional e global que baliza as possibilidades de retomada do protagonismo do Brasil, totalmente aviltado pelo desqualificado desempenho de Jair Bolsonaro, isolado e à margem de todas as agendas das relações internacionais. 

Trata-se, como propôs o presidente Petro, da Colômbia, em seu discurso na ONU, de mobilizar para o fim de todas as guerras: “Para que a guerra se o que necessitamos é salvar a espécie humana? A causa do desastre climático é o capital. A lógica de que temos de consumir cada vez mais, para produzir cada vez mais para que alguns poucos ganhem... o desastre climático produz isso. A acumulação de capital é uma acumulação ampliada da morte. Ao invés de caçar e encarcerar agricultores de uma planta da selva amazônica, convido-os a acabar com a guerra e deter o desastre climático”. 

Esse lugar de protagonismo se enuncia até pela resolução do Senado norte-americano, adotada quatro dias antes das eleições, a favor da garantia do respeito à democracia no Brasil. O documento foi aprovado por unanimidade e contou com a participação de nomes como os democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren e pede o reconhecimento automático do vencedor das eleições no Brasil: "É importante que o povo do Brasil saiba que estamos do lado deles, do lado da democracia", disse Bernie Sanders.

 

Redemocratização na América Latina, um recomeço

 

Uma boa análise de Garcia Linera, na entrevista citada, é a de que, ao caracterizar o que chama de segunda onda de redemocratização na América Latina, acentuar que o nosso patamar de partida não é um começo, mas um recomeço. Recuperamos nossa história sobre um construído político e social que o fascismo não logrou desmantelar. Basta ver, na pandemia, a arquitetura constitucional que permitiu, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal limitar a voragem desconstituinte do modelo participativo de deliberação e de controle social das políticas públicas. 

O SUS, organizado sob esse conceito, permitiu a equidade e a universalidade de acesso ao sistema de saúde, especialmente na vacinação e ensejou ao social organizar-se por si mesmo para enfrentar a sindemia. O STF constatou a existência de “um estado de coisas inconstitucional” e abriu as condições para as iniciativas regionais (Consórcio Nordeste), municipais (prefeituras como Araraquara e instituições como a Fiocruz), e às comunidades e aos sujeitos coletivos de direito (povos indígenas, quilombolas), para organizar suas próprias formas de proteção sanitária, escapar ao negacionismo e à corrupção de condutas de agentes governamentais (veja-se a CPI da Covid no Senado). 

Para Garcia Linera, é importante considerar “que parte das reformas feitas na primeira onda já foram cumpridas. Tiramos 70 milhões de pessoas da pobreza na América Latina nesse período. Agora, ainda não está claro quais são as novas grandes reformas. Particularmente, a grande dívida dessa segunda onda progressista é não apenas redistribuir riqueza algo que deve ser feito para acabar com tanta injustiça , mas também um sistema produtivo que dê a redistribuição da riqueza, fôlego e sustentabilidade”. 

IHU – E quais são as sombras que aparecem a partir dessas eleições? 

José Geraldo de Sousa Júnior – Penso que é na política e na reeducação para a política, seu reencantamento, que será possível iluminar os desvãos do modelo colonizador das instituições, a começar pelo Estado, que se transformaram em estruturas distribuidoras de favores e de restrição de direitos. As eleições vão permitir lançar luzes sobre os subterrâneos e porões, alguns profundos, de uma organicidade clandestina e, em muitos aspectos, criminosa. 

Theodore Roosevelt, presidente dos Estados Unidos da América entre 1901 a 1909, revelou isso que tem sido chamado de estado profundo (“deep state”): “por detrás do governo ostensivo acha-se um governo invisível, que não deve fidelidade nem reconhece qualquer responsabilidade perante o povo. Destruir este governo invisível, dissolver esta maligna aliança entre negócios corruptos e política corrupta, há que ser a primeira tarefa de Estado. Este país pertence ao povo. Seus recursos, seus negócios, suas leis, suas instituições, deveriam ser utilizadas, mantidas ou alteradas somente da maneira que melhor atendesse o interesse coletivo”. 

Hoje, uma estrutura global, que adota, em seus fóruns e nos seus arranjos secretos, decisões econômicas, supraestatais e supranacionais, que desestabilizam países e drenam direitos e aquisições dos trabalhadores e da sociedade, formando um percentual mínimo de usufruidores da riqueza socialmente produzida.

 

A necessária e possível poda dos ramos

 

Será necessário incidir dentro desse “estado profundo”, que desloca para sua tecitura influente a competência e o agir dirigente, erodindo a democracia e a promessa legislativa de realização de direitos. É claro ser inimaginável alcançar as raízes mais profundas dessa semeadura daninha, até porque elas se espalham para fora e para longe de nosso espaço de ação política. Mas é possível podar alguns de seus ramos. 

O mais urgente e pedagógico é recuar da política de flexibilização do armamento da população brasileira. Aprofundar a análise da história do modo de elaboração das leis que favorecem a aquisição de armas de fogo, bem como colocar em pauta o agravo da situação e o risco que o governo corre em deslocar a segurança para as mãos de seus cidadãos. Não se trata de aferir por sua gravidade, os casos de feminicídios, homicídios, suicídios e chacinas, mas a derivação, secundária mas não desimportante, em face da desigualdade social, de um tráfico de armamento favorecendo a ilegalidade.

Assim, não é só a questão da violência, de debater políticas públicas, direito de porte e posse de armas, do Direito Penal; mas dar-se conta de que o fascismo, o autoritarismo, o discurso autorizativo da violação de direitos humanos, que serve ao milicianismo, à militarização da segurança, à criminalização dos movimentos sociais e da reivindicação por direitos, que bem se presta a infiltrar, inviabilizando, uma tecitura de agências clandestinas para a ação paralela de apropriação possessiva no privado do que democraticamente deve ser a reserva de sustentação equânime da vida bem vivida, com direitos e com dignidade. 

IHU – Quais as perspectivas de futuro que emergem a partir do resultado das urnas? 

José Geraldo de Sousa Júnior – Mesmo com esse lastro conservador e protofascista, só o poder de retomar a democracia, não apenas como forma de governo, mas como forma de sociedade, como sugere Marilena Chaui, pensando o democrático como criação permanente de direitos, já é em si um horizonte para o qual se orientam todas as nossas energias e reservas utópicas que devem continuar a ser mobilizadas. O que é seu destino histórico, caminhar sem desanimar em direção a horizontes que sempre se distanciam. 

Isso significa, pensando como militante de organismo de Justiça e Paz que sou, disposição para construir o futuro em diálogos com os sujeitos coletivos de direito inscritos nos movimentos sociais, tal como o faz o Papa Francisco, confiando que qualquer desafio que se coloque para o agir político requer interlocutor solidário (fraterno) e compromisso ético. Tratei sobre esse tema aqui no espaço do IHU, e portanto, confiança na interlocução com os movimentos sociais. Algo que, em se tratando do Papa Francisco e do presidente Lula, é autêntico, coincidindo seus discursos e suas práticas. 

IHU – Deseja acrescentar algo? 

José Geraldo de Sousa Júnior – Paulo Freire demonstrou que a educação é um ato de conhecimento e conscientização, e é a partir de uma educação libertadora e transformadora, em que as pessoas assumem um papel ativo no seu processo de alfabetização de forma crítica, é possível libertá-las da alienação e conduzi-las ao desenvolvimento de um pensamento crítico. 

Assim, Freire considera a conscientização como um compromisso histórico e, também, como consciência histórica e como inserção crítica na história, implicando que as pessoas assumam o papel de sujeito que fazem e refazem o mundo. 

A experiência dos governos que se estabeleceram depois do golpe de 2016. e de como foi possível retirar do horizonte de discernimento do social a compreensão de seu papel de consciência histórica para realizar projetos políticos de sua própria emancipação, coloca novamente a questão da educação como um fator estratégico para a sua autonomia e humanização. Trata-se de educação para os direitos humanos e para a cidadania. 

A política é, assim, também uma pedagogia e toda a ação política que se realize desde agora, para prevenir perdas das conquistas emancipadoras, precisa revestir-se de condição educadora e humanizadora. Com o Papa Francisco e com o Pe. Júlio Lancelotti, o desafio que os governos e as instituições mundiais precisam perfilhar, com um modelo social clarividente, capaz de enfrentar as novas formas de pobreza que invadem o mundo, pois “se os pobres são colocados à margem, como se fossem culpados da sua condição, então o próprio conceito de democracia é posto em crise e fracassa toda e qualquer política social”. 

É sobre isso que eu gostaria de fazer um acréscimo de sentido sobre a exigência de uma pedagogia democrática como modo de educação para os direitos humanos e a cidadania, não como modo de doutrinação ideológica, mas como responsabilidade social de educação emancipadora. Tanto mais que o mapa eleitoral projeta uma composição parlamentar muito vinculada a esse pensamento autoritário, no Senado muito fortemente, negacionista, privatista, necropolítico (o desempenho de personalidades eleitas que vestiram as insígnias desse modo de esvaziar o protagonismo do social na política e de atuar conforme um programa antipovo, antidemocrático e desconstituinte).

 

Falar com o coração

 

O Papa Francisco há quatro dias divulgou o tema para o Dia Mundial das Comunicações Sociais 2023. Depois de exortações para o ouvir, agora ele convida a “falar com o coração”, mas fazê-lo tendo em mente “falar a verdade com misericórdia”. 

Este convite reflete o estilo comunicativo do Sínodo, que celebrará sua fase conclusiva no final de 2023. Mas há sobretudo o desejo de Francisco por um sistema midiático que saiba ir contra a corrente, sobretudo, diz a nota, “numa época marcada – mesmo na vida eclesial – por polarizações e debates exasperados que exacerbam as almas”. Segundo Francisco, para realizar uma pedagogia que se manifeste como “Comunicação para o desarmamento integral”: 

Como o anúncio do Evangelho – que também contém verdades às vezes inconvenientes de serem ditas – não pode ser feito sem misericórdia ou sem uma "participação sincera nas alegrias e sofrimentos do homem do nosso tempo, no contexto dramático do conflito global que vivemos, é mais necessário do que nunca que se afirme uma comunicação não hostil (...) Uma comunicação aberta ao diálogo com o outro, que favoreça o "desarmamento integral", que trabalhe para desmantelar a "psicose de guerra" que se aninha em nossos corações, como exortou profeticamente São João XXIII, há 60 anos, na Pacem in Terris. É um esforço que é pedido a todos nós, mas sobretudo aos operadores de comunicação, chamados a exercer a sua profissão como missão de construir um futuro mais justo, mais fraterno, mais humano." 

Eis aí uma oportunidade para recuperar uma Igreja em saída, encharcada de povo, posta em caminho, na rua, que se proponha educadora num espaço esvaziado da política por confessionarismos que mobilizaram periferias com apelos ultraconservadores, camuflados por moralismos neopentecostais para servir a seus interesses de mundo, formando bancadas, obtendo concessões midiáticas, ocupando lugares institucionais até no Supremo Tribunal Federal, num culto preso aos carismas que exaltam arminhas e, sobretudo, o dinheiro, e que celebra mais a prosperidade que a libertação. 

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Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista político da Band News. É autor de Terra de ninguém (Unicamp, 1999), Dicionário da gestão democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira / Contraponto, 2010) e coautor de A participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.  

Rudá Ricci (Foto: Ricardo Machado/IHU)

IHU – Quais são as luzes que se revelam a partir do resultado das urnas? 

Rudá Ricci – Ainda vou me debruçar sobre os dados das eleições de ontem, mas, por enquanto, gostaria de expor algumas observações iniciais: 

1) O erro maior das pesquisas sobre intenções de voto para a Presidência está circunscrito à votação de Bolsonaro. Lula, Tebet e Ciro estiveram dentro da margem de erro que quase ninguém no Brasil respeita. 

2) A votação expressiva de Bolsonaro e do bolsonarismo se deu no Brasil profundo do Centro-Sul, mas não ocorreu no Nordeste. 

3) Nós, do Centro-Sul tendemos a olhar nossa região como motor intelectual e produtivo do país. Ocorre que a região vive um processo de decadência econômica com a desindustrialização. 

4) Quando se perde uma eleição, é preciso entender que o derrotado errou. Errou na comunicação, na proposta ou na estratégia. Se não pensarmos assim, a democracia se torna uma ficção. 

5) A sociedade civil organizada (organizações populares, movimentos sociais, ONGs, redes) perderam sua pujança formuladora e mobilizadora neste século. Com isso, os partidos à esquerda perderam seus canais de comunicação com a base social. 

6) A luta por direitos também arrefeceu no Brasil. A luta, agora, é pelo sucesso individual e proteção das comunidades fechadas às quais a maioria pertence. 

7) O debate da Globo foi um espelho colocado na nossa cara. A política, como está, é um circo, um campeonato entre "nosso time" e o "deles". Uma arena de gladiadores. 

8) PT e PL fizeram as maiores bancadas federais. PL fez 99 deputados e PT saltou de 56 para 76. Como se percebe, Bolsonaro transferiu o voto do PSL para o PL. Este é o fenômeno a ser analisado. 

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