Estamos num momento de fratura democrática global no qual a violência política e a linguagem do ódio se normalizam, a compreensão do fenômeno fascista deixa de ser uma questão acadêmica para se tornar uma emergência cívica. Não se trata mais de analisar um espectro do passado, mas de dissecar uma patologia do presente. Este ensaio nasce dessa urgência, construindo uma rara e poderosa interlocução entre algumas das vozes mais lúcidas e especializadas do cenário intelectual brasileiro e internacional, todas reunidas em entrevistas concedidas ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
O artigo é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ).
O ponto de partida e o eixo central deste diálogo é fundamentado na entrevista da mestra em Filosofia e em Teologia Patricia Fachin com a psicanalista e professora Dra. Rose Gurski (UFRGS), intitulada Identificação de jovens com o fascismo é sintoma de uma época em que gerações temem o futuro. Publicada em 06-11-2025 no IHU, o trabalho de Fachin foi importante para desvendar, junto à professora Gurski, a gramática psíquica do autoritarismo, fornecendo a estrutura conceitual – o “desejo de fascismo” – que ressoa e se amplifica nas análises dos demais especialistas.
A este núcleo, somam-se as reflexões de outros intelectuais:
O Leitmotiv deste diálogo é o artigo “Identificação de jovens com o fascismo é sintoma de uma época em que gerações temem o futuro. Entrevista especial com Rose Gurski” [1].
A pergunta seminal de Fachin à professora Gurski conduzirá a maior parte desta análise premente: “O que é o desejo pelo fascismo? De onde emerge esse desejo?” É a partir da lente psicanalítica oferecida pela pergunta, e dissecada pela resposta da entrevistada, que poderemos decifrar não apenas a adesão à ideologias, mas o investimento afetivo em líderes e práticas que prometem, como bem diagnosticou Gurski, uma “simplificação” do mundo e um “alívio” diante da angústia da liberdade e da complexidade. Esclarecido este ponto fundamental, procederemos à análise:
A contribuição da condução da entrevista está em trazer à tona a análise de que o fascismo contemporâneo não é meramente uma opção ideológica, mas um sintoma político que descreve uma parte da gramática do desamparo contemporâneo. Esta formulação, nascida do encontro entre a psicanálise e a teoria política, oferece um salto qualitativo para compreender por que, como pergunta Fachin, “líderes políticos como Hitler causam fascínio”.
Gurski, com rara clareza, desloca a questão de um plano racional para um plano psíquico e afetivo. O fascismo, em sua análise, “atrai porque oferece uma resposta política e afetiva para o mal-estar diante da falta, da pluralidade e da incerteza que marcam a vida em sociedade”. É uma tentativa patológica de lidar com o que Freud chamou de “mal-estar na cultura”. Em um mundo fragmentado pela precarização neoliberal, pela saturação informativa das redes e pelo “lento cancelamento do futuro” (expressão de Mark Fisher que Gurski adota), a promessa de ordem, unidade e pertencimento oferecida pelo autoritarismo funciona como um poderoso analgésico existencial.
Aqui, a argúcia da entrevistadora é vital, posto que busca as raízes do fascismo nas raízes da economia psíquica, ecoando claramente Hannah Arendt, em seu livro Eichmann em Jerusalém, e a teoria da “Condução das Condutas” de Michel Foucault. A resposta de Gurski aponta para um “desejo do Um” – uma ânsia por uma completude imaginária que elimine a angústia inerente à condição humana (Arendt), que é a de habitar um mundo de diferenças e conflitos. O fascismo seria, portanto, um “empuxo em direção à totalidade”, um desejo de “se livrar do mundo feito de conflitos e alteridades”. Essa leitura é fundamental para entender a adesão a líderes que se apresentam como figuras paternas omnipotentes, capazes de simplificar a complexidade do real através de bodes expiatórios e soluções maniqueístas. Nesse sentido, seria a catastrofização do carisma weberiano utilizado na sua forma libidinal destrutiva.
A conexão com a visão do Professor Dr. Michel Gherman é imediata. Quando Gherman analisa a reação popular que legitima massacres no Rio de Janeiro, descrevendo um discurso que remete ao sionismo hegemônico – “a ideia de que não há solução política, apenas uma solução militar; a premissa de que o inimigo deve ser destruído através de um processo de efetiva desumanização” –, ele está descrevendo na esfera política o mesmo mecanismo que Gurski analisa na esfera psíquica. A “solução militar” é a materialização do desejo de eliminar o conflito; a “desumanização” é o pré-requisito para esse ato de simplificação violenta da realidade. A política, a partir deste princípio, jamais pode ser deixada de lado para uma compreensão totalizadora da psique humana, a sociologia entra de forma a auxiliar à psicanálise à amplificar a sua voz.
Da mesma forma, a reflexão do geneticista Dr. George Church, embora situada em outro campo, ilumina um aspecto crucial. Ao ser questionado por Thiago Gama, que teve a oportunidade de entrevistá-lo por e-mail, o professor fala sobre a responsabilidade de “criar” ou “re-trazer” espécies, Church enfatiza que “podemos ser accountable for (care for) all life” (responsáveis por cuidar de toda a vida). A ética do cuidado que ele propõe é o antípoda absoluto da lógica fascista. Enquanto o fascismo deseja eliminar o outro incômodo, a perspectiva ética de Church, ancorada na ciência, propõe uma responsabilidade universal e uma ampliação do círculo de empatia. A incapacidade de cumprir esse desígnio é o terreno onde o “desejo de fascismo” viceja.
A entrevista de Patricia Fachin com Rose Gurski permitiu, assim, estabelecer o diagnóstico de base: o fascismo é uma resposta patológica ao desamparo. Ele prospera onde a capacidade de sonhar e de imaginar futuros alternativos definha, substituída pelo gozo imediato da destruição e da obediência. Como Gurski sentencia, “a capacidade de sonhar e imaginar é o melhor antídoto contra a barbárie”. É a partir desta compreensão radical que podemos agora investigar como esse desejo se corporifica em estruturas de poder e práticas estatais.
Se a análise da professora Rose Gurski, nos fornece a cartografia do desejo fascista na subjetividade, é na esfera da política de Estado que esse desejo encontra sua expressão mais letal. A ponte entre o diagnóstico psíquico e a realidade concreta é construída pela lente do desejo fascista na perspectiva do Professor Dr. Michel Gherman.
Gherman, em sua entrevista exclusiva ao IHU, oferece uma formulação que ressoa como a materialização do “desejo do Um” analisado por Gurski. Ao descrever a função do Estado em operações como a que vitimou o Complexo da Penha, ele afirma: “O Estado, nessa concepção, só existe para matar. A tragédia aprofunda-se no pós-morte: não houve a retomada do território; os corpos mutilados e dilacerados foram deixados para que a própria comunidade os reorganizasse e enterrasse, num ato de restauração da dignidade humana básica”.
Esta descrição não é de uma falha, mas de uma lógica operacional. É a necropolítica em ação, onde o poder soberano se define não pela capacidade de fazer viver, mas pela prerrogativa de deixar morrer e de administrar a morte. O “desejo de fascismo”, nesse contexto, traduz-se na anuência social de um Estado que age como executor, simplificando a complexidade social do tráfico através da aniquilação pura e simples. A “solução militar” que Gherman identifica no discurso hegemônico é a versão estatal do “empuxo à totalidade” que Gurski localiza no sujeito.
Se Gherman analisa o “fazer morrer” ativo nas favelas, a Covid-19, a tragédia gerenciada pelo governo Bolsonaro foi a resultante exata do “deixar morrer” deliberado na saúde pública. Juntos, eles revelam as duas faces da mesma moeda: a vida como externalidade, o cidadão como homo sacer.
Contra essa lógica, a reflexão do Prof. Dr. George Church surge como um contraponto ético de profunda relevância. Ao ser questionado por Thiago Gama sobre a responsabilidade de “criar” ou “retrazer” espécies, Church não se detém na técnica, mas avança para uma filosofia da responsabilidade: “We could be accountable for (care for) all life. We are developing tools to do a better job of that — possibly including spreading some species beyond our home planet where they are at risk of extinction...”, em tradução livre: “Nós poderíamos ser responsáveis por (cuidar de) toda a vida. Estamos desenvolvendo ferramentas para fazer um trabalho melhor nisso — possivelmente incluindo espalhar algumas espécies para além do nosso planeta natal, onde elas correm risco de extinção.”
A ética do cuidado (care for) que Church propõe como horizonte para a biotecnologia é o antídoto direto para a necropolítica. Enquanto esta segrega, descarta e elimina, a ética do cuidado universaliza, integra e preserva. A visão de Church, ancorada no potencial mais avançado da agência humana, desloca o paradigma do poder sobre a vida (biopoder) para uma responsabilidade por toda a vida. É uma resposta ao “desejo de fascismo” que, em vez de simplificar pela destruição, propõe enfrentar a complexidade através da ampliação do cuidado e da empatia.
A pergunta crucial de Fachin – “Como reverter o fascínio pelo fascismo?” – começa a encontrar aqui uma resposta multifacetada. A reversão passa necessariamente por desmontar as estruturas necropolíticas do Estado, tal como descritas por Gherman, e contrapor a elas uma ética política e social que se assemelhe ao princípio do care for proposto por Church. Enquanto o fascismo promete pertencimento através da exclusão, a alternativa deve construir pertencimento através da inclusão e da responsabilidade universal.
A análise do “desejo de fascismo” e de suas expressões necropolíticas não estaria completa sem um exame das estruturas que perpetuam essa lógica no longo prazo. É aqui que a contribuição do Prof. Dr. João Roberto Martins Filho (UFSCar), autor de “O Palácio e a Caserna”, se torna indispensável. Sua entrevista exclusiva ao IHU, oferecida a Thiago Gama, detecta um diagnóstico sóbrio e crucial sobre a relação entre as Forças Armadas e o projeto de poder autoritário no Brasil.
Martins Filho estabelece uma distinção fundamental entre o regime militar de 1964-85 e o que denomina “aventura bolsonarista”. Enquanto aquele era um “regime militar”, este foi um governo civil eleito que, no entanto, se valeu de um amplo apoio militar. Sua análise é contundente: “O apoio a Bolsonaro nas FFAA mostra uma convivência desconfortável com a democracia, mas não resultou na abolição do regime.” Esta “convivência desconfortável” é a manifestação institucional do que Gurski identifica no plano subjetivo: uma aversão à pluralidade e ao conflito inerentes à democracia.
O professor vai além, ao conectar o presente com as disputas de memória. Ele afirma que os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade foram “o fator desencadeador da volta do recalcado: a atração dos militares brasileiros pela interferência no processo político-partidário.” Sob Bolsonaro, “vozes militares perderam a antiga posição de silêncio sobre a ditadura e passaram a defender abertamente o golpe de 64, o regime que se seguiu e a própria tortura de presos políticos.” O “recalcado” a que se refere é a versão institucional do “desejo de fascismo” – uma pulsão autoritária que, longe de superada, foi reativada e legitimada publicamente.
Esta visão é profundamente reforçada pela análise da Prof. Dra. Lilia Schwarcz. Em sua entrevista ao IHU, ela articula como o autoritarismo está entranhado na formação nacional: “certos elementos da nossa estrutura ainda persistem, como a desigualdade, o racismo — que é um legado perverso da escravidão —, a grande propriedade, a concentração dos poderes. Esses são temas da nossa agenda do passado e da nossa agenda do presente”. Para Schwarcz, a democracia brasileira é “incompleta” porque não há universalidade de direitos, o que a torna mais vulnerável a discursos populistas e autoritários.
Schwarcz traz ainda um elemento crucial que ressoa com a análise de Gherman sobre o nacionalismo cristão: “a questão das religiões pentecostais é central ao autoritarismo brasileiro”. Ela confirma que este tema entrará na nova conclusão de “Brasil: Uma Biografia”, indicando a percepção de que o fenômeno cresceu e se tornou um pilar ideológico do autoritarismo contemporâneo, fornecendo uma base de massa para o projeto de poder.
A interrogação de Patricia Fachin – “O que explica a identificação de jovens com o fascismo?” – encontra aqui uma camada adicional de resposta. Não se trata apenas de uma crise subjetiva ou de desamparo econômico, mas de uma transmissão ativa de valores autoritários por instituições-chave: as Forças Armadas, com sua memória não elaborada da ditadura, e certas lideranças religiosas, com seu discurso de guerra cultural. São estruturas que oferecem um sentido de pertencimento e uma narrativa de ordem, alimentando o “desejo do Um” identificado por Gurski.
A análise do fascismo contemporâneo exige que se transcenda a esfera da política institucional e da subjetividade para adentrar as bases materiais que fertilizam seu terreno. É aqui que a contribuição do Prof. Dr. Fernando Roberto de Freitas Almeida (eoutor em História Política pela UERJ e professor do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF) se revela fundamental. Sua entrevista exclusiva ao IHU, ofertada a Thiago Gama, focada em economia política internacional e segurança alimentar, permite conectar a crise democrática a uma reconfiguração profunda do capitalismo global.
Em sua análise sobre a relação Brasil-Argentina e o Mercosul, Almeida não apenas traça um panorama geopolítico, mas identifica uma lógica econômica perversa. Ao descrever o avanço de políticas neoliberais que promoveram “grave desindustrialização” e uma “forte presença chinesa na região, que desestruturou cadeias produtivas”, ele delineia o cenário de que falava a Prof. Dra. Rose Gurski quando se referia ao “realismo capitalista” de Mark Fisher – essa sensação de que não há alternativa ao status quo. A “lenta cancelamento do futuro” que Gurski identifica na subjetividade juvenil tem, em Almeida, sua contraparte econômica: um sistema internacional que inviabiliza projetos nacionais de desenvolvimento soberano.
É significativo que Almeida utilize explicitamente o conceito de “capitalismo canibal” cunhado por Nancy Fraser, que a própria Gurski havia evocada. Ele afirma que este sistema “devora as próprias condições de existência”, produzindo vulnerabilidades que são terreno fértil para soluções autoritárias. Quando Almeida analisa que “a dependência da receita de exportações agropecuárias cria vulnerabilidades” e gera “uma forte bancada parlamentar conservadora”, está indicando como interesses econômicos específicos se alinham com projetos políticos que buscam simplificar à força complexidades sociais, ecoando o “desejo de fascismo” analisado por Gurski.
Esta visão é brutalmente complementada pela necrofilia do governo Bolsonaro, que poderia ter evitado, ao menos, “400 mil mortes” na pandemia, agilizando a compra da vacina Covaxin. Isto demonstra como a lógica do “capitalismo canibal” opera na gestão da vida e da morte: o cálculo econômico de curto prazo sobrepôs-se à preservação da vida durante a pandemia. A “economia libidinal da crueldade” que é a expressão política de um sistema econômico que transforma vidas em externalidades.
A conexão com a entrevista de Fachin torna-se aqui particularmente iluminadora. Quando Fachin pergunta a Gurski sobre os danos do “cultivo do ódio, do ressentimento e do medo”, as análises de Almeida fornecem a dimensão material dessa equação. O ressentimento social não emerge do vácuo – é alimentado pela precarização econômica, pela desindustrialização e pela percepção de que o sistema não oferece futuros dignos. O fascismo, nesta chave, surge como uma “promessa de destino para quem já não consegue imaginar outro porvir”, nas palavras de Gurski.
O diagnóstico de Almeida sobre a segurança alimentar é especialmente revelador: ele mostra como o Brasil, sendo um “celeiro do mundo”, paradoxalmente viu o retorno do “Mapa da Fome da ONU” sob políticas ultraliberais. Esta contradição – entre potencialidade e retrocesso – cria o caldo de cultura para discursos que culpam “inimigos internos” por falhas que são estruturais do modelo econômico.
O que a análise econômica de Almeida acrescenta ao debate é a compreensão de que o “desejo de fascismo” não é apenas uma patologia psíquica ou cultural, mas uma resposta distorcida a crises materiais muito reais. A reversão desse cenário, como sugerem tanto Gurski quanto Almeida, exigiria a reconstrução de economias mais soberanas e solidárias – a restauração da capacidade de imaginar futuros coletivos que não sejam predatórios.
A análise do fascismo contemporâneo não pode ser contida pelas fronteiras nacionais. Ele se alimenta de uma rede transnacional de ideologias e práticas que compartilham uma gramática comum de segurança, militarização e desumanização. É nesta esfera que a entrevista exclusiva ao IHU do Professor Dr. Michel Gherman adquire sua máxima potência analítica, revelando como o “desejo de fascismo” identificado pela Prof. Dra. Rose Gurski se organiza em escala global.
Esta é uma espécie de guerra que se desdobra na cultural transnacional, como bem diagnosticou Gurski em sua entrevista, pois opera através de “perspectivas conspiracionistas e negacionistas [que] produzem política internacional”. Gurski exemplifica com discursos sobre genocídios fictícios que apagam crimes reais, criando uma geopolítica étnica que simplifica o mundo entre “nós” e “eles”. O “judeu imaginário” que Gherman analisa este fenômeno – branco, europeu, vítima paradigmática – é uma peça-chave nessa guerra, fornecendo um significante unificador para uma extrema-direita global que se vê como defensora da "civilização judaico-cristã" contra supostas ameaças.
Contra esta visão segmentada e militarizada da humanidade, a reflexão do Professor Dr. George Church oferece um contraponto ético radical. Ao ser questionado por Thiago Gama sobre o papel da humanidade como “criadores”, Church não fala em termos de segurança ou domínio, mas de cuidado: “We could be accountable for (care for) all life. We are developing tools to do a better job of that — possibly including spreading some species beyond our home planet where they are at risk of extinction...”. Em tradução livre: “Nós poderíamos ser responsáveis por (cuidar de) toda a vida. Estamos desenvolvendo ferramentas para fazer um trabalho melhor nisso — possivelmente incluindo espalhar algumas espécies para além do nosso planeta natal, onde elas correm risco de extinção...” Esta ética do cuidado universal (care for all life) é o antídoto para a lógica de inimigo que alimenta a guerra cultural. Enquanto o paradigma descrito por Gherman segrega e elimina, a visão de Church integra e preserva, propondo uma responsabilidade que transcende fronteiras e espécies.
A pergunta de Patricia Fachin sobre como reverter o fascínio pelo fascismo encontra aqui uma dimensão global. A resistência deve incluir a desmontagem desses paradigmas transnacionais de segurança que normalizam a violência estatal e a desumanização. A ética do cuidado proposta por Church, se traduzida para a política internacional, exigiria um novo modelo de relações baseado na cooperação e na responsabilidade mútua, em lugar da militarização e da segregação. Enquanto a guerra cultural alimenta o “desejo de fascismo” através do medo, a ética do cuidado pode alimentar a imaginação de um futuro comum, respondendo ao apelo de Gurski por abertura ao sonho e ao novo.
Diante do diagnóstico sombrio, a interrogação final de Fachin à Prof. Dra. Rose Gurski – “Como reverter o fascínio pelo fascismo? Que tipo de ação propositiva pode nos conduzir para outra direção?” – ecoa como um imperativo. As respostas, colhidas no conjunto das entrevistas exclusivas do IHU, apontam não para uma única solução, mas para uma frente multifacetada de resistência que opera no simbólico, no político e no ético.
A própria Gurski, ao responder a Fachin, localiza na educação e no resgate da capacidade de sonhar o antídoto mais potente. Ela afirma, de forma categórica: “A capacidade de sonhar e imaginar é o melhor antídoto contra a barbárie.” Esta não é uma fuga da realidade, mas uma ferramenta de confronto. Na esteira de Theodor Adorno, para quem a educação após Auschwitz deveria impedir sua repetição, Gurski propõe uma educação que seja espaço da “natalidade” arendtiana – onde o novo pode irromper. É uma batalha contra o "totalitarismo do pensamento" que ela identifica nas massas digitais, uma defesa da polissemia e da complexidade contra a simplificação fascista.
Esta batalha pelo simbólico é travada também no campo da memória pública, como bem analisa a Prof. Dra. Lilia Schwarcz. Questionada sobre a ressignificação de monumentos, ela argumenta: “Minha perspectiva não é de eliminar nada, mas é de tornar a nossa visão muito mais crítica.” Sua proposta de “produzir monumentos alternativos” que incluam mulheres, pessoas negras, indígenas e “outros eventos históricos” é um ato de resistência ativa. É a reconstrução de uma paisagem simbólica que dialogue com a pluralidade da nação, contra uma história oficial que cristalizou hierarquias. Do mesmo modo, sua luta contra o revisionismo histórico de Bolsonaro – que “tentou apagar a máquina de morte produzida pela ditadura” – é um combate pela verdade como fundamento da democracia.
A defesa intransigente da liberdade acadêmica emerge como uma trincheira crucial nesta guerra. O Prof. Dr. Michel Gherman, ao relatar o episódio de intimidação que sofreu na PUC-Rio, identifica o cerne da questão: “Fui alvo, sem sombra de dúvida, porque o alvo era a liberdade acadêmica e de cátedra.” Seu testemunho é um alerta sobre a estratégia fascista de silenciamento: “O fascismo e aquela turba fascista desejam a simplificação; têm horror a perspectivas reflexivas e complexas.” Apoiar uma intelectual como a professora Jaqueline Muniz, hoje perseguida, tal como Gherman foi no passado, não é um gesto corporativo, mas a defesa do espaço público onde o pensamento complexo ainda é possível.
Contra a economia libidinal da crueldade, é preciso opor uma economia política da vida. O Prof. Dr. Fernando Almeida, ao destacar a recriação do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar) e a luta contra o retorno do Brasil ao Mapa da Fome, aponta para a materialidade do cuidado. Garantir o direito humano à alimentação é desmontar na prática a lógica necropolítica. É a tradução, no campo das políticas públicas, do “care for all life” proposto pelo Prof. Dr. George Church.
A visão de Church, por fim, oferece um horizonte ético último. Seu chamado para que sejamos “accountable for (care for) all life” e para que usemos nossas ferramentas para “aprimorar” esse cuidado, é uma interpelação profunda à nossa capacidade de agência. Ele nos convida a uma responsabilidade que é ao mesmo tempo humilde – reconhece que partimos de um “kit” avançado, não do zero – e ousada – propõe-nos como guardiões ativos de um futuro compartilhado. Esta é a antítese radical do desejo fascista de dominação e destruição.
Os autores T.S. Eliot e Tolstói, já publicados no IHU por Fachin, ressoam neste momento final com especial delicadeza. Ao refletir sobre a “incapacidade de se comover diante de Deus, sua criação e os outros seres humanos”, Fachin nos lembra, através da literatura, que a crise é também de sensibilidade. A arte, como via de acesso ao sentimento, pode ser um caminho para reabilitar a empatia, essa musculatura moral atrofiada pelo ódio e pelo medo. Seu apelo à conversão, ainda que em chave religiosa, encontra eco secular no apelo de Gurski à capacidade de sonhar. O ensaio da Ms. Patricia Fachin sobre T.S. Eliot e Tolstói, publicado no IHU sintetiza e dá um fecho robusto e final a tudo o que dissemos aqui, E não poderia faltar o poeta Manoel de Barros para fortalecer a musculatura da sensibilidade contra quaisquer ordens de fascismo. Ela é arma primária que filtra qualquer desejo libidinal desregrado pelo líder autoritário.
“E num tempo de ruínas,
é preciso abrandar as palavras.
Dar-lhes um pouco de silêncio e de sombra
para que recuperem a transparência.”
(Manuel de Barros)
FACHIN, Patricia. “Identificação de jovens com o fascismo é sintoma de uma época em que gerações temem o futuro”. Entrevista especial com Rose Gurski. Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 06 de novembro de 2025. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/659442-identificacao-de-jovens-com-o-fascismo-e-sintoma-de-uma-epoca-em-que-geracoes-temem-o-futuro-entrevista-especial-com-rose-gurski
GHERMAN, Michel. “Massacre no Rio de Janeiro: ‘O Estado, nessa concepção, só existe para matar’”. Entrevista concedida a Thiago Gama. Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 04 de novembro de 2025. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/659443-massacre-no-rio-de-janeiro-o-estado-nessa-concepcao-so-existe-para-matar-entrevista-com-michel-gherman
MARTINS FILHO, João Roberto. Entrevista sobre a dinâmica militar no regime de 1964 e no governo Bolsonaro. Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 2025.
Entrevista sobre Mercosul, segurança alimentar e relações internacionais. Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 2025. Disponível em: ALMEIDA, Fernando Roberto de Freitas.
SCHWARCZ, Lilia. “Bolsonaro fez um grande elogio à ditadura. Tentou apagar a máquina de morte produzida pela ditadura”. Entrevista concedida a Thiago Gama. Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 22 de outubro de 2025. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/159-entrevistas/658754-governos-autocraticos-tem-reacoes-negativas-em-relacao-aos-direitos-civis-entrevista-com-lilia-schwarcz
FACHIN, Patricia. “Nesta Quarta-feira de Cinzas “Nesta Quarta-feira de Cinzas, quando a Igreja celebra o início da Quaresma...”.Artigo sobre T.S. Eliot e Leon Tolstói. Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 2025. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/649091-nao-permitas-que-eu-me-veja-separado-um-poema-para-romper-a-incapacidade-de-se-comover-diante-de-deus-sua-criacao-e-os-outros-seres-humanos
BARROS, Manuel. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. [Edição original 1930]. São Paulo: Penguin Classics, 2011.
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. [Edição original 1951]. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
FISHER, Mark. Realismo Capitalista: É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
FRASER, Nancy. O Capitalismo Canibal: como nosso sistema está devorando a nossa democracia, o cuidado e o planeta. São Paulo: Autonomia Literária, 2024
[1] https://www.ihu.unisinos.br/659442-identificacao-de-jovens-com-o-fascismo-e-sintoma-de-uma-epoca-em-que-geracoes-temem-o-futuro-entrevista-especial-com-rose-gurski. Acessado no dia 6 de novembro de 2025.