Massacre no Rio de Janeiro: “O Estado, nessa concepção, só existe para matar”. Entrevista com Michel Gherman

A Operação Contenção altera a função do Estado, que “se faz ausente em suas obrigações civis, mas demonstra-se presente unicamente em termos de repressão e morte nas favelas e comunidades”, avalia o professor

Pessoas na Avenida Paulista durante manifestação contra a operação policial Contenção no Rio de Janeiro. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Por: Thiago Gama | Edição: Cristina Guerini | 04 Novembro 2025

O que a política de segurança pública do Rio de Janeiro e a guerra em Gaza têm em comum? O fio condutor, na análise do professor Michel Gherman, é uma gramática ideológica comum da extrema-direita global: a primazia da segurança sobre os demais valores humanos, a desumanização do inimigo e a crença de que a solução é sempre militar, nunca política.

Gherman, pós-doutor pela Ben-Gurion University of the Negev, em Israel, e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, discorre sobre a chacina ocorrida na capital fluminense e a conecta ao cenário internacional. “O que assistimos no Rio de Janeiro nesta semana foi barbárie. É preciso notar que até os policiais vitimados foram enviados para uma operação de barbárie”, salienta o pesquisador. “É fundamental estabelecer o seguinte princípio: o Estado não pode, sob nenhuma hipótese, produzir execuções extrajudiciais por meio de suas forças de violência. Isso é a definição de barbárie”, sinaliza.

Ao falar sobre a crise nas democracias contemporâneas, o pesquisador aponta que uma das questões centrais é “o debate sobre a segurança pública”. Um conceito, segundo indica, que “tem servido, globalmente, como justificativa para intervenções, para a retirada de direitos e para o avanço da extrema-direita no mundo”. “Quando o discurso dos direitos humanos perde espaço para o discurso da segurança e para perspectivas conspiratórias que produzem inimigos, reais ou imaginários, o resultado é Bolsonaro, é Trump, é Netanyahu”, observa.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone a Thiago GamaMichel Gherman ainda articula uma tese que desvincula o apoio da extrema-direita brasileira a Israel de uma motivação puramente religiosa, propondo uma leitura essencialmente ideológica e política. “A relação profunda entre a extrema-direita brasileira e o sionismo contemporâneo é de natureza ideológica. Ela se fundamenta em uma nova percepção de mundo baseada exclusivamente no discurso da segurança, da segurança nacional e das armas. O que ocorreu no Rio de Janeiro, na Maré e na Penha, ilustra perfeitamente essa transposição”, explica. “O discurso que justifica o massacre nas favelas cariocas é perpassado pela exata gramática neossionista usada para justificar os ataques a Gaza: a lógica da punição coletiva, a transformação de um território civil em território inimigo e a política de ‘cortar a grama’”, complementa.

Michel Gherman

Foto: UFRJ

Michel Gherman é graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Sociologia e Antropologia pela Universidade Hebraica de Jerusalém e doutor em História Social pela UFRJ. É docente adjunto do Departamento de Sociologia da UFRJ e coordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos – NIEJ, do Instituto de História da UFRJ. Coordena também o Laboratório de Religião, Espiritualidade e Política – LAREP do Departamento de Sociologia da UFRJ. É pesquisador associado do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo – USP, pesquisador associado do Centro Vital Sasson de Estudos de Antissemitismo da Universidade Hebraica de Jerusalém. Também é professor do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ. É diretor acadêmico do Instituto Brasil Israel. É autor do livro O não judeu judeu: a tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo (Fósforo Editora, 2022).

A entrevista é de Thiago Gama, doutorando pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ, cedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU pelo entrevistador.

Confira a entrevista.

A violência, embora seja um ente abstrato que ocorre globalmente, possui um componente central: o drama humano. Guardadas as devidas proporções, existe um paralelo entre o drama humano vivido em Israel, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, e aquele que o Rio de Janeiro vivenciou na semana passada? Avalio que o senhor está não apenas habilitado, mas é uma voz apropriada — possui “lugar de fala” — para tratar do assunto, dado o seu reconhecido peso no cenário nacional como professor e estudioso sobre o holocausto e questões relacionadas à Cisjordânia e à Faixa de Gaza.

Michel Gherman – O que ocorreu no Rio de Janeiro na última semana constitui uma das fases mais trágicas da história da segurança pública local. A tragédia é multifacetada.

Primeiramente, ela efetivamente recoloca a função do Estado: este se faz ausente em suas obrigações civis, mas demonstra-se presente unicamente em termos de repressão e morte nas favelas e comunidades. O Estado, nessa concepção, só existe para matar. A tragédia aprofunda-se no pós-morte: não houve a retomada do território; os corpos mutilados e dilacerados foram deixados para que a própria comunidade os reorganizasse e enterrasse, num ato de restauração da dignidade humana básica. Isso é muito simbólico.

A reação da população é igualmente trágica, pois revela um discurso que remete ao discurso hegemônico do sionismo, remetendo-me à sua pergunta sobre estudos israelenses: a ideia de que não há solução política, apenas uma solução militar; a premissa de que o inimigo deve ser destruído através de um processo de efetiva desumanização; e a noção de que a segurança deve se sobrepor a todos os outros valores da humanidade.

Considero trágico, embora esperado, o resultado das pesquisas de aprovação deste governo estadual — um governo incapaz, improdutivo, corrupto e intelectualmente pobre — que cresce em popularidade justamente após a produção de um massacre e apesar do reconhecimento de sua incompetência no controle do crime. A semana que se passou, indubitavelmente, entrará para a história das tragédias do Rio de Janeiro.

O senhor é reconhecido por seus pares na Academia por ser um defensor incansável da Democracia e dos Direitos Humanos, às vezes vivendo os reveses amargo desta batalha (como trataremos na última pergunta), o que vimos no Rio de Janeiro na semana passada foram execuções sumárias. Diante disso, qual a sua perspectiva para o futuro da Democracia no mundo?

Michel Gherman – Considero essa perspectiva profundamente temerária. Nada justifica o ocorrido; muito pelo contrário. Um dos elementos centrais da crise nas democracias contemporâneas tem sido precisamente o debate sobre a segurança pública. Este conceito tem servido, globalmente, como justificativa para intervenções, para a retirada de direitos e para o avanço da extrema-direita no mundo. Os resultados e reações a essa crise democrática manifestam-se de formas distintas.

Na Europa Ocidental, por exemplo, observa-se o fortalecimento da extrema-direita por meio de um discurso profundamente islamofóbico e anti-imigração. Opera-se, aí, uma gramática similar à antissemita — como mencionei anteriormente —, na qual a vítima (neste caso, o imigrante) é percebida como “forte” e, por isso, necessita ser combatida e destruída.

No Brasil, o debate sobre o tráfico de drogas cumpre uma função idêntica: justifica a intervenção, a diminuição de direitos das populações periféricas, a percepção do Estado unicamente a partir da força e, principalmente, justifica a barbárie. O que assistimos no Rio de Janeiro nesta semana foi barbárie. É preciso notar que até os policiais vitimados foram enviados para uma operação de barbárie.

É fundamental estabelecer o seguinte princípio: o Estado não pode, sob nenhuma hipótese, produzir execuções extrajudiciais por meio de suas forças de violência. Isso é a definição de barbárie. É barbárie porque produz desumanização, a degeneração dos valores e legitima a possibilidade de que essa mesma violência ocorra amanhã na casa de qualquer cidadão. Quando se combate a insegurança pela expansão da barbárie, o resultado inevitável é mais violência, mais confronto e a impossibilidade de controle. E, nesse sentido, há de fato um modelo que se reproduz, tal como ocorre em Gaza.

Estamos falando de modelos análogos onde a segurança é o pilar do discurso: lá, o debate sobre segurança nacional foca na “ameaça do Hamas”, justificando a retirada coletiva de direitos de uma população nacionalmente vinculada. Aqui, o debate sobre segurança foca na "ameaça do tráfico", justificando a retirada coletiva de direitos de uma população geograficamente vinculada. Em ambos os casos, discute-se um modelo onde a segurança "de alguns" está no centro do debate, enquanto a insegurança e a exposição à “vida nua” — citando Agamben — são impostas à grande parte da população.

Enquanto esta for a regra, o mundo caminha para uma degeneração de valores e da democracia que leva, inexoravelmente, ao fortalecimento da extrema-direita. Isso acontece em todos os lugares. Quando o discurso dos direitos humanos perde espaço para o discurso da segurança e para perspectivas conspiratórias que produzem inimigos, reais ou imaginários, o resultado é Bolsonaro, é Trump, é Netanyahu.

Professor, em seu observatório sobre as crises da democracia, o senhor investiga a gramática comum da extrema-direita. O senhor mencionou publicamente a existência de uma aliança profunda entre o Hamas e a direita sionista de Netanyahu, estabelecendo uma “lógica de massacres”. Gostaria que o senhor aprofundasse como essa aliança tática — que à primeira vista parece improvável — se retroalimenta. Adicionalmente, de que forma essa lógica é instrumentalizada por grupos de extrema-direita no Brasil para seus próprios fins?

Michel Gherman – É imperativo, neste ponto, contrapor-me à ideia de que o vínculo da extrema-direita brasileira com a bandeira de Israel seja primariamente religioso. Eu proponho que não. A relação profunda entre a extrema-direita brasileira e o sionismo contemporâneo é de natureza ideológica. Ela se fundamenta em uma nova percepção de mundo baseada exclusivamente no discurso da segurança, da segurança nacional e das armas. O que ocorreu no Rio de Janeiro, na Maré e na Penha, ilustra perfeitamente essa transposição. A violência estatal ali praticada produz a percepção de que é possível resolver problemas crônicos de tráfico e violência urbana através de uma guerra de extermínio.

O discurso que justifica o massacre nas favelas cariocas é perpassado pela exata gramática neossionista usada para justificar os ataques a Gaza: a lógica da punição coletiva, a transformação de um território civil em território inimigo e a política de “cortar a grama” (investir continuamente em violência tática, na ausência de qualquer política estratégica de Estado). Não é, portanto, casual que os mesmos políticos brasileiros que apoiaram entusiasticamente o massacre da semana passada no Rio de Janeiro sejam exatamente aqueles que mantêm alianças históricas com Netanyahu e o neossionismo. O paradigma da extrema-direita é, em essência, o paradigma da colonização: armado, violento, neoliberal e profundamente religioso em sua gramática, tal como representado por esta nova ordem israelense.

Permita-me aprofundar esta questão, e ir ao aspecto fundamental: a própria noção de “segurança”, já que você tocou na questão de Netanyahu, portanto, a questão de Israel, passa a produzir e exportar – é a partir da consolidação da ocupação e das Intifadas que Israel (ao mesmo tempo em que fortalecia o Hamas) consolidou-se como um paradigma global: um modelo de ordem armada, colonial e pós-colonial, focado na manutenção da hegemonia militar e política sobre um grupo dominado. Este paradigma — fundamentado nas armas, no controle militar e na ocupação territorial — tornou-se o modelo fundamental para a nova extrema-direita global. Refiro-me à direita que ascende nos anos 1990, pós-Guerra Fria: uma direita branca, armada, neoliberal e que, crucialmente, utiliza a gramática religiosa para seus fins. Este movimento enxerga Israel como um modelo paradigmático justamente por causa da ocupação, da primazia da segurança sobre todos os valores e da ordem mantida pelas armas. O próprio Israel passa a adotar essa gramática, vendendo a ideia de que a superioridade militar hegemônica sobre um povo colonizado é o que garante a paz. Israel torna-se, assim, o paradigma efetivo do novo colonialismo mundial.

O senhor poderia aprofundar mais as questões levantadas na resposta anterior? Penso ser de fundamental importância o pensamento em que articula o paradigma da extrema-direita israelense, notadamente uma espécie de união entre evangélicos e sionistas.

Michel Gherman – Existe um texto importante de Avraham Burg, um filósofo israelense que, à época de sua escrita, também atuava politicamente, tendo sido presidente do Knesset. Desde então, Burg tem se movido muito mais à esquerda e confrontado o sionismo hegemônico e a própria ideia de sionismo. Nessa análise, produzida no início dos anos 1990, Burg examina a relação profunda entre os evangélicos e o sionismo, especificamente a direita sionista. Ele identifica um processo de construção de vínculos entre o sionismo de direita — à época liderado por Netanyahu, então em seu primeiro mandato — e os evangélicos, notadamente os dos Estados Unidos. A tese central é que esses vínculos se baseiam naquilo que Ronilson Pacheco denomina “nacionalismo cristão”. Ocorre, portanto, um deslocamento político no sionismo hegemônico: ele abandona a perspectiva nacionalista tradicional (vinculada a elementos étnicos, culturais e territoriais) em direção a uma nova perspectiva político-religiosa e ideológica.

Burg diagnosticou que Israel deixava de ser um Estado-nação do povo judeu e se transformava num Estado-nação político-ideológico de uma extrema-direita vinculada ao nacionalismo cristão. Politicamente, seria um equívoco vincular este fenômeno exclusivamente à religião, embora ela opere como uma categoria sociológica e política relevante. A religião é um dos elementos que explicam o uso de artefatos sionistas em manifestações de massa. Contudo, esse vínculo entre Netanyahu e os evangélicos vai muito além da dimensão religiosa; ele se direciona, como dito, a uma perspectiva de nacionalismo cristão, fundamentada em três elementos: branquitude, cristianismo (na acepção política) e a guerra cultural. Esses três elementos fundam, na ideia de Israel, um certo significante do Ocidente.

Netanyahu, percebendo o avanço da extrema-direita nos Estados Unidos, propõe-se a desvincular-se da categoria típica do nacionalismo judaico e vincular-se a uma dimensão nova: o nacionalismo cristão, ou seja, um vínculo profundo com categorias sociológicas e ideológicas de uma branquitude ocidental. Neste arranjo, Netanyahu propõe que os judeus não apenas façam parte dessa branquitude, mas que se tornem um modelo paradigmático de sua reprodução. Israel se oferece como paradigma da nova extrema-direita: branca, religiosa, culturalmente ocidental, armada, violenta, neoliberal e profundamente vinculada à missão de ser uma barreira contra o Oriente e a esquerda progressista. Essa é a agenda que Netanyahu propõe, aproximando-se do Partido Republicano e rompendo o vínculo histórico de Israel com o Partido Democrata, o que se consolida nos anos 1990 e se fortalece desde então.

Embora a religião exista como referência, ela não é explicativa da totalidade do fenômeno. Há uma estrutura e uma gramática religiosa, mas o pertencimento a esses grupos de extrema-direita não se dá exclusivamente pela prática religiosa; muito pelo contrário, dá-se por um compromisso político-ideológico. A nova geopolítica que emerge no que chamo de “pós-pós-guerra” — o período que sucede a vitória do Ocidente na Guerra Fria — reconfigura as alianças. Se o “pós-guerra” (pós-1945) fundou-se na vitória do campo democrático sobre o fascismo, o "pós-pós-guerra" (pós-1989) se funda na ideia de que é preciso avançar: a vitória não é mais do campo democrático, mas do campo democrático-liberal-capitalista.

Nesta nova ordem, a antítese da democracia deixa de ser o fascismo e passa a ser a esquerda. É nesse cenário que Israel, sob a estratégia política de Netanyahu, se estabelece como o grande aliado desse novo continente da extrema-direita, que surge reconfigurado, armado de perspectivas conspiracionistas e da ideia de que as armas resolvem problemas sociais.

Outra questão aborda os conceitos de “judeu imaginário” e “Israel imaginária” — esta última descrita pelo senhor como branca, armada, ultracapitalista e cristã —, uma agenda que se revelou central para a compreensão do bolsonarismo. Diante da realidade brutal dos sequestros de civis israelenses em 7 de outubro — um fato inegável que vitimou idosos, crianças e jovens —, questiona-se: esse evento, paradoxalmente, reforça aquela imagem idealizada de Israel dentro da gramática da extrema-direita brasileira? Este ato funcionou como um “tiro pela culatra” para a própria causa palestina? Ou, em contrapartida, o senhor avalia que, não havendo outra forma de agir, esta seria uma ação de legítima defesa?

Michel Gherman – Qualquer defesa da violência como arma revolucionária restringe o debate ao campo puramente moral. No mérito, é claro que não há alternativa a não ser rechaçar ataques a civis, quaisquer que sejam. A estratégia de um grupo como o Hamas — que, reitero, funciona como um aliado de fato da nova hegemonia sionista pós-1967 — acaba, paradoxalmente, por reproduzir e reforçar exatamente a imagem de Israel como paradigma da extrema-direita. É a combinação desse paradigma com a condição de “vítima histórica” do Holocausto que confere a Israel a legitimidade percebida para sua reação. Os eventos de 7 de outubro tiveram, portanto, consequências profundamente contraditórias:

1) A recolocação da pauta: o ato recolocou a questão palestina no mapa central da política internacional.

2) O genocídio legitimado: em contrapartida, produziu um massacre genocida sem precedentes no século XXI, perpetrado por esse mesmo Estado-paradigma da extrema-direita, levando à destruição de Gaza.

3) A síntese (O Status Quo): o elemento crucial, no entanto, é a síntese desses dois pontos. Após todo o processo, o resultado concreto é a manutenção de Netanyahu de um lado, e do Hamas de outro. O Hamas continua sendo a referência de representação em Gaza, e Netanyahu continua sendo a referência em Israel. Diante disso, qualquer análise que busque justificar a violência do Hamas é, em última instância, uma análise romântica, voluntariosa e perigosa.

É preciso investir na política. Para fazer isso, é obrigatório olhar para o outro lado do mapa: a Cisjordânia. É preciso compreender como a política deliberada de Israel nas últimas décadas — tanto sob Netanyahu quanto sob Bennett — foi o silenciamento, o esgotamento e a tentativa de destruição da Autoridade Palestina. Essa estratégia é perigosa, pois intencionalmente deixou como único resultado visível o Hamas: um grupo sem projeto real de libertação, focado numa gramática religiosa da violência, e que, ironicamente, foi financiado e apoiado (seja pelo Catar ou pelos próprios governos israelenses). É preciso superar a lógica polarizada que apresenta apenas Netanyahu e o Hamas como referências.

Existem alternativas, tanto no campo israelense quanto no palestino, mas estas últimas foram sistematicamente silenciadas por Israel, cujo verdadeiro inimigo sempre foi a criação de um Estado Palestino.

Deixe-me ser muito claro sobre o Hamas e seu projeto: embora soe paradoxal, a aliança estabelecida entre o Hamas e a extrema-direita sionista transcende o nível tático. Ela é, em essência, estratégica. O sionismo pós-1967 — notadamente aquele que incorpora de maneira definitiva uma gramática colonial, expansionista e de ocupação territorial efetiva sobre os territórios palestinos — percebeu no Hamas um potencial aliado contra o verdadeiro obstáculo ao seu projeto: o nacionalismo palestino secular. Grupos como o Fatah, a Frente Popular de Libertação da Palestina ou os herdeiros do discurso anticolonial (inspirados, por exemplo, na Guerra da Argélia) representavam a ameaça existencial.

O Hamas, por outro lado, sendo uma versão da Irmandade Muçulmana em Gaza, era visto por esta perspectiva colonial apenas como um grupo religioso. Por não disputar o projeto nacional nos mesmos termos, foi considerado uma ameaça menor e, consequentemente, um ator que deveria ser apoiado para suplantar o nacionalismo laico. Esta lógica foi fortalecida e se tornou central nos governos de Netanyahu, que estabeleceu um discurso focado puramente na “segurança” (seguridade), utilizando a relação com o Hamas para alegar a produção de anos pacíficos. Evidentemente, esta aliança estratégica colapsou em 7 de outubro, quando o aliado funcional se converteu na ameaça imediata.

Professor, o senhor mencionou o ‘judeu imaginário’ como a vítima branca e paradigmática da extrema-direita. O 7 de Outubro, ao vitimar hegemonicamente a esquerda secular israelense — a oposição direta a Netanyahu —, não foi, paradoxalmente, o evento que permitiu o ‘embranquecimento’ final dessa vítima, legitimando assim a resposta genocida em Gaza e consolidando a aliança entre o sionismo de extrema-direita e a ‘civilização judaico-cristã’ global?

Michel Gherman – Gostaria de propor uma análise a partir de um texto, ainda inédito, referente ao testemunho de uma refém israelense sobre a conversa que manteve com Yossi Sharabi, outro refém. É fundamental compreender que estes reféns, hegemonicamente, eram figuras seculares, de esquerda e de oposição a Netanyahu; representavam, de fato, o que restou de uma memória progressista dos kibutz. Naquela conversa, Sharabi sentencia: “Netanyahu não nos libertará nos próximos dez anos, porque ele não nos quer de volta em Israel”.

Para além de um debate geopolítico hiper-estruturalista, que analisa a questão palestino-israelense unicamente a partir dos interesses políticos estritos dos Estados — das “caixas-pretas” desses interesses, para usar um termo tradicional das Relações Internacionais —, é preciso entender que a nova extrema-direita dialoga, discute e vê o mundo a partir de duas outras dimensões. Primeiramente, a partir de interesses vinculados às dimensões sociais internas de cada sociedade; segundo, e mais importante, a partir de interesses transnacionais de grupos que disputam a política internacional com base em identidades políticas, ideológicas e étnico-raciais. Refiro-me a grupos de extrema-direita , ideologicamente vinculados ao fascismo, brancos, e ao que se convencionou chamar de “civilização judaico-cristã” — uma intervenção política de figuras como Olavo de Carvalho.

Estas duas dimensões estabelecem uma estratégia política de atuação que supera a geopolítica tradicional e avança em direção à “guerra cultural”. Esta guerra permite a possibilidade concreta de, a partir de perspectivas conspiracionistas e negacionistas, produzir política internacional. Um exemplo é o recente discurso de Trump sobre uma suposta matança de cristãos na Nigéria, ou o genocídio inexistente de africâneres na África do Sul. A produção de genocídios fictícios apaga a necessidade de um debate fundamental sobre genocídios existentes — no caso, o de Israel contra a população de Gaza e o que ocorre no Sudão.

Esta tática permite mudar o tema, investindo num discurso de guerra ideológica e racial, promovendo uma nova geopolítica: uma geopolítica étnica. Nesse sentido, é preciso entender que, para além do discurso anticolonial tradicional dos anos 70 que nos faria enxergar o Hamas como referência de luta, o que ocorre em 7 de outubro é um ataque do Hamas precisamente contra as populações que representavam a perspectiva contra-hegemônica a Netanyahu dentro de Israel. O Hamas, com esse ato, estabelece vínculos profundos com o "judeu imaginário" — branco, capitalista, forte — como o projeto de mundo para a extrema-direita internacional. Isto justifica não apenas a intervenção genocida em Gaza, mas futuras intervenções, retornando ao paradigma do "judeu imaginário", que é, na verdade, o "judeu-cristão imaginário".

Recorro aqui a Mahmood Mamdani e à ideia de que vítimas não podem ser algozes. O projeto da memória do Holocausto posicionou os judeus como vítimas paradigmáticas do genocídio nazista. Oitenta anos depois, o trabalho sobre essa memória, realizado pela extrema-direita , recoloca os judeus — que foram retirados da Europa e tratados como sub-humanos — como vítimas brancas e europeias. Quando o Hamas os ataca, ele reage, resgata e relaciona essa perspectiva. É crucial notar que ele ataca vítimas de esquerda, num momento em que o próprio governo de Israel também ataca a esquerda israelense. O "judeu imaginário" passa a dirigir a percepção da extrema-direita. Um dos elementos fundamentais deste conceito, sobre o qual tenho falado pouco, mas que começo a discutir agora, é o embranquecimento do judeu, transformando-o na vítima branca paradigmática.

Se a extrema-direita internacional, até os anos 1980, negava o Holocausto, a extrema-direita atual nega o genocídio (em Gaza), mas afirma o Holocausto. O Holocausto passa a ser explicado não pela estrutura que o produziu, mas pelas vítimas que produziu: ele deixa de ser visto como genocídio e passa a ser visto como sacrifício. Nega-se o genocídio; afirma-se o sacrifício.

Professor, o senhor poderia elaborar um pouco mais sobre o contexto diplomático que mencionou? Como o avanço do ‘Acordo do Século’ com a Arábia Saudita impactou o cálculo estratégico do Hamas, levando à antecipação dos eventos de 7 de Outubro?

Michel Gherman – Eu acredito que um dos elementos fundamentais que produziu o 7 de Outubro, para além de outros fatores, como a própria natureza do Hamas ou a percepção colonial de Israel, que via Gaza como controlada por um “agente colonial” do sionismo e, portanto, não enxergava ali uma ameaça efetiva, foi o avanço da negociação com a Arábia Saudita. O “Acordo do Século” avançava em direção a Riad como elemento central.

Diferente do Catar, a Arábia Saudita enxerga o Hamas como um adversário. O Hamas, por sua vez, alinhado ao “eixo da resistência”, via o governo saudita como um adversário desse projeto. Nesse sentido, analistas sérios propõem que o iminente acordo com a Arábia Saudita foi um dos elementos que antecipou o ataque. O ataque provavelmente ocorreria de qualquer forma, por motivações simbólicas, religiosas e identitárias do Hamas — existem documentos importantes, injustificavelmente ignorados pelo serviço secreto israelense, que falavam sobre o ataque —, mas a possibilidade do acordo acelerou o cronograma. O acordo saudita não apenas colocaria a questão palestina em terceiro ou quarto plano — o que, em si, pouco incomodaria o Hamas —, mas, crucialmente, tirava o Hamas do jogo.

A Arábia Saudita utilizou seus interesses internos para não reconhecer o Hamas como uma alternativa concreta. Neste sentido, o Hamas foi traído pela Arábia Saudita e foi traído por Netanyahu. A alternativa percebida foi antecipar o 7 de Outubro. O segundo ponto é que a única alternativa concreta que ainda temos é a criação de dois Estados. Ela é tão concreta que o governo de Israel tenta ativamente evitar que ela aconteça; a construção de colônias nos territórios ocupados é uma tentativa de inviabilizar essa solução. Isso não ocorreria se não fosse possível. Evidentemente, quanto mais o tempo passa, mais a colonização avança e mais o Hamas se fortalece, mais a solução de dois Estados se torna inviável — o que inviabiliza, também, a construção do Estado Palestino. Estrategicamente, essa solução sequer é suficiente. Precisamos caminhar para uma confederação palestino-israelense naquele território.

Contudo, para que as condições de tal confederação sejam possíveis, é preciso um acordo de paz que hoje se baseia em dois Estados no horizonte — a partir dos marcos do Acordo de Genebra, que propõe a capital em Jerusalém para ambos os Estados e o reconhecimento da Nakba. Há, também, a alternativa de uma “pátria para dois povos”, que tem se consolidado. Veja bem, todas essas opções operam no campo das perspectivas nacionais. O que não se pode, neste momento, é negar a existência nacional do povo judeu ou a existência nacional do povo palestino. A extrema-direita nega a nação palestina, tratando-a como uma invenção conspiratória; um certo setor sectário da esquerda faz o mesmo exercício com o povo judeu, tratando-o apenas como religião. O não reconhecimento do direito nacional de ambos os povos é uma aposta na explosão de violência.

É preciso reconhecer o direito nacional dos povos e avançar em uma dessas opções. Agora, o que é trágico é que não vemos no horizonte a interrupção imediata das colônias nos territórios ocupados. Vemos o contrário: o aumento da violência dos colonos e o aumento da colonização. Se nada for feito imediatamente, a construção do Estado Palestino será inviabilizada, e isso será uma aposta na violência.

Professor, analisando o episódio que o vitimou há dois anos na PUC-Rio, com grande repercussão nacional, uma turba de dentro e de fora da Universidade tentou calá-lo à força, tentou impedir o exercício da sua liberdade de cátedra, pensamento e expressão, enquanto o senhor, justamente, analisava os acontecimentos em Israel. Passados dois anos, como avalia a situação?

Michel Gherman – Sobre o episódio na PUC, a primeira questão refere-se à identidade das pessoas que realizaram não um protesto, mas a interrupção de um professor no ato de um debate acadêmico. Estamos falando de dois anos após aquele evento, que ocorreu na semana seguinte ao 7 de Outubro, num dia em que eu vivia uma situação pessoal difícil, tendo recebido a informação de sequestros de conhecidos. Dois anos depois, minha voz continua sendo escutada; continuo sendo um analista, mais ou menos reconhecido na mídia e na academia. Aquela turba — pois creio que "turba" é o nome correto — desapareceu. Um dos elementos do fascismo é precisamente a percepção de que é uma massa, uma turba sem rosto e sem nome, que enfrenta seus supostos inimigos. Fui alvo, sem sombra de dúvida, porque o alvo era a liberdade acadêmica e de cátedra.

O que vemos hoje nos Estados Unidos, o ataque às universidades, é o que se tentou fazer ali: uma perspectiva anti-intelectual e odiosa, que visa calar e silenciar. A escolha por me silenciar teve a ver justamente com este lugar: o lugar de um intelectual que, embora tenha vínculos profundos com Israel, que tenha perdido pessoas no 7 de Outubro e que perceba o Hamas como um grupo terrorista, também define o governo Netanyahu como fascista. O fascismo e aquela turba fascista desejam a simplificação; têm horror a perspectivas reflexivas e complexas.

Recorro à análise de Moishe Postone sobre o antissemitismo: a extrema-direita se reproduz numa rebelião contravalores abstratos e complexos. Ela tem tesão pela simplicidade no pior sentido do termo; tem medo de que o mundo concreto desapareça. É impossível debater quando alguém produz uma reflexão baseada em perspectivas abstratas. Aquelas figuras, cujo nome não temos e cujo rosto não reconheço, tinham o olhar do fascista voltado para sua futura vítima; aquela turba tinha como compromisso o silenciamento de ideias complexas. Se aquela turba se perdeu na fumaça da história, na insignificância, enquanto o genocídio em Gaza continua e Netanyahu insiste em não negociar e em matar os próprios reféns — e não sou eu quem o diz, mas parte considerável da estrutura de segurança de Israel —, outro ponto é fundamental.

Você faz esta pergunta justamente na semana em que a professora Jaqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que tem denunciado o massacre promovido pela polícia militar contra o Complexo da Penha, é também perseguida por figuras ligadas ao bolsonarismo e à extrema-direita brasileira. As mesmas figuras que hoje a perseguem, me perseguiam há dois anos, isto não é casual.

Os mesmos que produziram aquela cena grotesca na PUC-Rio são os mesmos envolvidos na tentativa de silenciamento de uma intelectual especializada em segurança pública. Fascistas funcionam como turba. Para reagir e vencê-los, é preciso ser estratégico. O silenciamento de intelectuais é um dos elementos do fascismo, e é preciso olhar o fascismo no olho. Hoje, é preciso que a professora Jaqueline Muniz receba o apoio da sociedade civil, da mídia e dos intelectuais, tal como eu recebi. Naquela ocasião, o apoio que recebi reverteu a ideia e silenciou a turba. Hoje, é preciso que a turba seja novamente silenciada.

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