Baseado nos eixos fundamentais do mito da decisão, a crítica da democracia, o valor reconhecido às hierarquias “naturais” e a retórica da violência, o fascismo contemporâneo é tecnocrático, aceleracionista, utópico e quer radicalizar o programa neoliberal
Se na década de 1930 a preservação da raça, da tradição e do solo pátrio compunham o horizonte do fascismo, a forma atual desse autoritarismo quer tão somente destruir e “fugir com o butim, em nome de uma concepção puramente oligárquica das relações de poder”. A afirmação é do filósofo italiano Sandro Chignola na entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Guardados os contextos diferentes, o fascismo de hoje tem no ódio à esquerda apenas uma “evocação retórica”, pois se for possível fazer negócios, acordos são possíveis. “Devemos partir do pressuposto de que o fascismo não é um arquétipo, uma constante trans-histórica cujas características definidoras podem ser analisadas de uma vez por todas, mas o fascismo, particularmente o do século XX, é um protótipo, um modelo ou um tipo de intervenção na crise econômica e na ruptura dos mecanismos de acumulação do capital, destinado a ser desenvolvido em novas direções e em relação a finalidades diferentes”, diz.
Esse fascismo que se reinventa, se rearticula e segue operativo “é o nome que podemos usar como substituto para uma série de políticas voltadas a estabilizar as crises de acumulação de capital e, particularmente hoje, a radicalizar os mecanismos de seleção utilizados pelo mercado. Foucault foi um dos primeiros a analisar os dispositivos de implementação e de otimização das estratégias de empreendedorização da subjetividade. E, se toda a vida dos sujeitos é entendida como valorização do próprio capital, é bastante óbvio que os ‘perdedores’ na feroz competição pela valorização do capital que têm à sua disposição sejam entendidos como expulsos dela ou como meros descartes. A direita simplesmente acredita que, quando a competição se torna uma questão de vida ou morte, a eliminação do concorrente ou a defesa radical dos próprios privilégios é uma opção válida em si mesma”, observa Chignola. E acrescenta: “A dimensão pós-representativa da política contemporânea – sem equilíbrio democrático, sem reconhecimento das razões do adversário, sem compromisso, para usar as palavras de Schmitt – aguça essa tendência a considerar a eleição uma mera investidura. Parece-me que o novo autoritarismo expressa essas características pós-políticas e governamentais”.
Sandro Chignola (Foto: Arquivo pessoal)
Sandro Chignola é professor de Filosofia Política no Departamento de Filosofia, Sociologia, Pedagogia e Psicologia Aplicada na Università Degli Studi di Padova, Itália. É autor, entre outras obras, de História de los conceptos y filosofia política (Madri: Biblioteca Nueva, 2010). O artigo “Sobre o dispositivo. Foucault, Agamben, Deleuze”, de sua autoria, foi publicado por Cadernos IHU ideias, nº. 214, como também o artigo “A vida, o trabalho, a linguagem. Biopolítica e biocapitalismo”, Cadernos IHU ideias, no. 228. Em 06-11-2025
Chignola ministrará a conferência “O fascismo que se reinventa e se transfigura”, dia 06 de novembro, às 14h, dentro da programação do XXII Simpósio Internacional “A extrema-direita e os novos autoritarismos. Ameaças à democracia liberal”, promovido em parceria pelo IHU e pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Unisinos. O evento ocorre de forma híbrida.
IHU – Com base no pensamento de Carl Schmitt (1) e de Michel Foucault (2), autores que estão no centro de seu atual programa de ensino na UNIPD para este ano acadêmico, como você analisa o cenário político europeu?
Sandro Chignola – Os objetivos dos cursos em que leciono na Universidade de Pádua são pelo menos três. O primeiro é a genealogia das estruturas de soberania e a identificação de suas crises. Schmitt e Foucault me interessam, e estou certo de que seus estudos também sejam muito úteis para as estudantes e os estudantes, como polos de rotação da transformação das estruturas de soberania em estruturas de governança, que sustentaram o equilíbrio da fase progressiva da globalização pelo menos até à crise de 2008.
De um lado, Schmitt, e em particular o Schmitt intérprete de Hobbes (3) e analista de seu papel epocal que a teoria hobbesiana da soberania assume em relação ao pensamento político que o precedeu e em relação ao direito constitucional moderno; de outro, Foucault como teórico do nó “demoníaco”, como ele o define, que une soberania e dispositivos de governamentalidade, e como leitor atento, em um tempo no qual quase ninguém fazia isto, dos autores do ordoliberalismo alemão e do neoliberalismo estadunidense. A estrutura institucional da União Europeia, tanto pelas políticas econômicas quanto pelas estruturas jurídicas que as implementam, é moldada diretamente por teorias ordoliberais.
Também leciono um segundo curso de História da Filosofia Política, no qual essa mesma abordagem do problema é tratada por meio da análise textual de autores franceses do século XIX: de um lado, Sieyès e Maistre – provocativamente, mas não tanto: a Revolução Francesa é o efeito de verdade da teoria hobbesiana – e, de outro, Guizot e Tocqueville, particularmente este último, como teóricos de uma ambivalente teoria da governamentalidade. O segundo objetivo diz respeito à reconstrução da história dos conceitos políticos, e em particular daqueles fundamentais para a história do Estado moderno. Não existem universais históricos, e a história é feita da emergência de formas conceituais que permitem o estabelecimento de lógicas políticas particulares e de fórmulas institucionais determinadas. Assim como elas emergem, elas também desaparecem. Ou pelo menos perdem a centralidade que assumiram historicamente. Desse ponto de vista, Hobbes – como aquele velho nazista Carl Schmitt compreende perfeitamente – é o teórico do nexo entre representação e soberania, que, por meio do monopólio da violência e da personificação da unidade do povo, organiza o sistema constitucional do Estado-nação moderno e o marco do direito internacional moderno.
Ambas as fórmulas estão há muito tempo em profunda crise: de um lado, democracias, ou democraturas, pós-representativas; de outro, relações internacionais realimentadas por políticas imperiais multilaterais e pós-hegemônicas que evitam qualquer forma de controle jurídico ou democrático. Não sou capaz ou, melhor, me recuso a fazer previsões: raciocino com os pés firmemente plantados no presente. Não acredito que seja possível olhar para um passado que salva – como o Angelus novus, de Benjamin (4), olhando para trás, só se veem ruínas –, mas também não acredito que seja possível antever a direção que as coisas estão tomando ou julgá-las em nome de um universal da razão que, creio eu, nunca existiu, dado que, mesmo nos momentos mais altos de sua elaboração, nunca foi capaz de tematizar, ou de se livrar, de suas implicações coloniais ou de classe. Permanecer com os pés bem firmes no presente significa valorizar a análise materialista dos processos.
O terceiro objetivo é tentar tematizar, com Foucault, a possibilidade de uma política dos governados. Como argumento em meu livro, que está sendo publicado nestes dias no Brasil, aliás [Foucault e a política dos governados (trad. Augusto Jobim do Amaral (Cord.), Evandro Pontel, André Rocha Sampaio e José Luís Ferraro. São Paulo: Sobinfluência Edições, 2025). São os governados, não os cidadãos abstratos, não o povo, cuja unidade política é uma mera convenção conceitual, mas sim os governados – as mulheres governadas pela autoridade patriarcal; os migrantes, cujas vidas são impactadas pelos dispositivos de vigilância e de controle e pelos mecanismos administrativos; aquelas pessoas que vivem em territórios ameaçados por políticas ambientais catastróficas; os habitantes radicados em territórios afetados por decisões administrativas sobre as quais eles não têm voz –, aquelas pessoas que podem politizar, dentro da relação de governo, sua posição e subjetivá-la diante de quem detém e exerce o poder. Não se trata de uma delegação a quem tem o poder e o exerce em nome de todos, mas sim da participação direta em uma relação de governo que é constantemente resistida precisamente porque sua matriz é inequivocamente dual, opondo quem governa e quem é governado. Na Europa, é claro, mas também fora dela.
De um lado, o fortalecimento da direita, que, de modo totalmente paradoxal, evoca o caráter democrático de sua investidura, já que vence ou pode vencer as eleições, apesar da constante queda do número de eleitores e da evidente desconfiança nos mecanismos de representação; de outro, a resistência dos governados a serem englobados na unidade nacional que a direita, ou outras formações políticas, deveriam representar. Além disso, quando falamos de Europa, não tenho a mínima ideia do que ela seja, dada a crise das alianças induzidas pela segunda eleição de Trump; as rivalidades intraeuropeias determinadas (também) pela forte influência russa em alguns de seus componentes; a incapacidade – ou, pior, a absoluta falta de vontade – de valorizar o tecido social europeu.
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IHU – Como esses autores, baseados em filosofias políticas tão diferentes, nos ajudam a refletir sobre o renascimento do autoritarismo, particularmente o da extrema-direita?
Sandro Chignola – Acredito ter respondido em parte a essa pergunta acima. Para ser mais específico, e com a devida ênfase no aspecto descontínuo dos marcos conceituais, acredito que devemos partir do pressuposto de que o fascismo não é um arquétipo, uma constante trans-histórica cujas características definidoras podem ser analisadas de uma vez por todas, mas o fascismo, particularmente o do século XX, é um protótipo, um modelo ou um tipo de intervenção na crise econômica e na ruptura dos mecanismos de acumulação do capital, destinado a ser desenvolvido em novas direções e em relação a finalidades diferentes. Digo isso porque, particularmente na Itália, onde eu vivo, há a tentação constante de denunciar a continuidade entre o pessoal político do governo Meloni e o fascismo histórico ou, pelo menos, o fascismo do pós-guerra, que historicamente se cruzou com as políticas anticomunistas desenvolvidas, inclusive com o uso da violência terrorista, pelos Estados Unidos no âmbito da Aliança Atlântica [OTAN].
O fascismo se reinventa; ou, melhor, é o nome que podemos usar como substituto para uma série de políticas voltadas a estabilizar as crises de acumulação de capital e, particularmente hoje, a radicalizar os mecanismos de seleção utilizados pelo mercado. Foucault foi um dos primeiros a analisar os dispositivos de implementação e de otimização das estratégias de empreendedorização da subjetividade. E, se toda a vida dos sujeitos é entendida como valorização do próprio capital, é bastante óbvio que os “perdedores” na feroz competição pela valorização do capital que têm à sua disposição sejam entendidos como expulsos dela ou como meros descartes. A direita simplesmente acredita que, quando a competição se torna uma questão de vida ou morte, a eliminação do concorrente ou a defesa radical dos próprios privilégios é uma opção válida em si mesma. A dimensão pós-representativa da política contemporânea – sem equilíbrio democrático, sem reconhecimento das razões do adversário, sem compromisso, para usar as palavras de Schmitt – aguça essa tendência a considerar a eleição uma mera investidura. Parece-me que o novo autoritarismo expressa essas características pós-políticas e governamentais.
A eleição, porém, instala, no lugar da decisão, uma decisão que não é tanto soberana, mas sim governamental, administrativa, gerencial. Na qual, mais que um autêntico planejamento político, o que está em jogo é a divisão de recursos entre os próprios seguidores e a troca entre interesses privados. O caso do círculo íntimo de Trump e dos acordos que ele conseguiu fazer, acumulando poder e riqueza nestes primeiros meses do seu segundo mandato, me parece totalmente emblemático. Parece-me que o autoritarismo serve para iludir os próprios eleitores, dispostos a apostar no poder da decisão e a capitalizar sobre seus posicionamentos.
IHU – Nesse contexto, como podemos entender o programa de rearmamento da Europa e o alinhamento de vários países com as políticas de Donald Trump?
Sandro Chignola – A desconstrução do direito internacional é um efeito das tensões multipolares que assolam o globo. Parece-me que podemos dizer que, há pelo menos algumas décadas, entramos em uma fase de declínio da hegemonia estadunidense, sem que, como já ocorreu em outras ocasiões, se anuncie uma potência emergente destinada a assumir o papel de nova potência hegemônica. Desse ponto de vista, a situação me parece caótica e extremamente perigosa. De um lado, há a silenciosa expansão do soft power chinês e a expansão mais feroz de alguns de seus proxies (sem o apoio econômico da China a Putin, a guerra na Ucrânia provavelmente já teria terminado); de outro, o crescimento exponencial de economias, particularmente no subcontinente indiano, que põem em crise a centralidade do dólar como moeda de referência para as trocas internacionais.
O rearmamento europeu é imposto pela crise da aliança atlântica – a retirada estadunidense é evidente, em vista da competição direta com a China – e pelas políticas chantagistas do governo Trump, que exige a compra de armas para reequilibrar a desastrosa política orçamentária estadunidense. Não creio que se possa dizer que esteja ocorrendo um realinhamento às políticas de Trump, pelo menos porque não me parece autoevidente traçar nelas uma lógica que não seja a de uma abrupta divisão das zonas de influência entre potências voltadas a dividirem aquilo que, novamente, Carl Schmitt chamava de “grandes espaços”. Não há nenhum interesse propriamente europeu, assim como não há nenhuma potência europeia capaz de responder imediatamente a esses novos desafios. Sem dúvida, há um avanço dramático da direita em muitos países europeus, que imitam a ordem do discurso MAGA – uma resposta bastante simplificada à crise da globalização –, e esse avanço é também o que nos impede de pensar com lucidez em uma política europeia unívoca. Por exemplo, certamente não sou um entusiasta das políticas de rearmamento defendidas na Alemanha e na França, com o AfD em um crescimento tumultuado (de fato, é o segundo maior partido alemão, creditado com mais de 20% dos votos) ou com o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen, que corre o risco de conquistar a presidência na França.
A Europa está em uma crise de identidade total, e uma prova disso é a sua absoluta incapacidade de manter a herança de sua tradição democrática, de defender o Estado de Direito ou de sustentar suas próprias decisões em questões de política ambiental. Não está nada claro como a situação evoluirá. Pessoalmente, não vejo um futuro promissor, pelo contrário, e se realmente não podemos resistir a um olhar retrospectivo, uma situação semelhante à atual me parece ser aquela entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais. Sem sequer um Lênin no horizonte, no entanto.
IHU – Em que sentido podemos dizer que o fascismo se reinventa e se transforma, seja na Europa, seja nos Estados Unidos ou mesmo no Brasil?
Sandro Chignola – Eu falava sobre o caráter prototípico do fascismo. Ele se transforma constantemente, embora girando e se concentrando em alguns eixos fundamentais: o mito da decisão, a crítica da democracia, o valor reconhecido às hierarquias “naturais”, a retórica da violência. No entanto, não me parece que a situação que estamos vivendo – na Europa, nos Estados Unidos ou na América Latina – seja sequer remotamente a mesma da conjuntura dos anos 1920 aos anos 1960. O fascismo contemporâneo é tecnocrático, aceleracionista, utópico, mas, acima de tudo, parece-me, voltado a radicalizar as propostas mais ousadas do programa neoliberal. Ele chama de liberdade a “libertação” de qualquer constrangimento coletivo e de qualquer freio ou limite imposto pela necessidade de cooperação. O ódio à esquerda é pura evocação retórica, mas não há inimigo com o qual não se possa chegar a um acordo para fazer negócios. A era da contraposição em torno do Muro de Berlim acabou definitivamente. É assim que Milei, por exemplo, pode questionar a memória coletiva dos anos da ditadura, polemizar ininterruptamente com os “zurdos” e, ao mesmo tempo, pensar em legalizar, em nome da liberdade de mercado, a venda de órgãos.
Da mesma forma, Bolsonaro pode falar de “pátria, família e liberdade” e, ao mesmo tempo, atacar o programa Bolsa Família ou defender quem desmata a Amazônia e destrói o ambiente. O fascismo que enfrentamos é novo, até porque é apoiado por quem tem tudo a perder, mesmo no que diz respeito a direitos, ao trabalho ou à dignidade. Além disso, os ambientes mais radicais do fascismo tecnocrático californiano pensam na colonização de outros planetas e em abandonar este – o único que temos – à sua própria sorte. O fascismo da década de 1930 visava a preservar (a raça, a tradição, o solo pátrio...); o atual pensa apenas em destruir e em fugir com o butim, em nome de uma concepção puramente oligárquica das relações de poder.
IHU – O conceito de soberania (juntamente com o expediente da exceção jurídica) nunca desapareceu do arcabouço institucional das democracias liberais ocidentais. O que isso indica sobre os limites e possibilidades desse sistema político?
Sandro Chignola – Essa é uma questão complexa. É preciso definir o que se entende por soberania. Como conceito jurídico, ele define seu próprio território de exercício e é inventado como dispositivo para o uso legítimo da força contra os inimigos internos e externos do povo, que a exerce por meio de seus representantes. Soberania significa direito de decisão última e impossibilidade de racionalizar a natureza demoníaca do poder. Não por acaso, Carl Schmitt, novamente ele, fala de um núcleo teológico da política, ou seja, a absoluta impossibilidade de tornar o exercício do poder transparente ou plano, tornando-o “razoável”. Parece-me que, há pelo menos duas décadas, essa excedência do poder, com seu efeito de separação e de subordinação da economia e dos interesses privados ao público, está profundamente em crise. Não há soberano, mas sim uma hibridização e uma convergência contraditória entre economia e política, entre lógicas empresariais e fórmulas de comando.
Se eu tivesse que encontrar uma expressão que nos ajudasse a entender, parece-me que os dispositivos de poder contemporâneos, mais do que ao conceito de soberania, remetem ao de oligarquia, no qual o entrelaçamento entre poder econômico e exercício de funções políticas sempre foi imediato. Globalização e tecnologias digitais para a financeirização da economia não apenas implodiram o marco clássico da soberania, mas também transferiram o poder ou os poderes para além dos Estados nacionais individuais e do perímetro da constituição. Foucault me ajudou pessoalmente a entender como a Forma-Estado que conhecemos ainda é tão pouco útil para nos referirmos à política: o Estado se tornou o lugar de territorialização dos fluxos financeiros (que podem se beneficiar de condições fiscais específicas, de mão de obra de baixo custo e de proteções sindicais limitadas ou situações particularmente favoráveis devido a proteções ambientais limitadas) e um dispositivo para filtrar as migrações, garantindo, justamente por manter os migrantes na ilegalidade ou em condições de absoluta possibilidade de chantagem, volumes de trabalho ilegal e precário necessários para manter em alta a produção de valor. Soberanas são as fronteiras, é claro: para homens e mulheres que buscam uma vida melhor, mas certamente não para o capital e as operações que elas tornam possíveis.
IHU – Segundo dados do governo italiano, cerca de 2 mil imigrantes desembarcaram na Itália nos primeiros 15 dias de agosto. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), desde o início de 2025 um total de 675 pessoas morreram no Mediterrâneo central, principalmente na costa da Itália. Ciente desse cenário catastrófico, o ministro da Infraestrutura e dos Transportes, Matteo Salvini, define como “extremistas da acolhida” todas as ONGs que navegam pelo Mediterrâneo com suas embarcações na tentativa de salvar os migrantes. Com base na experiência da Mediterranea Save Humans, que análise faz do tipo de política migratória atualmente em vigor na Itália?
Sandro Chignola – Respondi um pouco acima, mas gostaria de acrescentar algumas coisas. A primeira é que a emergência migratória levantada pela direita na Europa é um puro exercício retórico para a captura de eleitores. É claro que o Mediterrâneo se tornou um imenso cemitério. Mas a maioria dos migrantes entra na Itália com um visto turístico que depois deixa expirar, permanecendo invisível no território, onde se encontra trabalhando em condições de exploração extrema. É absolutamente meritório – e não tenho nenhuma dificuldade em dizer que sou totalmente cúmplice e solidário com as ONGs que trabalham para salvar vidas no mar – o trabalho da Mediterranea e das outras organizações da sociedade civil, nascidas em grande parte de processos autônomos de movimento, que desafiam os dispositivos de militarização das fronteiras. E mais: a gestão das migrações nas últimas décadas – na Itália, mas não só – levou a uma externalização das fronteiras e a uma espécie de constitucionalização das milícias líbias, sinalizando mais uma vez o transbordamento do Estado e a hibridização entre os poderes públicos e privados.
A vergonhosa devolução de Njeem Osama Almasri aos seus negócios na Líbia pelo governo Meloni é extremamente sintomático nesse sentido: um criminoso conhecido pelas suas ações e sobre o qual paira um mandado de prisão internacional foi levado de volta à Líbia em um voo de Estado para que possa continuar executando as tarefas assassinas que a Itália lhe confia contra mulheres e homens em trânsito para a Europa. Além da indignação, que não serve para nada na política, parece-me que mesmo um caso como esse é absolutamente indicativo da imbricação entre interesses políticos, econômicos e banalmente, baixamente eleitorais que caracteriza esta fase da política italiana e europeia.
IHU – Cinquenta anos após a publicação de Vigiar e Punir, como essa obra se renova e nos inspira a considerar novas formas de liberdade, de resistência e de contraconduta?
Sandro Chignola – Vigiar e Punir é um livro sobre o outro lado dos dispositivos de juridificação do poder entre os séculos XVII e XVIII. A parte conhecida, escrita na história gloriosa da filosofia política, diz respeito às teorias de Hobbes, Rousseau (5), dos Iluministas, e diz respeito à produção do sujeito de direito como assujeitado à forma da lei. O outro lado diz respeito aos saberes dos especialistas em treinamento militar, de educadores e de censores anônimos dos comportamentos, e diz respeito à produção do sujeito como um corpo dócil e útil. Dispositivo de soberania e dispositivo disciplinar se interligam, e provavelmente Foucault está fazendo, entre outras coisas e na metade dos anos 1970, uma genealogia dos dispositivos fordistas de acumulação, vistos do lado da produção da subjetividade. É como se, em sintonia com os historiadores sociais ingleses, ele estivesse reescrevendo partes do primeiro livro de O Capital.
Para mim, no entanto, é central um ponto-chave na analítica do poder de Foucault, isto é, que a resistência vem antes do poder. Desse ponto de vista, é central a heterogênese dos fins produzida pelo fracasso do “serviço de patíbulo” que a multidão deveria assegurar, assistindo em silenciosa contemplação o poder desmedido do soberano, desde as primeiras páginas do livro. Bernard Mandeville, um autor que Foucault não cita, é extremamente claro, em um panfleto seu de 1726, ao denunciar que as execuções capitais, na realidade, eram uma oportunidade extremamente favorável à proliferação do crime: prostituição, furto, desafio à autoridade. A resistência é o que as tecnologias do poder tentam constante e infrutiferamente reduzir, comprimir, limitar. Acredito que essa abordagem do problema do poder em Foucault, em Vigiar e Punir, mas também em toda a sua obra a partir dos anos 1970, é extremamente útil para compreender – e, para Foucault, compreender sempre significa tomar posição – o funcionamento dos jogos de poder. O novo autoritarismo, se assim o quisermos chamar, é o sintoma neurótico do poder das lutas feministas, precárias e ambientais dos últimos anos...
IHU – Novas técnicas de vigilância foram consolidadas pelo império das Big Techs. Além disso, essas empresas estão por trás das reivindicações estadunidenses sobre as terras raras em diversos contextos (como Ucrânia e Brasil). Como essa vigilância algorítmica problematiza a democracia?
Sandro Chignola – Eu temo que a democracia, se não a entendermos como Etienne Balibar o fez, como a constante reabertura do problema da liberdade e da igualdade, e se a reduzirmos a uma mera estrutura institucional, não goza de uma boa saúde. O novo fascismo é tecnocrático, e o capitalismo de vigilância, como Shoshana Zuboff o definiu, encontra nele um instrumento de absoluta utilidade. O fato de as Big Techs californianas terem decidido apostar em Trump é extremamente sintomático. Autoritarismo e monopólio de dados andam de mãos dadas, tanto para assegurar o controle quanto para incrementar o valor.
Como frequentemente acontece, é o uso militar da tecnologia que determina a inovação, e a fase de guerra que se iniciou favorece a expansão de ambas as lógicas. E não só: a reinvenção contemporânea do fascismo não evita, mas acompanha e radicaliza a economia dos fluxos e seu governo. Os dados muitas vezes não são apenas ou principalmente os nossos dados pessoais, mas o rastro que se compõe e se recompõe por meio da análise de fluxos, pixels, fragmentos. O novo fascismo – se a nossa era, como dizia Foucault, é a era da governamentalidade – não pode deixar de governar tendências, perfilar processos, orientar equilíbrios móveis. O fato de esses equilíbrios também serem feitos de seres vivos, de mulheres e de homens de carne e osso, pouco importa aos oligarcas e aos poderosos. Para eles, a democracia, que eles já reivindicam desavergonhadamente, é totalmente antieconômica e lenta demais para o cálculo de eficiência do qual dependem a produção e a acumulação de valor. Cabe a nós inventar uma forma de romper esse mecanismo.
IHU – Ao contrário do Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial, o genocídio de Gaza está sendo transmitido ao vivo para os quatro cantos do mundo. Em que sentido a construção do palestino como inimigo do Ocidente e a tanatopolítica como técnica de governo estão na base das ações israelenses e do apoio dos Estados Unidos?
Sandro Chignola – Sobre isso, não tenho muito a dizer. A necropolítica é a parte removida da história ocidental e remonta a toda a história do colonialismo, com a qual a Europa continua se recusando a fazer as contas. Israel talvez seja a última potência colonial e atualmente é governada por uma maioria de extremistas e místicos que creem na terra prometida e que prolongam as lógicas de apartheid que persiste na Palestina há décadas. Acredito que o que está acontecendo, em meio ao vergonhoso silêncio dos países ocidentais, faz parte de um reordenamento muito mais complexo das redes logísticas do capitalismo global.
A Bíblia serve para encobrir os interesses envolvidos no projeto do India–Middle East–Europe Corridor (IMEC), um projeto para conectar o mercado indiano à Europa por meio de rotas marítimas e terrestres que atravessam o Oriente Médio, tendo Israel como um polo estratégico graças aos seus portos de Haifa e Ashdod. O IMEC representa uma alternativa à Iniciativa Cinturão e Rota, da China, visando a promover a conectividade regional e a facilitar o comércio global. Há esse materialíssimo interesse geopolítico global, em grande parte promovido pelos Estados Unidos em função antichinesa, na base da reestruturação política e geográfica do Oriente Médio. Exterminar os palestinos como premissa para a realização desse projeto é evidentemente um preço que aqueles que estão no governo de Israel – é preciso sempre lembrar: uma parte limitada do povo israelense, que conta com muitíssimos opositores às políticas de Netanyahu – pretendem razoavelmente pagar, já que, apesar do genocídio em curso, nenhuma potência mundial pretende impor sanções ou excluir Israel da política internacional.
Em Gaza, reaflora o elemento reprimido da história ocidental, sobre o qual ninguém na Europa pode se dizer inocente. E, embora todos pareçam se calar, pelo menos no âmbito da diplomacia e das relações internacionais, a mobilização, no entanto, está crescendo. A Global Sumud Flotilla se lançou às águas; um novo internacionalismo está sendo fundado e reinventado a partir de baixo. Este, sim, capaz de fazer as contas com as partes mais sombrias da história: tanto as do passado quanto as do presente. Trata-se de construir pontes, alianças, estratégias capazes de impactar globalmente, porque a agenda dos problemas políticos e sociais é global e porque parece totalmente inútil, na minha opinião, abordar processos globais confiando nas alavancas estatais e nacionais. Trata-se de inventar um novo internacionalismo: de impor a paz e de travar guerra contra a guerra. De promover a liberdade e a igualdade para todos e para todas. Onde o perigo é máximo, aí também cresce a salvação, escrevia Hölderlin em Patmos. Acho que podemos retomá-lo como conclusão.
(1) Carl Schmitt (1888-1985): filósofo, jurista e teórico político alemão. Membro proeminente do Partido Nazista, é considerado um dos mais significativos e controversos especialistas em direito constitucional e internacional do século XX. Para além dos campos do direito, sua obra abrange outros campos de estudo, como ciência política, sociologia, teologia, filosofia política e germânica. De sua extensa produção, destacamos A ditadura, O conceito do político e Teologia política.
(2) Michel Foucault (1926-1984): filósofo, historiador das ideias, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no célebre Collège de France, de 1970 até 1984 (ano da sua morte). Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Seu pensamento foi muito influente tanto para grupos acadêmicos, quanto para ativistas. Sobre seu pensamento confira as seguintes edições da Revista IHU On-Line: Edição 466, de 01-06-2015: Michel Foucault, o cuidado de si e o governo de si (enkrateia); Edição 335, de 28-06-2010, Corpo e sexualidade. A contribuição de Michel Foucault; Edição 203, de 06-11-2006, Michel Foucault, 80 anos, e Edição 119, de 18-10-2004, Michael Foucault e as urgências da atualidade. 20 anos depois.
(3) Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês, mais conhecido por seu livro de 1651 intitulado Leviatã, no qual ele expõe uma formulação influente da teoria do contrato social. É considerado um dos fundadores da filosofia política moderna. Influenciado por ideias científicas contemporâneas, desejava que sua teoria política fosse um sistema quase geométrico, em que as conclusões decorressem inevitavelmente das premissas. A principal conclusão prática de sua teoria política é que um Estado ou sociedade não pode ser seguro a menos que esteja nas mãos de um soberano absoluto. Disso decorre a visão de que nenhum indivíduo pode ter direitos de propriedade contra o soberano, e que o soberano pode, portanto, tomar os bens de seus súditos sem seu consentimento.
(4) Walter Benjamin (1892-1940): ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo judeu alemão. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi fortemente inspirado tanto por autores marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo místico judeu Gershom Scholem. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de história (1940) e a monumental e inacabada Paris, capital do século XIX.
(5) Jean-Jacques Rousseau (1712-1778): filósofo, teórico político, escritor e compositor genebrino cujas ideias influenciaram profundamente todo o Direito e outras áreas das ciências humanas na medida em que desenvolveram e aprofundaram conceitos como Estado, poder e soberania, tais quais conhecemos atualmente. A filosofia política de Rousseau influenciou o progresso do Iluminismo em toda a Europa, bem como certos aspectos da Revolução Francesa e o desenvolvimento dos pensamentos políticos, econômicos e educacionais posteriores, embora grande parte das reflexões rousseaunianas contraste radicalmente com a corrente iluminista, tendo sido classificada como romântica ou até mesmo como irracionalista por alguns de seus pares. Sobre seu pensamento, confira a Edição 415 da Revista IHU On-Line, de 22-04-13, intitulada Somos condenados a viver em sociedade? As contribuições de Rousseau à modernidade política.