20 Outubro 2025
"As tendências tecnocrática e etnocrática, aparentemente antitéticas, combinam-se perfeitamente em um inquietante processo. Para indicar essa suspensão técnica da democracia, que se combina com um relançamento da soberania de viés étnico, poderíamos falar em tecnofascismo."
O artigo é de Donatella Di Cesare, publicado por il Fatto Quotidiano, 17-10-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Donatella Di Cesare é filósofa, ensaísta e colunista italiana que leciona Filosofia Teorética na Universidade “La Sapienza”, de Roma. É uma das pensadoras mais influentes no debate público italiano e internacional, seja acadêmico, seja midiático. Colabora em vários jornais e revistas, incluindo L’Espresso e il Manifesto. Seus livros e ensaios são traduzidos mundialmente, dentre os quais destacamos: O complô no poder (Aynè, 2022), Vírus soberano? A asfixia capitalista (Aynè, 2020) e Terror e modernidade (Aynè, 2019).
Eis o artigo.
A erosão da democracia não é mais notícia, e nenhuma máscara externa poderia agora esconder, nem mesmo meramente disfarçar, o processo em curso há tempo. Alguns aludem a um último ato, como se a despedida fosse inevitável, e outros, em vez disso, defendem a necessidade de fortalecer a estrutura, a fundação interna (regras e procedimentos) e a armadura externa (equipamentos militares).
Mas a democracia não é um regime; não se baseia em um pilar estável. Justamente sua flexibilidade e abertura são, em vez disso, baluartes contra qualquer violência que, tanto interna quanto externamente, possa esvaziá-la e privá-la de poder. (...)
Como ocorre a erosão da democracia? Há duas tendências distintas, porém complementares, que podem ser observadas com clareza já há algum tempo e hoje estão se manifestando com mais clareza. A primeira é a tendência tecnocrática, que se traduz na completa subordinação à economia de uma política reduzida a uma anônima governança administrativa, que faz o jogo de grandes empresas, da indústria militar, dos bancos e do capital financeiro. A segunda é a tendência etnocrática, que se manifesta no exercício familiar do poder e numa gestão dos povos entendidos como hiperfamílias, comunidades naturais fechadas baseadas no nascimento e na descendência, tornadas firmes e estáveis por laços de sangue e solo, capazes de serem abrigos adequados em um mundo cada vez mais caótico e inóspito. Essas duas tendências aparentemente antitéticas estão se unindo em um híbrido sem precedentes, uma nova forma de totalitarismo que simultaneamente apaga a política e decompõe a democracia. (...)
Narrada como o primeiro estágio do novo choque de civilizações, a guerra russo-ucraniana, que eclodiu em 24 de fevereiro de 2022, representa um ponto de virada de época. As hostilidades no Oriente Médio, que estouraram em 7 de outubro de 2023, e culminaram no conflito entre Israel e Irã, confirmam a entrada em uma época nova e desconhecida. Não podem, portanto, ser consideradas meros episódios da “terceira guerra mundial aos pedaços”, devido ao seu viés políticos: o aparecimento, cem anos após o advento do fascismo, de uma forma de totalitarismo que, diferentemente daquele do século XX, parece mais insidioso e sorrateiro, mais disperso e elusivo. Resultados não de um choque de civilizações, mas de um encontro de utilidades, os conflitos atuais são aquele detonador capaz de lançar luz sobre nexos explosivos.
A aliança entre CEO das grandes empresas bélicas, representantes das hierarquias militares e classe política é apenas o aspecto mais sorrateiro de um capitalismo que envolve, consome e devasta democracias impelidas, para garantir seu próprio bem-estar e lucro extra, a se tornarem as principais acionistas no mercado da guerra. Quase como os soberanos absolutos do passado, mas com uma concentração de meios técnicos e financeiros, bem como armas nucleares devastadoras, as elites ocidentais decidem as guerras sem pedir de nenhuma forma o consenso de seus cidadãos, aliás, na verdade, atropelando suas aspirações de paz.
Nas últimas décadas, a globalização neoliberal e a financeirização do capital deslocalizaram os centros de poder real, removendo-os do alcance dos cidadãos e das comunidades historicamente constituídas. Assim, foram se formando redes transnacionais cada vez mais sofisticadas e fluidas, que comandam sem qualquer necessidade de aparatos estatais e institucionais. Essa, de fato, é a causa do declínio há muito anunciado e agora irreversível do Estado nacional. (...) As tendências tecnocrática e etnocrática, aparentemente antitéticas, combinam-se perfeitamente em um inquietante processo. Para indicar essa suspensão técnica da democracia, que se combina com um relançamento da soberania de viés étnico, poderíamos falar em tecnofascismo.
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