Em conferência para o IHU, Manlio Graziano, do Instituto de Relações Internacionais de Paris, da Sorbonne, refletiu sobre a relação entre Trump e o iminente fim da hegemonia estadunidense no mundo
Em conferência promovida pelo Instituto Humanitas Unisinos –IHU, Manlio Graziano, do Instituto de Relações Internacionais de Paris, da Sorbonne, refletiu sobre a relação entre Trump e o iminente fim da hegemonia estadunidense no mundo.
A informação é de Gabriela Linn Rocha, estudante de Relações Internacionais (RI).
Manlio Graziano (Foto: Biblioteca Stense)
O atual presidente da – ainda – principal potência mundial parece ser hoje um dos principais responsáveis pela desordem internacional, mas Donald Trump é menos a causa e mais um sintoma do colapso dos Estados Unidos, segundo Manlio Graziano. “Trump agravou a crise nos EUA e está fazendo isso de uma forma muito ativa – mas ele é produto da crise”, enfatiza.
Há poucas décadas, seria impensável que uma figura como ele fosse eleita presidente do país. Sua ascensão revela o esgotamento de um modelo e a perda de confiança nas instituições que sustentaram o poder norte-americano ao longo do século XX. Durante décadas, os EUA se apresentaram como o pilar da ordem liberal internacional, com instituições estáveis, uma economia pujante e um discurso de liderança global baseado em valores como democracia, livre mercado e direitos humanos. No entanto, a eleição de uma figura como Trump – marcada por discursos autoritários, antiglobalistas e contrários ao establishment – evidencia uma ruptura profunda nesse modelo.
Para Graziano, a crise nas relações internacionais iniciou e terminará com os próprios Estados Unidos. Depois da Segunda Guerra Mundial, o país emergiu como potência hegemônica global, tendo destruído seus principais adversários durante o conflito. Essa posição privilegiada lhes permitiu ditar as regras da ordem pós- guerra, com o objetivo claro de perpetuar sua supremacia. No entanto, a dinâmica das relações internacionais é marcada por um princípio básico: o crescimento desigual entre os países. A partir da década de 1950, outras nações se recuperaram e começaram a crescer rapidamente, muitas com o apoio dos próprios EUA. O Plano Marshall foi essencial para reconstruir as economias europeias devastadas, e a recuperação do Japão também foi fortemente estimulada. A Alemanha Ocidental cresce de forma extraordinária com o milagre econômico alemão, bem como França e Itália. É nesse mesmo contexto que surgem os chamados “tigres asiáticos”, que iriam, mais tarde, constituir a principal fonte de poder paralelo. “Os EUA, a partir de 1950, tem um crescimento mais lento comparado ao resto do mundo. Entre 1950 e 1975, ou seja, num período de 25 anos, os EUA tiveram um crescimento econômico medido em PIB da ordem de 4% ao ano - o que não é ruim. Mas, a Alemanha, a França e a Itália tiveram ritmos superiores em 1/3 e o Japão um ritmo que era o dobro do ritmo dos EUA”, exemplifica Graziano.
Embora grande parte do desenvolvimento dessas nações tenha acontecido sob o véu protetor estadunidense, isso reduziu a vantagem econômica absoluta que a potência detinha até então. A assimetria financeira e política entre os EUA e diversos outros países começou a diminuir.
Na videoconferência ministrada neste mês, intitulada “A guerra de Trump. Desequilíbrios internos e caos internacional”, o especialista em geopolítica menciona que a série de desilusões dos EUA inicia com a derrota norte-americana no Vietnã – o primeiro indício claro de que o poder tinha limites. Ela é seguida da criação do G5 – depois G7 –, que incluía até mesmo países derrotados na guerra, como Alemanha e Japão, e que simbolizou a transição para um mundo multipolar. Os EUA já não mais podiam agir sozinhos, era preciso negociar. O colapso da União Soviética, inicialmente visto como uma vitória, se revelou um fardo: os Estados Unidos perderam seu contrapoder e ficaram sozinhos em um cenário global cada vez mais complexo e fragmentado, justamente em um momento de fragilidade interna. A credibilidade no que parecia ser um poder total aumenta ainda mais com o atentado de 11 de setembro, a crise financeira de 2008 – que fortaleceu blocos alternativos como o BRICS – e as guerras perdidas no Iraque e no Afeganistão. Até mesmo o principal argumento estadunidense para justificar sua política intervencionista – o “combate ao terrorismo” – perdeu força diante do aumento de ataques e do surgimento de cada vez mais grupos radicais.
Manlio Graziano explica que, diante desses acontecimentos, instalou-se nos EUA uma forte sensação de perda, que se transformou em desejo de vingança. Surgiu a ideia de que a solução seria o fechamento em si mesmos, o isolamento, o protecionismo – políticas que já apareciam timidamente sob Obama, mas se intensificaram de forma explícita sob Trump. O populismo ganhou força, alimentado por um discurso de que o mundo inteiro se aproveitou da boa vontade norte-americana. Motivado por ressentimento e revanchismo, Trump construiu sua imagem como um “antipolítico”, alguém que desafiava a ordem estabelecida, as elites tradicionais e os compromissos multilaterais que, segundo ele, teriam enfraquecido os Estados Unidos.
O paradoxo é evidente: tudo aquilo que fez “a América grande” está sendo desmantelado pelas próprias mãos do governo estadunidense. Instituições democráticas, universidades e organismos internacionais são deslegitimados. O país coleciona diversos inimigos, tanto externos como internos, muitos do quais eram, até então, aliados. Compromissos internacionais são ignorados ou abertamente quebrados. “Como a culpa é da globalização, é preciso sair do mundo, destruir as regras que conduziram as relações internacionais até então, é preciso atacar os competidores, as tarifas alfandegárias. Foi preciso um certo tempo, mas essas posições se afirmaram na cena política americana e não só lá. Há uma tendência mundial para isso: na Europa e nos EUA isso é mais evidente, mas também temos o caso das Filipinas, do Brexit e casos no mundo inteiro, como em Israel também, ou a Índia. Ou seja, casos de países que enfrentaram governos nacionalistas e ultranacionalistas que pensaram que se fechar em si mesmos é a solução para todos os problemas”, contextualiza.
Para o conferencista, um dos principais pilares históricos dos EUA é o que está sendo mais duramente atacado: os migrantes. Os migrantes construíram o país e continuam a ser o motor de diversos setores econômicos. Desde o endurecimento das leis migratória de Trump, muitas empresas fecharam por falta de mão de obra.
Diante disso, os EUA parecem estar em um processo de autodestruição, ainda que permaneçam como a maior potência mundial. O impacto desse colapso não será isolado: se eles caírem, o mundo inteiro sentirá os efeitos. Embora se diga que a nação estadunidense não é a única no mundo, até agora nenhuma outra potência parece disposta ou capaz de assumir o mesmo papel. A Europa, por exemplo, vive uma crise de identidade e poder. Não tem mais grande relevância nas decisões globais – os EUA atacaram o Irã sem sequer consultá-la. O continente europeu hoje está à margem, excluído do tabuleiro geopolítico e sem a proteção que antes recebia dos Estados Unidos. Outras regiões, como a América do Sul, também enfrentam obstáculos: a fragmentação política, como se vê no caso do Mercosul sob o governo Milei na Argentina, dificulta qualquer iniciativa conjunta.
Manlio Graziano não acredita que estejamos diante de um futuro promissor. A crise que vivemos hoje começou com os Estados Unidos – e tudo indica que ela também terminará com eles. A desordem global atual reflete diretamente a instabilidade interna da potência que, por décadas, foi o principal arquiteto e beneficiário da globalização e da economia de mercado. Os EUA promoveram uma ordem mundial baseada na livre circulação de capitais, apresentando o mercado como a força capaz de organizar o mundo. No entanto, esse modelo mostra claros sinais de esgotamento: o sistema capitalista já não consegue absorver a própria produção, e a globalização, outrora vista como símbolo de progresso, passa a ser vista como ameaça nacional e desmontada em ritmo acelerado. O mais inquietante é que não há um horizonte definido. Não se sabe o que virá após o colapso desse sistema. O declínio dos Estados Unidos não implica, necessariamente, a ascensão de um mundo melhor.
A palestra de Manlio Graziano, intitulada A Guerra de Trump. Desequílibrios internos e caos internacional, ocorreu em 01-07-2025 e pode ser acessada no canal do YouTube do IHU. A conferência é parte do Ciclo de Estudos A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI, que contará com mais palestrantes até dia 05 de agosto.
Quatro anos após a pandemia de Covid-1G, o mundo enfrenta tensões geopolíticas, como a disputa entre China e EUA, catástrofes climáticas, especialmente no Sul global, conflitos armados, desdolarização e reorganização do capitalismo, além da ascensão da extrema-direita e da ameaça à democracia.
Esse contexto reflete o declínio do Ocidente e a ausência de alternativas ao capitalismo, com uma transição instável rumo a uma possível ordem multipolar. O avanço da extrema-direita, impulsionado pelas redes digitais e marcado pela promoção do caos e desregulação, ameaça as instituições democráticas e se fortalece em diversas partes do mundo.
Paralelamente, antigas estruturas econômicas e políticas desmoronam diante da ascensão de um tecnofeudalismo, em que plataformas digitais concentram poder e transformam usuários em produtores de dados, reforçando desigualdades e formas de exploração, principalmente no Sul global. A lógica do hipercolonialismo digital mantém a exploração econômica e simbólica, enquanto rejeita fisicamente os povos migrantes por meio da militarização das fronteiras.
As migrações atuais são resultado das guerras, da pobreza, das perseguições e das mudanças climáticas extremas. No entanto, essas crises humanitárias muitas vezes são ignoradas por organismos internacionais, aprofundando a instabilidade global. O mundo vive, assim, um período de transição caótica, com incertezas, retrocessos democráticos e novas formas de dominação e resistência.
Vivemos um momento histórico marcado por grande complexidade, com desafios interligados, como mudanças climáticas, desigualdades, conflitos, crises migratórias, avanços tecnológicos e transformações políticas globais. O Ciclo de Estudos A gramática do poder global. Desocidentalização, tecnoautoritarismos e multilateralismo no século XXI busca analisar esses fenômenos de forma interdisciplinar, promovendo reflexões sobre suas implicações éticas, políticas e culturais. O objetivo é interpretar as mudanças em curso e incentivar respostas coletivas e críticas, ampliando a compreensão dos desafios contemporâneos e inspirando novas formas de ação para o presente e o futuro.
Não é necessária inscrição para participar do evento, mas será fornecido certificado a quem se inscrever e, no dia da videoconferência, assinar a presença por meio do formulário disponibilizado durante a transmissão.
O primeiro conferencista, Fabian Scheidler, conduziu o debate sobre “A erosão do Ocidente e o futuro do sistema internacional”. A palestra pode ser acessada abaixo:
Dia 24-07-2025, a Dra. Alexandra Sitenko ministrará a conferência “Sul Global. Projetos, demandas e perspectivas na arena do poder mundial ”, às 10h.
O Prof. Dr. Mattia Diletti ministrará a conferência “Sociedade e política no trumpismo. Ideologia, capitalismo nacional e nostalgia”, às 10h do dia 29 de julho.
A conferência “O uso da inteligência artificial na indústria militar. A nova gramática da guerra” encerrará o ciclo de estudos. O tema será discutido pelo Prof. Dr. Claude Serfati, às 10h do dia 05 de agosto.
Inscreva-se no evento aqui.