Vozes de Emaús: A guerra é contagiosa e a Paz só poderá vir de baixo. Artigo de Marcelo Barros

Arte: Lauren Palma | IHU

17 Outubro 2025

"Infelizmente, cada vez mais, a comunidade das nações afunda em um abismo de cinismo. Com algumas exceções, governantes dos países se tornam meros gerentes de conglomerados financeiros que dominam o mundo. Até hoje, ressoam propagandas falsas que veem o que chamam de Comunismo como ameaça para o futuro da paz"

O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.

Marcelo Barros. (Foto: Arquivo pessoal)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.

Eis o artigo.

Ninguém poderia imaginar que, em pleno século XXI, depois da triste experiência das guerras do século passado, a humanidade ainda viesse a sofrer um cenário com tantos conflitos armados. Atualmente, o mundo registra 64 guerras que envolvem governos e, em alguns casos, regiões fronteiras de vários países. Apesar de que a imprensa internacional privilegia o que acontece na Ucrânia, é importante o mundo se dar conta da guerra que, já há anos, fere o Sul da Índia que luta contra o Paquistão, mas envolve gente do Sri-Lanka e afeta países vizinhos. Na África, países como Somália, Nigéria e Argélia enfrentam guerras civis que tomam caráter internacional. No Sudão do Sul, depois de dividido do norte, o conflito armado toma caráter de extermínio de um povo pobre. No Yemen, a guerra se perpetua. No sul da República Democrática do Congo, continua inexorável o genocídio promovido por Paul Kagame, presidente de Ruanda, que pretende fazer limpeza étnica e anexar parte do Congo a seu país. Talvez por ocorrer na África, embora provoque muitas vítimas, não merece as manchetes de jornal. Estas se contentam em noticiar o genocídio que o governo de Israel comete contra o povo palestino. O mundo assiste pela tv e a cores cenas como soldados israelitas abrirem fogo contra crianças pobres, em fila, para pegar comida, em Gaza. (cf. Internazionale, 11 luglio 2025, p 53).

Desde a primeira década deste século, o Conselho de Segurança da ONU perdeu o seu poder. Os donos do mundo não precisam mais fingir que respeitam convenções éticas e normas internacionais, que, em outros tempos, seus países assinaram. Não existe mais lei. E nem se precisam mais de mãos humanas para matar. Neste ano, na Ucrânia, drones foram responsáveis por 70% das mortes, seja de militares envolvidos no conflito, seja de civis, mulheres e crianças que, por acaso, estavam no local dos assassinatos programados. A Folha de São Paulo de 6 de outubro de 2025 noticiou que no Haiti uma festa infantil foi interrompida por drones que mataram 18 pessoas e feriram mais algumas.

Infelizmente, cada vez mais, a comunidade das nações afunda em um abismo de cinismo. Com algumas exceções, governantes dos países se tornam meros gerentes de conglomerados financeiros que dominam o mundo. Até hoje, ressoam propagandas falsas que veem o que chamam de Comunismo como ameaça para o futuro da paz. No entanto, como os monstros tiraram a máscara, é difícil associar Trump, Netanyahu, Paul Kagame e outros senhores da guerra com a esquerda. No mundo inteiro, quem faz guerra é a extrema-direita.

Em setembro de 2025, na ONU, em seu discurso de abertura da assembleia-geral, o Presidente Lula afirmou: “Este deveria ser um momento de celebração das Nações Unidas. Criada no fim da Guerra, a ONU simboliza a expressão mais elevada da aspiração pela paz e pela prosperidade. Hoje, contudo, os ideais que inspiraram seus fundadores estão ameaçados, como nunca estiveram em toda a sua história. O multilateralismo está diante de nova encruzilhada. A autoridade desta Organização está em xeque. Assistimos à consolidação de uma desordem internacional marcada por seguidas concessões à política do poder. (...) Existe um evidente paralelo entre a crise do multilateralismo e o enfraquecimento da democracia. (...) Quando a sociedade internacional vacila na defesa da paz, da soberania e do direito, as consequências são trágicas. Em todo o mundo, forças antidemocráticas tentam subjugar as instituições e sufocar as liberdades. Cultuam a violência, exaltam a ignorância, atuam como milícias físicas e digitais, e cerceiam a imprensa. (...) Democracias sólidas vão além do ritual eleitoral. Seu vigor pressupõe a redução das desigualdades e a garantia dos direitos mais elementares: alimentação, segurança, trabalho, moradia, educação e saúde. A democracia falha quando as mulheres ganham menos que os homens, ou morrem pelas mãos de parceiros e familiares. Perde quando fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo. A pobreza é tão inimiga da democracia, quanto o extremismo. (...) A única guerra da qual todos podem sair vencedores é a que travamos contra a fome e a pobreza. Esse é o objetivo da Aliança Global que lançamos no G20, que já conta com o apoio de 103 países”. 

Da sociedade civil, se levantam vozes. As pessoas comuns começam a se organizar em manifestações pela Paz e pela Justiça. Na Europa, já na última década do século XX, organizações da sociedade civil organizaram uma ONU dos Povos, não para substituir a atual dos governos, mas para subsidiá-la e lhe dar força a partir das bases. A partir do início deste século, em diversas sessões, em diferentes continentes, o Fórum Social Mundial reuniu milhares de pessoas e deu visibilidade à sociedade civil internacional. Em vários países, um grupo representativo de vários países se constituiu como Ágora dos Habitantes da Terra e chegou a organizar um documento de identidade de cidadania do planeta. Embora nenhum país tenha reconhecido a validade de tal documento, ele é um sinal de que, por mais que a insanidade pareça se sobrepor à inteligência amorosa, a humanidade tem como vocação a convivência amiga e não o ódio. O que constitui o ser humano é a busca de comunhão e a vocação de cuidar.

Dos povos indígenas, hoje, organizados nacional e internacionalmente, se fortalece a proposta do Bem-viver que se constrói a partir de baixo e artesanalmente. O Bem-viver acontece quando damos prioridade ao bem-comum sobre o bem individual, mesmo o necessário e justo. Supõe que nos relacionemos com a Mãe-Terra e com a natureza como seres vivos, membros da comunidade da vida e não como mercadoria. Evidentemente, que não basta a mudança individual para mudar estruturas da sociedade, mas, sem dúvida, pode ocorrer o que afirmava em seu tempo Dom Helder Camara: “Uma andorinha só não faz verão, mas anuncia”.

Essa proposta supõe nossa participação em toda mobilização social justa contra a iniquidade hoje vigente no mundo. Ao mesmo nos lembra o conselho que, há mais de 70 anos, dava o Mahatma Gandhi: “Comece por você a mudança que você quer ver no mundo”.

Leia mais