"Essa exortação papal me fez recordar da palavra do querido e saudoso Dom Helder Camara, que, uma vez, o Papa Francisco citou: 'Quando eu ajudo os pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres, dizem que sou comunista'. Do tempo de Dom Helder para cá, o mundo piorou tanto que, quem sabe, mesmo essa exortação que trata mais do cuidado com os pobres e apenas alude às causas estruturais da pobreza, possa ser acusada de comunista".
O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.
Marcelo Barros. (Foto: Arquivo pessoal)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Muito obrigado pela bela e oportuna exortação Dilexi te sobre o cuidado com os pobres. Sua exortação ganha especial sentido no mundo atual, no qual, o Capitalismo perdeu todas as suas máscaras de sistema minimamente humanitário. Multidões de migrantes e continentes inteiros como a África se tornaram descartáveis.
Essa exortação é também urgente em uma Igreja na qual muitos grupos considerados católicos e a maioria da hierarquia e do clero se divide entre posições de direita e de extrema-direita, uns e outros aprisionados em uma visão de Igreja clerical, autorreferente e saudosa dos velhos tempos de Cristandade. Quem sabe, bispos e padres que não se preocuparam em ler as encíclicas do Papa Francisco, aceitem ler e levar a sério as suas exortações.
A exortação também fará bem a outras Igrejas irmãs. Aqui no Brasil, nesses dias, uma Igreja evangélica conhecida pediu ao Banco Central para abrir um banco. E continua considerada Igreja cristã.
A sua exortação é um bom resumo do que uma boa enciclopédia poderia trazer sobre a ajuda aos pobres nos textos bíblicos, nos documentos da Patrologia e de toda a tradição de vida religiosa na Igreja.
Uma das bases da argumentação é a palavra de Jesus: “pobres, sempre tereis entre vós” (Mt 26, 11). Na ceia de Betânia (casa dos pobres), Jesus cita o capítulo 15 do Deuteronômio que legisla sobre o ano sabático, a anistia das dívidas e a libertação dos escravos, para que não haja mais pobres na sociedade. No entanto, como a sociedade sempre encontra formas de manter as desigualdades injustas, é preciso ajudar os pobres, porque entre vós (e isso é uma acusação), sempre haverá gente empobrecida” (Dt 15, 11).
Aliás, o vocabulário bíblico tem três termos hebraicos para designar o pobre. Na maioria dos textos, anaw ou anawin se traduz melhor por empobrecido do que por pobre. Os livros sapienciais falam dos anawin de Jahwé. É a categoria social e política do povo oprimido. O termo ebion tem o sentido de carente, enquanto dal designa a pessoa estruturalmente necessitada de cuidados especiais.
Essa exortação papal me fez recordar da palavra do querido e saudoso Dom Helder Camara, que, uma vez, o Papa Francisco citou: “Quando eu ajudo os pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que são pobres, dizem que sou comunista”. Do tempo de Dom Helder para cá, o mundo piorou tanto que, quem sabe, mesmo essa exortação que trata mais do cuidado com os pobres e apenas alude às causas estruturais da pobreza, possa ser acusada de comunista.
Muito obrigado, Papa Leão, pela menção honrosa aos movimentos populares e ao seu manifesto desejo de que a Igreja se coloque na solidariedade concreta e na luta pacífica para vencer as causas estruturais da pobreza.
Por falar nisso, a sua carta traz uma longa lista de coisas boas que, em toda a história, a Igreja Católica fez para os pobres. Recordou a proposta evangélica e franciscana de uma Igreja dos pobres e para os pobres. No entanto, todos nós sabemos que, embora todos esses textos sejam verdadeiros e importantes, no que diz respeito à prática concreta, a hierarquia eclesiástica nem sempre agiu de acordo com esses princípios. Durante a história, os representantes da Igreja se uniram aos impérios colonizadores e legitimaram a violência da conquista, da escravidão e, portanto, da origem da pobreza estrutural da maioria de nossos povos. O Papa João Paulo II pediu perdão pelos pecados de alguns filhos da Igreja, mas todos nós sabemos que aqueles eclesiásticos agiram como representantes da Igreja e endossados por documentos oficiais, que até os tempos do Papa Leão XIII, condenavam todos os movimentos sociais, sindicatos e quaisquer organizações de trabalhadores.
Infelizmente, essa indiferença social e política com a manifestação do reinado divino no mundo continua ainda no DNA de muitos eclesiásticos e espero que a sua exortação provoque verdadeira conversão estrutural e comunitária.
Oro para que superemos o tempo em que seja necessário um papa escrever uma exortação sobre a solidariedade necessária aos pobres. Que tenhamos cada vez mais bispos, padres e grupos cristãos que renovem o Pacto das Catacumbas e, cada vez mais, como pediam os bispos católicos na conferência de Medellín (1968): “na América Latina, a Igreja tome cada vez mais o rosto de uma Igreja pobre e despojada dos meios de poder, comprometida com a libertação de toda a humanidade e de cada ser humano em sua integralidade” (Med 5, 15).
A mim, sua exortação, Papa Leão, me interpela não apenas a ajudar os pobres e ser solidário, mas a denunciar as causas estruturais da pobreza e a lutar contra as estruturas que, diariamente, a produzem e a multiplicam.
A íntegra da Exortação Apostólica Dilexit te pode ser lida, em português, aqui.