Vozes de Emaús: O papa Prevost e a busca de um novo equilíbrio eclesial. Artigo de Faustino Teixeira

Arte: Lauren Palma | IHU

25 Agosto 2025

"Nesse sentido, há também uma sintonia com Francisco. Na visão de Spadaro, o papa Prevost retoma o legado de Francisco 'e o reinterpreta em chave missionária'. É o caminho evangelizador que escolheu para lidar com um mundo 'dividido e ferido', marcado pelo desgaste da compaixão".

O artigo é de Faustino Teixeira, teólogo e colaborador do IHU e do Canal Paz e Bem.

Faustino Teixeira (Foto: Ricardo Assis/UFJF/divulgação)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo.

No dia 16 de agosto de 2025 completaram-se os 100 dias de pontificado do papa Prevost. Em conversa com os jornalistas no Vaticano, em 19 de agosto, o papa sublinhou que esse período à frente da igreja católica tem sido uma verdadeira “bênção de Deus”. Já no início de seu pontificado, junto ao povo na praça de São Pedro, em maio de 2025, dizia-se “filho de Santo Agostinho”, reconhecendo naquele momento solene que todos estão envolvidos “nas mãos de Deus”. Isto me fez lembrar na ocasião uma célebre frase da mística renana, Marguerite Porete, que em sua única obra, O espelho das almas simples, revelou a certo momento que todos estamos sempre aos “cuidados de Deus”. Ela dava como exemplo um sábio trabalhador, que ao cultivar e escavar a terra, e depois plantar a semente no chão, não pode depender de suas forças para o fruto vingar, mas fica na dependência do cuidado de Deus.

Destaco que uma das primeiras palavras apontadas por Prevost na ocasião foi a Paz. Lembrava a importância essencial nesses tempos difíceis de uma afirmação da paz, “desarmadora, humilde e perseverante”. Foi um passo novidadeiro naquela manhã de Páscoa, quando começava sua missão eclesial. Disse ainda que o mal não poderia prevalecer, e todos poderiam brindar a alegria de uma bonita travessia, feita em comum, na direção do horizonte preparado por Deus. E ali, naquele momento, não se esqueceu de seu povo querido, da diocese peruana de Chiclayo, e reconheceu que com eles aprendeu “seguir sendo igreja fiel de Jesus Cristo”.

Como analista, preocupado em entender os 100 primeiros dias de seu pontificado, reconheço que a dinâmica agostiniana rege, sem dúvida, os passos cotidianos de Prevost. É alguém que veio para dar continuidade ao trabalho profético de Francisco, e vem assumindo isso em diversos momentos de sua trajetória em Roma. Como mostrou com pertinência o vaticanista Marco Politi, Prevost firma-se cada vez mais como um “arquiteto” da dinâmica eclesial, buscando equilibrar com firmeza as inquietações do mundo e a unidade da igreja.

É um papa que não está insensível à dor do mundo, num tempo marcado por guerras violentas e implacáveis, como a que vem ocorrendo em Gaza. Com seu jeito particular, Prevost reúne esforços para resolver a “crise humanitária” que banha o mundo de dor e revolta. O papa sinalizou em discurso de 14 de maio de 2025 que “ficará na história quem semeia a paz, não quem ceifa as vítimas”. Entende ainda que as religiões têm um papel fundamental nesse trabalho em favor da paz. Em audiência pública, realizada em 20/08/2025, Prevost convocou todos os fiéis católicos para um dia de oração e jejum em favor da paz e da justiça, sobretudo para os que sofrem em razão dos conflitos armados que estão em curso.

De forma diversa de Francisco, que sempre foi mais contundente nos seus discursos e ações, o papa Prevost prefere um caminho mais diplomático, que ele mesmo denominou de “diplomacia softy”. Trata-se de um caminho que evita, segundo ele, os “maniqueísmos”, e busca as soluções por meio do diálogo e não do confronto direto. É o traço que habita o seu discernimento pessoal. Junto com a paz, enfatiza igualmente o imperativo da justiça, passo que o identifica com a perspectiva aberta por Leão XIII, de quem herdou seu nome.

Em fidelidade à sua herança agostiniana, Prevost sublinha também a sua opção fundamental pela unidade da igreja. Trata-se de uma preocupação constante em sua caminhada. Foi o lema que escolheu para o seu pontificado: “In illo uno unum” (“Nele que é um somos todos um”). O papa agostiniano escolheu como grande tarefa de sua ação, promover a reconciliação e a unidade dentro da igreja. Ele pode contar com toda a sua experiência de governo na igreja, quando atuou por 12 anos como prior geral dos agostinianos. Em reflexão feita por padre Spadaro, em agosto de 2025, ele sublinha que Francisco estava mais preocupado com a misericórdia, enquanto Prevost enfatiza a urgência da reconciliação e da unidade.

Outra preocupação decisiva de Prevost é em favor da retomada da dimensão missionária da igreja católica, com ênfase particular no anúncio explícito de Jesus Cristo. Em discurso aos membros do corpo diplomático com atuação junto à Santa Sé, em 16 de maio de 2025, Prevost falou de três palavras chaves que marcam os pilares da ação missionária da igreja católica: a paz, a justiça e a verdade. Quanto à verdade, o papa sublinhou que não pode haver relações pacíficas, mesmo em âmbito da comunidade internacional, sem a presença da verdade. Invoca a importância de uma “linguagem franca” sobre a verdade, que a seu ver não está separada da caridade.

No dia seguinte, 17 de maio, em discurso aos membros da Fundação Centesimus Annus Pro Pontifice, o papa frisou a importância da doutrina na igreja católica, e indicou que doutrina e diálogo não estão em tensão. A seu ver, a doutrina vem identificada com ciência, saber e disciplina. Reitera que sem uma boa compreensão de doutrina, o diálogo mesmo se esvazia. É mais uma prova do cuidado especial de Prevost com a unidade, a verdade e a doutrina da igreja católica. A própria perspectiva de missão vem animada por tais prerrogativas.

Em telegrama assinado pelo cardeal Pietro Parolin, e endereçado ao Encontro de Bispos da Pan-Amazônia, o papa Prevost destacou o significado essencial da missão da igreja católica. Sinalizou três dimensões a seu ver fundamentais da ação pastoral da igreja: o anúncio do evangelho, o cuidado com os povos da Amazônia e a preservação da Casa Comum, que é a Terra. Enfatizou aos bispos que o claro anúncio de Jesus Cristo é passo fundamental para os habitantes da Amazônia. Indicou ainda que só mediante a oferta da Boa Nova e do pão eucarístico é que se firma verdadeiramente o povo como povo de Deus. Sua compreensão de missão evangelizadora, a meu ver, é bem tradicional, em certo descompasso com toda a perspectiva que veio se firmando na América Latina nas últimas décadas. Verifico uma maior compatibilidade com a dinâmica missionária defendida por João Paulo II na encíclica Redemptoris Missio, de 1990. Sobre o tema, há documentos bem mais abertos, como “Diálogo e Anúncio”, da Pontifícia Comissão para o Diálogo Interreligioso, de 1991. Ainda no mesmo telegrama enviado aos bispos, o papa Prevost firma sua mesma preocupação com a Casa Comum, em sintonia com a Laudato si de Francisco, mas enfatiza o dado de que o cuidado com a Natureza não seja entendido como uma perspectiva de submissão do humano à natureza, o que não estava presente na reflexão de Francisco.

Por fim, há que ressaltar ainda a preocupação de Prevost com a sinodalidade da igreja, em linha de sintonia com o caminho de Francisco. É um ponto também incisivo defendido pelo papa atual, em favor de uma igreja que busca caminhar de forma unida, com acolhida sincera da diversidade interna. Trata-se de uma perspectiva que prioriza a dinâmica de “escuta mútua e discernimento comunitário”. Nesse sentido, há também uma sintonia com Francisco. Na visão de Spadaro, o papa Prevost retoma o legado de Francisco “e o reinterpreta em chave missionária”. É o caminho evangelizador que escolheu para lidar com um mundo “dividido e ferido”, marcado pelo desgaste da compaixão.

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