Cardeais de todos os cantos do mundo consideraram a personalidade de Prevost “muito interessante” para dar continuidade à “internacionalização do papado” “sob a égide da sinodalidade”. Elegeram um homem que “teve a experiência da Cúria, mas não é curial”, observa o vaticanista italiano
Recosturar. Esse foi o verbo empregado pelo vaticanista Marco Politi para analisar as ações de Prevost no primeiro mês de pontificado. “Eu gosto desta palavra que diz respeito às nossas avós que sabiam costurar um tecido, uma meia rasgada”. O Papa Leão, destaca, “é uma figura que costura, que consegue reparar para superar as dilacerações e seguir adiante e continuar com a obra de renovação da Igreja”, exemplifica na videoconferência intitulada “Análise do primeiro mês do pontificado de Leão XIV”, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na semana passada, 10-06-2025.
Na avaliação do jornalista, o grande desafio deste pontificado será “reconstruir uma autoridade central”, sem retornar a modelos anteriores, em que “Roma decide e todo o restante do mundo obedece”. De acordo com Politi, “a figura do Papa hoje não tem mais um poder absoluto como se pensava no passado, mas a Cúria também não tem mais o poder absoluto que detinha”. Exemplos disso são, sublinha, o caminho sinodal alemão e a reação dos bispos africanos ao documento “Fiducia Supplicans”, emitido pelo Dicastério para a Doutrina da Fé em 2023.
Para o vaticanista, o primeiro mês do pontificado também evidencia a importância que o Papa tem dado à colegialidade e à sinodalidade. Nos próximos meses, contudo, “será preciso ver como ele vai enfrentar o último projeto do Papa Francisco, pois este, desde o seu leito no hospital, com grande surpresa de todos, lançou um programa trienal de reuniões em nível paroquial da diocese, das conferências episcopais nacionais e continentais, sobre os grandes temas da sinodalidade, a serem concluídos com uma assembleia eclesial”, menciona.
A seguir, publicamos a conferência de Marco Politi, juntamente com a entrevista feita por integrantes da equipe do IHU.
Marco Politi (Foto: Reprodução Religión Digital).
Marco Politi tem 78 anos, nasceu em Roma, é jornalista e escritor, especializado em notícias e política do Vaticano. Atua nesta área desde 1971. É editorialista do Fatto Quotidiano. Foi correspondente do jornal La Repubblica em Moscou entre 1987 e 1993. É autor de, entre outros, La solitudine di Francesco: un papa profetico, una Chiesa in tempesta (Laterza, 2019), Francisco Entre os Lobos: o segredo de uma revolução (Texto & Grafia, 2018) e Sua Santidade: João Paulo II e a história oculta (Objetiva, 1996).
O vaticanista participou do Ciclo de Estudos “A Opção Francisco. A Igreja e a mudança epocal”, promovido pelo IHU em outubro de 2023. A videoconferência “As opções (geo)políticas da Igreja de Francisco. Trajetória e perspectivas” está disponível aqui.
IHU – Como o senhor analisa o primeiro mês do pontificado de Prevost?
Marco Politi – É muito cedo para fazer uma análise do pontificado do Papa Leão XIV, mas é importante começar a traçar uma reflexão inicial. Vou articular essa reflexão a partir de sete palavras que surgiram nas primeiras falas deste pontífice.
A primeira é “Cristo Ressuscitado”. Falando do Vaticano, logo após a eleição, Leão menciona a paz do Cristo Ressuscitado. Isso expressa a intenção de declarar, com força, em primeiro plano, o elemento religioso, o primado de Deus, a missão de levar o anúncio do Evangelho no mundo. Observamos nesses dias que Leão XIV gosta de colocar algumas orações nos seus discursos, convidando o público rezar, como o Pai Nosso e a Ave Maria. Ao mesmo tempo, destacando esse elemento religioso, o Papa Leão, na missa celebrada na Capela Sistina, falou da situação dos cristãos no mundo atual com palavras muito interessantes. Ele disse de cristãos que são vistos como elementos fracos, zombados na sociedade, não valorizados, mas também falou daqueles que acreditam em Cristo como um grande líder, como uma espécie de super-homem, e também falou com os ateus.
Desde o início, ele quis destacar o elemento religioso a partir do qual fala da fé e como ela é vivida na sociedade contemporânea. Fazendo isso, ele fala das situações de minoria, de mal-estar ou de desatenção nas quais os crentes estão imersos hoje. É um resgate de uma faixa de crentes que se sentia, de certa forma, esquecida pelo Papa Francisco, que colocava, em primeiro lugar, o elemento de uma Igreja cheia de misericórdia, o elemento de uma ação do crente como bom samaritano. Ou seja, esse elemento de uma Igreja que fala para todos os homens e mulheres sem distinções de fé ou de crença, assim como também aos agnósticos e aos ateus. Vemos que, desde o início, o Papa Leão quer chamar a atenção para a situação nem sempre fácil dos crentes no mundo atual.
A segunda palavra importante ele usou na missa de início do pontificado, no dia 18 de maio. Um parágrafo da sua homilia tratou da unidade e do amor. Unidade é uma palavra importante na situação atual. O Papa Francisco, poucos dias antes de morrer, nas suas meditações na Sexta-feira Santa, tinha falado de uma de uma Igreja dilacerada. Disse que a vestimenta de Igreja estava rasgada e tinha pedido a Deus para doar paz e unidade à Igreja. Isso faz parte do testamento do Papa Francisco, pois se tratou de um grito de dor pela guerra civil que ocorreu na Igreja nos últimos dez anos, desencadeada por elementos ultraconservadores, por pessoas que atacaram sistematicamente a linha teológica e a liderança do Papa Francisco. Essa guerra civil começou com o Sínodo sobre a Família e se tornou mais virulenta e forte quando Francisco publicou a exortação pós-sinodal Amoris Laetitia, concedendo a possibilidade de dar a comunhão aos casais divorciados e recasados, algo que que nem Bento XVI e nem Wojtyla nunca tinham autorizado, apesar de alguns bispos e cardeais terem pedido.
Essa guerra civil, liderada por cardeais importantes, como o americano Raymond Burke e o cardeal Müller, que por cinco anos foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, se tornou mais forte quando se falou da homossexualidade – lembremos que Papa Francisco disse: Quem sou eu para julgar os homossexuais? Eles são todos filhos de Deus. Eles têm direito a uma família – até a autorização da bênção aos casais homossexuais, no documento assinado pelo novo prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, o cardeal argentino, Fernández.
Apesar das formas distorcidas desse tipo de bênção, isso marcou uma ruptura com a doutrina e a práxis do passado. Podemos pensar, por exemplo, num dos documentos do cardeal Ratzinger, quando foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, segundo o qual, com base na doutrina, dizia-se que os homossexuais deviam ser respeitados na vida civil enquanto pessoas na sua dignidade humana, mas a sua vida sexual era considerada uma grave desordem contra a natureza. Essa guerra civil continuou também depois do Sínodo para a Amazônia. O Sínodo tinha pedido ao Papa, com uma votação majoritária, que os diáconos casados pudessem se tornar sacerdotes. Essa guerra civil durou até o último dia do Papa Francisco.
Então, Papa Leão, destacando o elemento da unidade, deseja recosturar essa situação e promover uma convivência, dentro da Igreja Católica, entre as diferentes correntes, vamos chamá-las assim. Nesse sentido, entendemos, por exemplo, a razão pela qual ele escolheu o cardeal Robert Sarah, que foi um dos opositores junto ao Papa emérito Joseph Ratzinger. Prevost quis que o cardeal Sarah fosse o seu convidado especial numa cerimônia especial que vai acontecer na França. Isso faz parte do projeto de voltar a ter mais serenidade dentro da Igreja, atravessada por fortes tensões nos últimos anos.
Recoloca-se, então, nessa situação, nesse ambiente, a frase – e aqui estamos na terceira palavra-chave – que o Papa Leão pronunciou na missa de início de pontificado, quando disse: Eu não serei um líder solitário. Leão destaca esse elemento de não ser um líder solitário nem um chefe que se coloca acima de todos. Nessa missa, ele fala da necessidade de uma comunhão fraterna dentro da Igreja e de uma convivência das diferenças. Aqui também podemos observar o desejo, por meio de uma práxis colegial, que se conecta à sinodalidade, que foi uma das heranças deixadas por Francisco: uma gestão colegial do poder papal.
É preciso dizer que esse foi um pedido praticamente unânime dos cardeais eleitores e entre aqueles acima de 80 anos que participaram das reuniões pré-conclave. Francisco, no seu pontificado, abriu portas e brechas nos muros da Igreja, aquela Igreja que o cardeal Martini, um ano antes das eleições do Papa Bergoglio, disse que está 200 anos atrasada. Então Francisco derrubou muros e abriu brechas, às vezes, com empurrões, com impulsos muito fortes, e criou situações novas. Mas isso também significou uma ação autocrática que não envolveu os membros da Cúria, em sua maioria constituída por pessoas escolhidas por Bento XVI.
Francisco, em nome da convivência pacífica com o seu predecessor que morava no Vaticano, teve que tolerar que a maior parte dos membros da Cúria fosse formada por pessoas provenientes de outras experiências, não escolhidas por ele. Ele pode escolher livremente somente quando morreu Bento XVI. Uma das principais escolhas que fez foi a nomeação do cardeal Fernández para o Dicastério para a Doutrina da Fé e o cardeal Prevost como responsável do Dicastério para os Bispos. Então, quando Leão XIV destaca essa vontade de não ser um líder solitário, ele vai ao encontro de um forte pedido dos cardeais para trabalhar de forma colegial.
Isso nos leva à quarta palavra-chave que Prevost pronunciou no encontro com os membros da Cúria, em que falou da importância da Cúria e da Cúria como depósito da memória da Igreja, falando assim: Os papas passam, a Cúria permanece. Vamos lembrar que o papa antecessor, na sua necessidade e exigência de renovação da Igreja e também de revolucionar certas práticas, mexeu bastante na Cúria quando falou das doenças, do Alzheimer espiritual, da dureza de coração, do fato de querer fazer carreira, das ambições, das fofocas. Desse ponto de vista, Papa Leão se coloca como uma personalidade que entende e quer recosturar as dilacerações, essas feridas, reavaliando a instituição da Cúria.
O cardeal Ruini, de orientação conservadora, ex-presidente da Conferência Episcopal Italiana, tinha falado, na vigília do conclave, de uma situação de desinstitucionalização realizada por Francisco. Ou seja, de uma desvalorização da importância da instituição e do aspecto institucional, ou, podemos falar, usando um termo leigo, de uma desvalorização do aparelho central. Essa foi uma observação inteligente e, neste aspecto, o Papa Leão gosta de recompor a situação, reavaliando a instituição, reavaliando o trabalho da Cúria enquanto elemento central de uma grande comunidade de fiéis, que, sabemos, é 1 bilhão e 400 milhões. Mas tudo isso não em uma visão de retorno ao passado, não com uma saudade do passado.
É importante observar que o cardeal Prevost, em entrevista concedida após a morte do Papa Francisco, falou que não podemos voltar atrás. É preciso medir e lidar com os desafios contemporâneos. Isso demonstra que o trabalho de reavaliação da instituição se coloca, para Leão XIV, numa visão de continuação do reformismo de Francisco. Uma continuação que tem um estilo mais gradual, talvez um estilo mais moderado, mas, de qualquer forma, com uma clara determinação estratégica. Então essas são as três palavras: “unidade”, “líder não solitário” e “memória”, que manifestam a vontade de recosturar o tecido dilacerado dentro da Igreja Católica e de sublinhar o elemento da colegialidade.
Esse elemento de colegialidade já surgiu, na verdade, dentro dos dois grandes sínodos mundiais sobre a sinodalidade, em que um dos elementos foi exatamente a transformação da Igreja de instituto monárquico centralizante e centralizado, nascido do concílio de Trento 500 anos atrás, em uma comunidade participativa. Esse é o horizonte no qual se movimentou o Papa Francisco com os dois grandes sínodos de 2023 e 2024. Essa permanece também a visão do Papa Leão.
As últimas três palavras-chave desse início de pontificado com certeza são a palavra paz, juntamente com ponte, ou seja, a forte conexão e destaque da importância do diálogo, do encontro, e o fato de “se olhar nos olhos” – para citar uma expressão que o Papa Leão usou e, recentemente, o cardeal secretário de Estado Parolin disse em um evento ocorrido em Nova York no âmbito das Nações Unidas. Ele falou da importância de semear paz e não morte.
Prevost tem um comprometimento forte de continuar com a política da paz, realizada pelo Papa Francisco e que já fazia parte da obra do Papa João XXIII, do Papa Paulo VI e de São João Paulo II. É importante que o Papa Leão tenha falado que a Santa Sé está à disposição para a Ucrânia. Isso não significa ter um desejo abstrato de mediação. Os jornais foram muito superficiais nesse sentido. A Santa Sé, desde a crise de Cuba, em 1962, está perfeitamente consciente de que ela pode mediar a paz apenas se os dois adversários estão de acordo e querem essa mediação. Isso se verificou em 1962 com o papel de João XXIII na crise dos mísseis de Cuba e ocorreu novamente no início do pontificado de Francisco, na mediação muito discreta entre o governo cubano e a presidência de Obama para tirar Cuba da lista dos países terroristas.
Mas, de resto, o próprio Papa Leão e toda a diplomacia vaticana estão conscientes de que uma coisa é fazer um esforço em prol da paz e construir pontes, e outra coisa é saber que uma mediação se faz apenas quando as duas potências adversárias querem isso. É importante, de qualquer forma, que nesse clima e nessa visão, o Papa Leão tenha decidido receber como primeiro chefe de Estado o presidente ucraniano, Zelensky, e que alguns dias atrás ele recebeu um telefonema do presidente russo, Putin. Isso significa também que a política que foi seguida com teimosia pelo Papa Francisco nesses anos, de estar acima das partes no conflito Rússia-Ucrânia, foi na direção certa.
Nós sabemos bem que os ambientes de Bruxelas, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da Comunidade Europeia, eram muito frios em relação a Francisco, muito críticos porque o papa não se manifestou a favor da OTAN ou da União Europeia contra a Federação Russa. Francisco seguiu exatamente a política da Santa Sé, que foi seguida também pelos papas anteriores. A Igreja está acima das partes num conflito. O Sul Global entendeu isso perfeitamente e recusou se manifestar a favor da Rússia ou da Ucrânia, pedindo para que essas crises terminassem. Lembremos que Papa Francisco tinha falado com Kirill, patriarca de Moscou, dizendo que um líder religioso não pode ser coroinha do governo. Poucos dias depois, o Observatório Romano, jornal do Vaticano, tinha destacado que o Papa de Roma não é o capelão militar do Ocidente. Não por acaso, Putin, no seu telefonema, apreciou os esforços de paz da Igreja. Essa visão de diálogo a 360 graus se insere também a carta aos judeus, às associações judaicas, para quem Leão XIV quis escrever nos primeiros dias do seu pontificado, falando da importância do documento conciliar Nostra Aetate, e do encontro das igrejas orientais com as católicas, em que destacou a importância da diversidade.
Chegamos à últimas duas palavras-chave destes dias, as duas dirigidas e proferidas durante a missa para a ordenação dos novos sacerdotes da diocese de Roma, onde o Papa destacou o elemento da credibilidade e da transparência da Igreja, dos homens da Igreja, falando que ninguém pode ser perfeito, mas é preciso ter credibilidade. Isso demonstra a atenção que esse novo papa está dedicando aos defeitos, às faltas, aos pecados da Igreja, se quisermos usar esse termo religioso. Desse ponto de vista, é importante dizer que o atual pontífice quis receber a Comissão para a Tutela dos Menores, instituída pelo Papa Francisco após o escândalo dos abusos, que está preparando diretrizes universais que deverão ser adotadas por todas as igrejas, em todas as partes do mundo. Diretrizes sobre assistência e ajuda às vítimas, sobre prestação de contas e de comunicação das experiências realizadas em diversos setores da Igreja, e de transparência em relação à opinião pública.
O Papa Leão está consciente das faltas e das falhas. Ele não faz parte do grupo que foi derrubado no conclave, daqueles conservadores que estão olhando para trás. Papa Leão sabe quais são os pecados da Igreja. Aliás, ele usou uma palavra importante. Ele falou de “feridas da Igreja”. Aos novos sacerdotes da diocese de Roma, ele disse: Vamos reconstruir uma Igreja ferida, que foi enviada ao mundo ferido, numa criação ferida. Ou seja, está juntando o elemento religioso ao elemento espiritual, ao elemento social e ao elemento geopolítico. Isso é aquilo que torna interessante a personalidade desse novo papa.
IHU – Dias antes do conclave, o senhor disse que os cardeais buscavam um centrista e não um Francisco II, alguém que fosse capaz de reunir as várias partes da Igreja e seguir um curso cauteloso de reforma. Esta figura parece ser Leão XIV? É mesmo possível conciliar grupos tão díspares e ainda assim implementar o Vaticano II, evitando as tensões com os ultraconservadores? É possível contornar o conflito?
Marco Politi – Vamos ver o que vai acontecer. Prevost, com certeza, responde à figura de um papa que gosta de recosturar. Eu gosto desta palavra que diz respeito às nossas avós que sabiam costurar um tecido, uma meia rasgada. Ele é uma figura que costura, que consegue reparar para superar as dilacerações e seguir adiante e continuar com a obra de renovação da Igreja.
Preciso dizer que muitos ficaram surpresos com a rapidez desse conclave. Foi um conclave extremamente interessante por causa de um primeiro elemento: foi derrotado o front conservador. Steve Bannon, não por acaso um dos mais trumpistas, inserindo-se na linha política suprematista orientada à defesa agressiva dos valores do passado – pensemos no movimento evangélico dos Estados Unidos, mas também na direita católica –, falou que a escolha desse papa foi péssima. Ou seja, esse papa nasceu da derrota do front conservador. Durante as reuniões pré-conclave, alguns cardeais quiseram processar o pontificado de Francisco, mas não conseguiram reelaborá-lo.
O cardeal Müller, em algumas entrevistas públicas, falou da ambiguidade de Francisco sobre a questão dos homossexuais, sobre o papel das mulheres, a importância de defender a autoridade dos bispos, do fato de o sínodo ter permitido que mulheres e leigos votassem pela primeira vez no Sínodo mundial, juntamente com os bispos. Lembremos que o Sínodo mundial de 2023 e 2024 foi a primeira vez em que mulheres tiveram o direito de voto após 1.700 anos. Foi algo que teve um significado realmente enorme, parecido com a entrada, pela primeira vez no Congresso dos Estados Unidos, de senadores afro-americanos, filhos de escravos. Quanto tempo demorou para que tivesse um presidente negro nos Estados Unidos, com Obama.
Müller, dias antes do conclave, se manifestou contra as políticas de Francisco, como o documento sobre a fraternidade entre as religiões. Sabemos que Francisco assinou, com um grande expoente da corrente sunita do Islã, no Cairo, um documento sobre a fraternidade entre as religiões, no qual não apenas o “outro” não é considerado um inimigo, mas é considerado um irmão a amar e apoiar, para além de qualquer fundamentalismo religioso. Sobretudo do ponto de vista teológico, foi um documento que faz parte do projeto de Deus. Esse processo contra a linha teológica de Francisco fracassou nas reuniões pré-conclave e fracassou também nas votações do conclave.
A frente conservadora tinha um candidato, o cardeal de Budapeste, que queria trazer ordem na “disruptura” da Igreja Católica, como ele disse. Ele foi presidente da Congregação dos Bispos da Europa e teve muito contato com diversos âmbito; é uma pessoa muito estimada. Enfim, desde a primeira votação se entendeu que ele não tinha como seguir adiante.
Ao mesmo tempo, um candidato importante, de grande nível, como o secretário de estado Parolin, um reformista moderado, um homem de equilíbrio, um homem com grande sensibilidade, culto, capaz de ótimas capacidades diplomáticas, começou com um pacote de 40, 50 votos, mas depois não foi além disso e não conseguiu chegar ao número necessário de 89 votos. Nos ambientes romanos e jornalísticos de pessoas que seguem a Igreja e o Vaticano há 20, 30, 40 anos, havia certeza de que o cardeal Parolin seria eleito papa.
Essa eleição não ocorreu porque a personalidade de Prevost foi considerada muito interessante como representante de dois mundos, os Estados Unidos e a América Latina, além do seu caráter missionário. Prevost foi também vice-presidente da Conferência Episcopal Peruana. Andrea Riccardi, líder da Comunidade de Sant’Egidio, falou dele como uma personalidade internacional e mestiça.
Esse elemento de mistura, um americano que se torna vice-presidente da Conferência Episcopal do Peru e depois cidadão peruano e que, ao mesmo tempo, foi prior geral dos agostinianos por doze anos, mostra que ele tem um olhar, uma visão global sobre as muitas comunidades espalhadas pelo mundo todo. Também como prefeito do Dicastério para os Bispos, ele tinha uma experiência da gestão central. É um homem que teve a experiência da Cúria, mas não é curial. Não tem a etiqueta de homem que só viveu na Cúria e nunca conheceu o mundo. Do ponto de vista das votações do conclave, foi fundamental a atitude do Sul global.
Lembro que antes do conclave se perguntava o que os cardeais, escolhidos dos pontos mais remotos do planeta, vão fazer se nem se conhecem. Somente 60 deles se conheciam. Os outros vinham de países muito distantes. Mas foram esses cardeais que quiseram continuar com a internacionalização do papado, com um papa não curial, não europeu, mas sob a égide da sinodalidade, continuar com o debate entre Igreja e mundo, seguindo então a experiência dos Sínodos mundiais de 2023 e 2024, sem se basear e se apegar apenas ao passado.
IHU – O senhor citou a famosa frase do cardeal Martini: “A Igreja está 200 anos atrasada”. Francisco se preocupou em iniciar processos de reformas mesmo enfrentando o que o senhor chama de guerra civil clandestina. Como avalia a abertura do Papa Leão para o aprofundamento da sinodalidade, considerando a Assembleia Eclesial a ser realizada em 2028? Quais os maiores desafios que ele enfrentará nessa seara?
Marco Politi – Essa é uma pergunta muito importante. O Papa Leão considerou bastante relevante a colegialidade, destacou a importância da sinodalidade em diversas falas. Agora será preciso ver como ele vai enfrentar o último projeto do Papa Francisco, pois Francisco, desde o seu leito no hospital, com grande surpresa de todos, lançou um programa trienal de reuniões em nível paroquial da diocese, das conferências episcopais nacionais e continentais, sobre os grandes temas da sinodalidade, a serem concluídos com uma assembleia eclesial. Os nomes são muito importantes.
Ele não falou de um novo Sínodo, para evitar disputas teológicas sobre a autoridade de quem participa de um sínodo, mas usou o termo assembleia eclesial, uma assembleia da comunidade dos crentes. Três grandes temas surgiram dos sínodos de 2023 e 2024:
Esse é o grande desafio. Vamos ver como o Papa Prevost vai enfrentar essa questão. O que podemos observar é que pensando na promoção das mulheres em papéis importantes, parece que o Papa Prevost concorda com o fato de que as mulheres exerçam papéis de liderança na Cúria romana. No Jubileu da Santa Sé, ele quis que as meditações fossem escritas e lidas a todos os membros da Cúria por uma irmã. Isso já é um sinal muito importante, mas, de resto, precisamos ver. Essa ainda é uma página em branco que vai ser escrita.
IHU – A respeito das mulheres na Igreja, vimos alguns sinais com a nomeação de religiosas promovidas pelo Papa Prevost. Juntamente com o debate sobre o lugar das mulheres na Igreja, Francisco trouxe uma provocação bem significativa com relação à proposta de desmasculinizar a Igreja. Como enxerga essa perspectiva? No conjunto dessa discussão estiveram muito fortes o debate e as preocupações em torno do clericalismo. O que o senhor nos diz, hoje, sobre essa temática?
Marco Politi – A posição de Francisco foi muito clara, apesar das contradições que é preciso observar. Ele foi muito claro no sentido de desclericalizar a Igreja e muito claro na intenção de desmasculinizá-la também. Um ano antes de morrer, ele quis que os cardeais o ajudassem a refletir sobre a situação da Igreja universal e que as reuniões do Conselho de Cardeais fossem dedicadas a intervenções acerca do tema das mulheres na Igreja. Entre as diversas pessoas que interviram, a teóloga e presidente da Coordenação de Teólogas Italianas falou da necessidade de desmasculinizar a Igreja. Foi interessante o fato que uma bispa da comunidade anglicana foi convidada para explicar como funciona um episcopado feminino. Sabemos que Francisco excluiu, em diversas entrevistas, o fato que pudesse existir um diaconato sacramental feminino, mas não sabemos até que ponto essas declarações refletiam suas convicções ou eram ditadas pela situação política dentro da Igreja.
O que surgiu nesses doze anos do pontificado de Francisco é que um papa não é mais o chefe absoluto da Igreja, mas, tomando as decisões, ele deve considerar as relações de força dentro da Igreja: as maiorias, as minorias, as coalizões, as oposições. Às vezes, Francisco governou com base em solavancos, como em relação à questão dos homossexuais. Francisco foi aquele que deu o direito de cidadania aos homossexuais dentro da Igreja Católica e a comunhão para os divorciados e recasados.
Mas outras vezes, ele precisou dar um passo atrás. Francisco quis que o Sínodo para a Amazônia pudesse discutir a questão dos padres casados. Do contrário, não teria escolhido como relator o cardeal Hummes que, todos sabem, há décadas foi a favor da possibilidade de um clero casado, porque isso não é um dogma da Igreja latina. Mas quando essa possibilidade se tornou concreta no Sínodo para a Amazônia, diante da oposição do Papa Emérito Bento XVI, do cardeal Sarah, e de muitos outros cardeais, como Ruini, Müller, Burke e outros, o papa teve que parar. Como se diz em italiano, ele “ficou com as costas na parede” e não pôde seguir adiante.
Será interessante ver como o Papa Prevost vai enfrentar essa questão que está se tornando cada vez mais importante, pelo menos no hemisfério Norte. Em meu livro A revolução inacabada, é possível ver como as teólogas americanas, europeias, mas também de algumas da América Latina, estão cansadas e irritadas diante do que está acontecendo. Elas querem que se continue no caminho do diaconato feminino. Mas também é possível ver como a Igreja está dividida com base na geopolítica e na cultura. Tem irmãs e teólogas na África de primeiro nível que estão convencidas da necessidade do diaconato feminino. Mas dizem que antes é preciso mudar a mentalidade da sociedade em geral. Ou seja, desmasculinizar e despatriarcalizar a sociedade, dando o direito de palavra, de poder e de autoridade às mulheres. Se isso não acontecer em grandes partes da África, da Ásia, mas também da América Latina, não será possível seguir adiante.
Como sabemos, no hemisfério Norte há grandes divisões. O episcopado norte-americano está profundamente dividido entre conservadores e reformadores, o episcopado da Europa oriental é muito mais tradicionalista do que o episcopado da Europa ocidental. Existe esse paradoxo que podemos ver com as conferências episcopais africanas, que declararam em bloco que não vão realizar a bênção aos casais homossexuais, e que falam quase de forma provocativa: vocês chegaram aqui 200 anos atrás, nos falaram que a poligamia não pode existir, nos falaram que não é possível acabar com o casamento, e agora estão falando o contrário. Ou seja, há um confronto real entre posicionamentos culturais diferentes. É por isso que Leão XIV, que usa as palavras com muita atenção e determinação, falou, num de seus discursos, de convivência das diferenças. Vamos ver como isso será realizado.
IHU – O senhor já citou o discurso do Papa Leão para a Cúria: os papas passam, a Cúria permanece. Isso parece indicar um desejo de uma relação menos crítica, menos conflitiva com a Cúria? Não há o risco de retomada, a partir dessa postura, da força central desse organismo, como nos tempos anteriores? É possível adotar uma postura menos disruptiva do que Francisco e não ser engolido pela máquina curial como os papas João Paulo II e Bento XVI?
Marco Politi – Sim, o grande desafio é ver como será possível reconstituir uma autoridade central. O Papa Francisco falava de uma Cúria a serviço dos papas e dos bispos, para dizer que era importante ter um elemento central de coordenação sem voltar a medidas do passado. É claro que o modelo do passado, Roma decide e todo o restante do mundo obedece, não funciona mais.
Falei antes que a figura do Papa hoje não tem mais um poder absoluto como se pensava no passado, mas a Cúria também não tem mais o poder absoluto que detinha. Podemos ver isso com o Caminho Sinodal alemão. O Papa Francisco era muito crítico em relação a esse Caminho Sinodal. Os bispos alemães foram chamados a Roma, foram advertidos sobre o que eles estavam fazendo, sobre a discussão em torno do sacerdócio feminino e do clero casado, mas a Conferência Episcopal Alemã foi adiante. Isso era algo impensável antes com Papa Bento XVI com João Paulo II. Ao mesmo tempo, a Cúria, com o cardeal Fernández, realiza um documento em que se decide que os casais homossexuais, mesmo com tantas limitações, podem e devem ser abençoados. Um bloco continental, como as Conferências Episcopais de Madagascar e da África, disse que não irá adotar tal prática. Um cardeal africano foi até Roma e disse que era fiel, que não era um adversário do Papa, mas a Igreja africana não faria isso por questões culturais, e o Papa precisou aceitar.
Essa é a situação de transição e também de crescimento da autoconsciência de diversas realidades nacionais e continentais com que o novo Papa tem que se deparar. Então, por um lado, é preciso reconstruir uma coordenação central, que é um elemento de força para a Igreja Católica, pois somente a Igreja tem um papa que tem uma voz internacionalmente reconhecida. Ao mesmo tempo, é preciso considerar as diversidades e os diversos tempos de crescimento que existem. Foi muito interessante o Sínodo mundial de 2024, porque foi possível ver um crescimento enorme da autoconsciência da Igreja africana, que hoje é uma Igreja em expansão em termos de número de crentes e de sacerdotes, em termos de institutos religiosos e congregações religiosas. A Igreja africana se descolonizou completamente daquela pegada romana.
Depois do Concílio, havia cardeais africanos, como Malula ou Gantin, que eram africanos, e, ao mesmo tempo, tinham uma pegada romana 100%. As novas gerações de cardeais e bispos africanos, na sua catolicidade, têm uma grande consciência da própria africanidade. O cardeal Schönborn, austríaco que se aposentou alguns dias atrás, contava que em seu primeiro sínodo, em 1985, Roma estava no centro. Agora, no último sínodo de 2024, o centro era o Sul global. Ele disse que mais uma página virou. Não estamos mais no centro. O novo Papa precisa enfrentar essa grande novidade.
IHU – Sobretudo na primeira homilia, Prevost enfatizou muito a questão da divindade de Jesus. Foi possível perceber que subjacente estava uma preocupação típica do Concílio de Calcedônia, onde Leão Magno teve um papel importante. Daí sua crítica às tendências em curso de enfatizar o Jesus narrado, o Jesus histórico. No discurso aos membros da Fundação Centesimus Annus, pró-pontífice, em 17 de maio, ele enfatizou a questão da doutrina, que para ele é essencial. A seu ver, o diálogo sem a doutrina se esvazia. O que acha dessa ênfase de Prevost na doutrina como ciência e disciplina, algo que para ele se torna essencial hoje?
Marco Politi – Eu não pretendo ser um professor de teologia. Como observador, posso dizer que entre as sete palavras-chave, uma delas é Cristo Ressuscitado. Então, sim, tem esse forte destaque da divindade de Cristo. O destaque atribuído ao primado de Deus é um elemento que caracteriza, em última instância, a fé cristã. Aí também podemos ver a vontade de Leão de juntar uma forte linha teológica daquilo que é considerado o caminho teológico realizado em dois mil anos pela Igreja, ou seja, Cristo como o Filho de Deus. Sem a divindade de Deus acabamos em um ateísmo, de fato, como o Papa Leão falou.
Por outro lado, ele fala de estarmos abertos para os desafios do mundo e não olharmos para o passado. Nas meditações para o Jubileu da Santa Sé, escritas e lidas no outro dia pela irmã Maria Glória Riva, na presença do pontífice, falou-se que não se pode ter nostalgia, saudade de um passado que não existe. Mas, ao mesmo tempo, é preciso manter o núcleo fundamental da fé cristã. Acerca disso o Papa Leão é muito atento, assim como ele está atento aos detalhes externos.
O fato de ele ter resgatado, em alguns momentos, a estola, a mozeta vermelha, a batina branca, manifesta a vontade de manter a ligação com elementos da tradição que distinguem o papa de outras autoridades mundiais e de outros líderes do mundo político e cultural, ao mesmo tempo que mantém um estilo americano muito alegre. Ele encontrou o tenista, outros jogadores que venceram campeonatos. No carro, sentou-se ao lado do motorista e não atrás. Ele se deixa fotografar, mas não com selfie. Ou seja, ele quer que exista uma diferença de papéis, de status.
IHU – Roma está preparada para deixar de ser o centro da Igreja tal como o pontificado profético de Francisco apontou, sugerindo as periferias do mundo como locus do cristianismo?
Marco Politi – Acredito que Prevost, pela experiência internacional e missionária, será atento às periferias do mundo, mas, na sua visão, me parece que as periferias do mundo conseguem falar porque existe um centro, um centro que dá uma voz universal às suas instâncias. Durante o Sínodo de 2024, contaram em uma coletiva de imprensa que uma delegação de budistas estava participando de um encontro com o cardeal Prevost e aí o porta-voz dessa delegação de budistas, quando saiu do Vaticano, expressou: Nós somos muitos, temos muitas coisas a dizer, temos uma forte tradição, mas sentimos muito não termos um papa que consiga falar em nível universal. Essa pequena anedota serve para entender que a variedade e a multiplicidade das situações da Igreja Católica contemporânea, aquelas que Francisco chamava poliedro, exigem também um centro.
Francisco falava do pastor e das ovelhas. Do pastor que precisa ter o cheiro das ovelhas. Ele dizia que, às vezes, o pastor vai para frente, às vezes, ele está no centro e, às vezes, as ovelhas estão na frente, pois têm uma orientação melhor, uma intuição melhor sobre o caminho a seguir. Então, o Sínodo, na visão de Papa Leão, precisa ser conjugado também com uma capacidade de coordenação e de autoridade central.
IHU – Gostaria de acrescentar algo?
Marco Politi – Sim. Falando em sinodalidade e em coordenação central, de uma comunidade tão poliédrica e universal como é a Igreja Católica, é interessante, sempre, o cuidado aos detalhes. É interessante como foi feita a cerimônia de início de pontificado, pensando naquele detalhe do rito de obediência dos cardeais. Naquela missa, que antes se chamava missa de entronização, de subida ao trono do pontífice, existia um momento em que os cardeais juravam a sua obediência ao papa. Dessa vez, Prevost quis que a obediência, a ligação direta, não fosse entre o Papa e os vértices da Igreja, ou seja, o Colégio Cardinalício, mas entre o Papa e toda a Igreja. Então, a obediência foi levada ao Papa por três cardeais, por um bispo, um sacerdote, um diácono, por dois religiosos, um homem e uma mulher, e por um casal de jovens, um homem e uma mulher, mostrando, novamente e de forma visível, a sinodalidade da Igreja.