12 Julho 2025
"Na realidade atual, precisamos exorcizar de nossas comunidades esse Cristianismo que separa o humano do divino. Em qualquer religião, ritos e devoções são expressões culturais legítimas"
O artigo é de Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e escritor. Assessora movimentos sociais e comunidades eclesiais de base e é membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo.
Marcelo Barros (Foto: Arquivo pessoal)
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
No “Grande Sertão: Veredas”, a expressão de Guimarães Rosa era “o diabo no meio do redemoinho”. No mundo atual, quem está no redemoinho da vida não é só o diabo, do qual as comunidades neopentecostais e católicas fundamentalistas gostam tanto de falar. O próprio Deus tem seu nome na cédula do dólar e já se foi o tempo no qual a fotografia do Che Guevara, trucidado pelo império contemporâneo, evocava a imagem de Jesus morto.
Conforme cálculos internacionais, a humanidade possui, hoje, condições de alimentar e garantir a vida para 11 bilhões de pessoas. No entanto, apesar disso, de acordo com dados da ONU, quase um bilhão e 200 milhões de pessoas, em 112 países do mundo, vivem em condições de extrema pobreza.
Atualmente, o mundo enfrenta um número recorde de guerras e conflitos violentos. São mais de 56 conflitos armados, que atingem 92 nações, principalmente, na Ásia e na África. Comumente, os meios de comunicação falam do genocídio que, abertamente e como espetáculo, o Estado de Israel e o governo dos Estados Unidos cometem contra o povo palestino, em Gaza e nos territórios ocupados. Também noticiam a guerra dos Estados Unidos e da OTAN contra a Rússia na Ucrânia.
No entanto, nada dizem sobre as guerras civis que ocorrem no Sudão, em Myanmar e no Magreb. Não noticiam conflitos armados que vitimam milhares de pessoas, na República Democrática do Congo, no noroeste do Paquistão, no Iêmen e na Etiópia. Nas Américas, não há nenhuma guerra entre países, mas organismos internacionais consideram a América Latina o continente mais violento do mundo.
Sem dúvida, um dos elementos comuns à maioria das guerras e dos conflitos é o fator religioso. A religião divide judeus e muçulmanos na Palestina, hinduístas e muçulmanos no Paquistão, cristãos católicos e cristãos protestantes na Irlanda do Norte, assim como opõe cristãos e muçulmanos em regiões da Nigéria. Além disso, no mundo inteiro, a extrema-direita se organiza em retiros religiosos e, em vários países, assessora a tomada do poder político por líderes que têm lemas como “Deus acima de tudo” e “Cristo abençoe a América para os americanos”.
Esses lemas inspiram a política de Donald Trump contra migrantes e povos, que ele considera inferiores, como latino-americanos e africanos. É com o apoio explícito de não poucos ministros religiosos e a partir de princípios da velha Cristandade que governantes como Nayb Bukele em El Salvador, Rodrigo Chaves, em Costa Rica e Javier Milei, na Argentina realizam suas políticas de extrema-direita contra as classes trabalhadoras e como braços do império estadunidense.
No nosso Congresso Nacional, esses mesmos princípios mobilizam congressistas terrivelmente evangélicos e católicos de direita, membros das bancadas, do Bíblia, do boi e da bala que apoiam os presidentes do Senado e da Câmara na tarefa de destruírem o pouco que resta de políticas públicas, a favor do Brasil de baixo e da democracia que ainda sobrevive em nosso país.
As Igrejas e outras religiões assistem impassíveis a esse triste espetáculo da perversão do nome de Deus e da fé.
No passado, em nome de Jesus Cristo, a Igreja Católica e outras Igrejas legitimaram a violência das conquistas e da colonização. Atualmente, essa onda de conservadorismo religioso atrai filhos e filhas da elite escravocrata que perpetua desigualdades e injustiças sociais, assim como estruturas políticas antidemocráticas.
Por trás de tudo isso, está um modo de conceber Deus, todo-poderoso, Senhor absoluto, do qual se pode dizer que tudo o que acontece é porque Deus quer. É o tipo de fé que faz um proprietário de carro de luxo colocar no para-brisa do veículo: “esse foi Jesus que me deu”.
Martin Buber, filósofo e escritor judeu, afirmava: “De toda linguagem humana, Deus é a palavra mais sobrecarregada. Nenhuma outra foi tão dilacerada, maltratada e distorcida. Exatamente por isso, não posso renunciar a ela. (...) Não conseguiremos lavar a palavra Deus de todas as manchas. Mas podemos levantá-la da terra, mesmo manchada. (...) Onde duas ou mais pessoas se unem em função da amorosidade, como princípio de vida, estão tornando verdadeiro o nome de Deus [1]”.
Se Deus é motivo de guerras e ódios não pode ser Deus. Quem faz isso é a energia de divisão – a que o Judaísmo chama “o outro lado”. O rabino Nilton Bonder explica: “A palavra demônio tem sua raiz no verbo bloquear ou impedir. Satã é denominado ‘o outro lado’ (Sitra Achra). Representa um bloqueio no caminho da vida, enquanto a Cabala (em hebraico recebimento) se concretiza na liberação desse fluxo”. Satã não é uma entidade e sim forças que nos dividem e significam, literalmente, obstáculos ao nosso retorno ao caminho da saúde e da integração interior e social”.
Deus é Luz do amor que unifica e liberta. No Budismo, é Compaixão (Karuna); para os muçulmanos, Misericórdia. Para as comunidades afrodescendentes é Axé, energia vital e amorosa. Para as Igrejas Cristãs, só pode ser força de amor e comunhão. Não pode ser de direita.
No século VI, o papa Gregório explicou que conhecia dois tipos de idolatria: a de corrupção e a de perversão. A primeira consiste em adorar deuses falsos. O segundo tipo é mais comum e mais pernicioso. Consiste, não em adorar deuses falsos e sim em adorar o Deus verdadeiro de forma falsa. Uma dessas formas mais perniciosas ocorre quando separamos o humano do divino. Em tempos antigos, a Igreja rejeitou o Monofisismo que falava de Jesus como Deus, mas negava a sua natureza humana e igual a nós.
A tradição das Igrejas acabou por facilitar esse tipo de espiritualidade. A nova versão do Missal Romano ainda conclui as orações, afirmando: “Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus, convosco..”. Esquece de afirmar que Ele é, ao mesmo tempo, humano.
Ainda há movimentos de espiritualidade, nos quais, jovens se dizem “escravos e escravas de Maria”. Qualquer um de nós se sentiria ofendido, se alguém pensasse que nos agradaria se se colocasse como escrava minha ou sua. Como podemos imaginar que Maria, mãe de Jesus, ou o próprio Deus, possam gostar disso?
Desde séculos antigos, no ritual cristão do batismo, antes de proclamar a sua fé, quem quer ser batizado, deve antes testemunhar, claramente, o tipo de fé a que renuncia. Na linguagem antiga, se propunha renunciar a Satanás e todas as suas artimanhas e seduções.
Quem perverte a Divindade em um Deus cruel, mesquinho, intolerante e inimigo da humanidade, comete o pior tipo de idolatria e de insulto ao Amor Divino.
Na realidade atual, precisamos exorcizar de nossas comunidades esse Cristianismo que separa o humano do divino. Em qualquer religião, ritos e devoções são expressões culturais legítimas. No entanto, não devem ser usadas como instrumentos para impedir que as pessoas de fé acolham a força própria da profecia que Jesus Cristo veio trazer ao mundo. Na linguagem da época, os evangelhos chamam essa proposta de “reinado divino”. No mundo atual, seria algo como a proposta indígena de uma república, organizada a partir de uma democracia radical e direta, construída a partir do paradigma do bem-viver.
[1] - MARTIN BUBER, l´ eclissi di Dio, citado por GIOVANNI FERRETI, Il Grande Compito, Assisi, Cittadella, 2013, pp. 69- 70.
[2] - NILTON BONDER, A Cabala da Comida, do Dinheiro e da Inveja, Rio de Janeiro, Imago, 1999, p. 36 e 41.