Vozes de Emaús: sinodalidade como método para transformação da sociedade. Artigo de Celso Pinto Carias

Foto: Lauren Palma | IHU

20 Setembro 2025

"Neste momento da história tudo indica que o modelo de sociedade no qual se busca um crescimento infinito da riqueza, um desenvolvimento que nunca para, que suga a natureza e envenena a vida, não tem como se configurar como projeto factível. Inspirados na lógica do Bem Viver, do Sumak Kawsay, do Ubuntu de nossos ancestrais, precisaremos encontrar uma forma viável de estruturar uma sociedade de paz e justiça, fraternidade e solidariedade, uma sociedade onde o equilíbrio ecológico seja estrutural e não circunstancial, uma sociedade sinodal."

O artigo é de Celso Pinto Carias (o "Mendigo de Deus"), doutor em teologia e professor na PUC-Rio, assessor da Ampliada Nacional das CEBs e do Setor CEBs do Comissão Pastoral Episcopal para o Laicato da CNBB.

Celso Pinto Carias | Foto: Arquivo Pessoal

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo.

Embora muitos identifiquem a crise civilizatória na qual estamos metidos, podemos afirmar que ainda não se analisou com profundidade vários aspectos desta crise. Que mundo resultará, se resultará, depois da crise? Tudo indica que precisaremos de novas ferramentas de análise, pois estamos entrando em um novo tempo para a humanidade. Neste sentido, o caminho sinodal proposto por Francisco é também uma ferramenta para testemunharmos um caminho de mudança em nosso mundo. Dois números (47 e 48) do Documento Final, intitulados “a sinodalidade como profecia social”, vão pontuar explicitamente a necessidade da Igreja ser testemunha de relações novas no interior de uma realidade injusta.

Queremos aqui, em perspectiva dialogal, justamente apontar possibilidades de encontro com a sociedade em geral, não apenas como cristãos católicos, afirmando que sem este “caminhar juntos”, em sentido amplo, não vamos ter um futuro promissor para a humanidade.

Como indica Byung-Chul Han, filósofo coreano radicado na Alemanha, autor de “Sociedade do Cansaço”, estamos vivendo sob o domínio da psicopolítica, isto é, o controle de mentes e corações. Não se trata mais de usar a força bruta, mas um controle que cabe em nossas próprias mãos: o smartphone, por exemplo. Estamos nos tornando exploradores de nós mesmos. Assim também o nosso Ailton Krenak, em “A vida não é útil” nos alerta: “Hoje essa cultura de revoluções, de povos que movem e derrubam governos, não tem mais sentido”; e ainda: “Quem vai fazer a revolução contra corporações?”. E Krenak, com sabedoria ancestral, vaticina: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer para escapar dessa”, no livro “Ideias para adiar o fim do mundo”.

E o Papa Francisco foi mais uma voz a somar na esperança de um novo mundo. A partir da Igreja Católica ele convoca todos e todas para um grande diálogo humanitário que leve em consideração que somos natureza. E interpela a mesma Igreja sair das amarras institucionais que não deixam a liberdade dos filhos de Deus experimentar a graça de uma realidade onde cada ser humano, homem e mulher, possam viver com dignidade. A perspectiva sinodal também deve nos colocar na escuta dos caminhos que o mundo está traçando do ponto vista metodológico, para vislumbrarmos um projeto político a serviço, verdadeiramente, do bem comum. A Igreja precisa ser sal e fermento no meio da massa, e neste sentido, buscar a dialogar com todos e todas.

Já foi afirmado, mas é preciso repetir, da Escritura aos documentos eclesiais mais recentes, há o reconhecimento de que a dimensão sinodal, isto é, caminhar juntos, é constitutivo da Igreja. Contudo, se essa dimensão não se formalizar na prática, certamente iremos caminhar à revelia do mundo, da realidade e da história, em uma direção um tanto quanto arrogante em relação ao caminho da humanidade, e, evidentemente, com a crença de que a Igreja hoje pode ser a grande salvadora do mundo. As instituições que representam o cristianismo podem se tornar um patrimônio que só terá valor como arte a ser contemplada.

Mas caminhar exige que saibamos como fazer o caminho. Exige meto-odos. Palavra irmã de sin-odos. Precisamos de um mapa para fazer o caminho. A escolha de um esquema metodológico não garante, por si mesmo, alcançar o objetivo. Faz-se necessário também um processo pedagógico. Aqui está um equivoco muito comum. Acontece, inclusive, com o famoso método ver, julgar e agir.

Geralmente o modelo pedagógico, seja ele qual for, no qual se busca realizar o método, se não levar em consideração a autonomia cognitiva e criativa das pessoas que participam, não será um caminhar juntos. Poderíamos parafrasear São João Crisostomo afirmando que sínodo e método são sinônimos.

O processo ocidental de construção do conhecimento é extremamente positivista, calcado em mecanismos de repetição, transmissão e fragmentação. Um modelo colonial no qual as culturas são confrontadas com um modelo previamente entendido como superior, sem levar em consideração a riqueza peculiar de cada grupo e pessoa. É preciso destacar que o caminho não é linear. O caminho não é uma estrada plana. Formar não é colocar na forma. Assim sendo, se queremos, de fato, resgatar o modelo sinodal dos primeiros tempos do cristianismo, precisaremos buscar, como diz Francisco, caminhar com o povo, e não para ou pelo povo. É o que Francisco tem chamado de postura poliédrica.

Cientes de nosso jeito de ser, isto é, que só podemos ser se formos juntos, precisaremos também redescobrir como encaixar o projeto maior do Reino de Deus no meio do mundo, como o cristianismo já fez em outros momentos históricos. A plenitude da salvação não se dá em detrimento do caminho histórico. Cremos que quanto a isso não se faz necessário nenhuma explicação a mais.

Ao longo dos séculos as instituições cristãs acertaram ou erraram ao tentar relacionar os valores fundamentais do Reino com a estrutura de sociedade na qual seres humanos estão inseridos. Infelizmente não é difícil constatar quantas vezes setores significativos das instituições cristãs não foram fiéis na manutenção de um Projeto no qual a dignidade da vida fosse garantida para todos e todas. E hoje podemos ainda falar dos “direitos da natureza”, pois também não podemos ser sem ela.

Portanto, falar de caminho sinodal significa falar não apenas para dentro da Igreja, embora seja necessário, mas também para fora. A Igreja vive no mundo, e nesta relação ela pode, enquanto representada em seus membros, trair os valores fundamentais do Evangelho. O Projeto de Vida de Jesus Cristo exige que busquemos vida por dentro da estrutura social. Assim, não podemos, como insistiu o Papa Francisco, apoiar, por exemplo, uma economia que não distribua com justiça os bens deste mundo. Do contrário, estaremos produzindo uma economia que mata. E por favor, isto não pode ser reduzido a uma ideologia especifica, pois bem antes dos tempos modernos, santos e santas buscaram ser sinais da vida desejada por Deus para toda obra da criação e, muitas vezes foram impedidos/as pelos poderosos deste mundo que desejavam, como relata o livro do Gênesis, ser iguais a Deus.

Neste momento da história tudo indica que o modelo de sociedade no qual se busca um crescimento infinito da riqueza, um desenvolvimento que nunca para, que suga a natureza e envenena a vida, não tem como se configurar como projeto factível. Inspirados na lógica do Bem Viver, do Sumak Kawsay, do Ubuntu de nossos ancestrais, precisaremos encontrar uma forma viável de estruturar uma sociedade de paz e justiça, fraternidade e solidariedade, uma sociedade onde o equilíbrio ecológico seja estrutural e não circunstancial, uma sociedade sinodal.

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