14 Outubro 2025
Acordo ignora crimes de guerra, autodeterminação da Palestina e qualquer possibilidade de reparação. Genocidas saem vencedores. E cessar-fogo pode ser temporário, afinal, há décadas Israel rompe tratados para impor seu terror sem fim
O artigo é de Chris Hedges, publicado por substack e reproduzido por Outras Palavras, 13-10-2025. A tradução é de Rôney Rodrigues.
Chris Hedges é jornalista e professor, escreveu 11 livros, incluindo "Days of Destruction, Days of Revolt", em parceria com o cartunista Joe Sacco.
Eis o artigo.
Não há escassez de planos de paz fracassados na Palestina ocupada, todos incorporando fases e cronogramas detalhados, remontando à presidência de Jimmy Carter. Eles terminam sempre da mesma maneira. Israel obtém o que quer inicialmente — no caso mais recente, a libertação dos reféns israelenses restantes — enquanto ignora e viola todas as outras fases até retomar seus ataques ao povo palestino.
É um jogo sádico. Um carrossel da morte. Este cessar-fogo, como os do passado, é um intervalo para os comerciais. Um momento em que o condenado tem permissão para fumar um cigarro antes de ser metralhado em uma saraivada de balas.
Assim que os reféns israelenses forem libertados, o genocídio continuará. Não sei quão em breve. Vamos torcer para que o massacre em massa seja adiado por pelo menos algumas semanas. Mas uma pausa no genocídio é o melhor que podemos esperar. Israel está à beira de esvaziar Gaza, que foi praticamente obliterada após dois anos de bombardeios implacáveis. Ele não está prestes a ser detido. Este é o ápice do sonho sionista. Os Estados Unidos, que concederam a Israel impressionantes US$ 22 bilhões em ajuda militar desde 7 de outubro de 2023, não fecharão seu canal de fornecimento, a única ferramenta que poderia interromper o genocídio.
Israel, como sempre faz, culpará o Hamas e os palestinos por não cumprirem o acordo, muito provavelmente por uma recusa — verdadeira ou não — em se desarmar, como exige a proposta. Washington, condenando a suposta violação do Hamas, dará a Israel luz verde para continuar seu genocídio e criar a fantasia de Trump de uma Riviera de Gaza e “zona econômica especial” com a “relocação voluntária” de palestinos em troca de tokens digitais.
Dentre a miríade de planos de paz ao longo das décadas, o atual é o menos sério. Além de uma exigência de que o Hamas liberte os reféns em até 72 horas após o início do cessar-fogo, ele carece de detalhes e cronogramas impostos. Está repleto de ressalvas que permitem a Israel revogar o acordo. E esse é o objetivo. Ele não foi concebido para ser um caminho viável para a paz, o que a maioria dos líderes israelenses compreende. O jornal de maior circulação de Israel, o Israel Hayom, fundado pelo falecido magnata dos cassinos Sheldon Adelson para servir como porta-voz do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e defender o sionismo messiânico, instruiu seus leitores a não se preocuparem com o plano Trump porque é apenas “retórica”.
Israel, em um exemplo da proposta, “não retornará às áreas das quais se retirou, desde que o Hamas implemente integralmente o acordo”.
Quem decide se o Hamas “implementou integralmente” o acordo? Israel. Alguém acredita na boa-fé de Israel? Israel pode ser confiável como um árbitro objetivo do acordo? Se o Hamas — demonizado como um grupo terrorista — objetar, alguém ouvirá?
Como é possível que uma proposta de paz ignore o Parecer Consultivo de julho de 2024 da Corte Internacional de Justiça, que reiterou que a ocupação israelense é ilegal e deve terminar?
Como pode deixar de mencionar o direito à autodeterminação dos palestinos?
Por que os palestinos, que têm direito, segundo o direito internacional, à luta armada contra uma potência ocupante, devem se desarmar, enquanto Israel, a força ocupante ilegal, não deve?
Com que autoridade os EUA podem estabelecer um “governo transitório temporário” — o chamado “Conselho da Paz” de Trump e Tony Blair — deixando de lado o direito à autodeterminação palestino?
Quem deu aos EUA a autoridade para enviar a Gaza uma “Força Internacional de Estabilização”, um termo educado para ocupação estrangeira?
Como os palestinos devem se conformar com a aceitação de uma “barreira de segurança” israelense nas fronteiras de Gaza, uma confirmação de que a ocupação continuará?
Como pode qualquer proposta ignorar o genocídio em câmera lenta e a anexação da Cisjordânia?
Por que Israel, que destruiu Gaza, não é obrigado a pagar reparações?
O que os palestinos devem entender com a exigência na proposta por uma população de Gaza “desradicalizada”? Como se espera que isso seja realizado? Campos de reeducação? Censura em massa? A reescrita do currículo escolar? Prisão de imames “ofensores” nas mesquitas?
E quanto a abordar a retórica incendiária rotineiramente empregada por líderes israelenses que descrevem os palestinos como “animais humanos” e suas crianças como “cobrinhas”?
“Toda Gaza e cada criança em Gaza devem morrer de fome”, anunciou o rabino israelense Ronen Shaulov. “Não tenho piedade daqueles que, daqui a alguns anos, crescerão e não terão piedade de nós. Apenas uma quinta-coluna estúpida, um odiador de Israel, tem piedade de futuros terroristas, mesmo que hoje ainda sejam jovens e famintos. Espero que morram de fome, e se alguém tiver um problema com o que eu disse, o problema é dele.”
As violações israelenses de acordos de paz têm precedentes históricos.
Os Acordos de Camp David, assinados em 1978 pelo presidente egípcio Anwar Sadat e pelo primeiro-ministro israelense Menachem Begin — sem a participação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) — levaram ao Tratado de Paz Egito-Israel de 1979, que normalizou as relações diplomáticas entre Israel e Egito.
As fases subsequentes dos Acordos de Camp David, que incluíam a promessa de Israel de resolver a questão palestina em conjunto com a Jordânia e o Egito, permitir o autogoverno palestino na Cisjordânia e em Gaza em cinco anos e acabar com a construção de colônias israelenses na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, nunca foram implementadas.
Os Acordos de Oslo de 1993, assinados em 1993, viram a OLP reconhecer o direito de Israel de existir e Israel reconhecer a OLP como os representantes legítimos do povo palestino. No entanto, o que se seguiu foi o desempoderamento da OLP e sua transformação em uma força policial colonial. Oslo II, assinado em 1995, detalhou o processo em direção à paz e a um Estado palestino. Mas também ele nasceu morto. Estipulou que qualquer discussão sobre “assentamentos” judeus ilegais seria adiada até as negociações de status “final”. Até lá, as retiradas militares israelenses da Cisjordânia ocupada deveriam ter sido concluídas. A autoridade governamental estava prestes a ser transferida de Israel para a supostamente temporária Autoridade Palestina. Em vez disso, a Cisjordânia foi dividida nas Áreas A, B e C. A Autoridade Palestina tinha autoridade limitada nas Áreas A e B, enquanto Israel controlava toda a Área C, mais de 60% da Cisjordânia.
O direito dos refugiados palestinos de retornar às terras históricas que os colonos judeus lhes tomaram em 1948, quando Israel foi criado — um direito consagrado no direito internacional — foi renunciado pelo líder da OLP, Yasser Arafat. Isso alienou instantaneamente muitos palestinos, especialmente aqueles em Gaza, onde 75% são refugiados ou descendentes de refugiados. Como consequência, muitos palestinos abandonaram a OLP em favor do Hamas. Edward Said chamou os Acordos de Oslo de “um instrumento de rendição palestina, um Versalhes palestino” e criticou veementemente Arafat como “o Pétain dos palestinos”.
As retiradas militares israelenses programadas sob Oslo nunca ocorreram. Havia cerca de 250 mil colonos judeus na Cisjordânia quando o acordo de Oslo foi assinado. Seus números hoje aumentaram para pelo menos 700 mil.
O jornalista Robert Fisk chamou Oslo de “uma farsa, uma mentira, um truque para envolver Arafat e a OLP no abandono de tudo o que haviam procurado e lutado por mais de um quarto de século, um método de criar falsas esperanças para emascular a aspiração de um Estado”.
Israel quebrou unilateralmente o último cessar-fogo de dois meses em 18 de março deste ano, quando lançou ataques aéreos surpresa em Gaza. O escritório de Netanyahu afirmou que a retomada da campanha militar foi em resposta à recusa do Hamas em libertar reféns, sua rejeição a propostas de extensão do cessar-fogo e seus esforços para se rearmar. Israel matou mais de 400 pessoas no ataque inicial durante a noite e feriu mais de 500, massacrando e ferindo pessoas enquanto dormiam. O ataque frustrou a segunda etapa do acordo, que teria feito o Hamas libertar os reféns masculinos vivos restantes, tanto civis quanto soldados, em troca de uma troca de prisioneiros palestinos e o estabelecimento de um cessar-fogo permanente, juntamente com o eventual levantamento do bloqueio israelense a Gaza.
Israel tem realizado ataques assassinos em Gaza há décadas, chamando cinicamente o bombardeio de “cortar a grama”. Nenhum acordo de paz ou cessar-fogo jamais atrapalhou. Este não será exceção.
Esta saga sangrenta não acabou. Os objetivos de Israel permanecem inalterados: o despojo e o apagamento dos palestinos de sua terra.
A única paz que Israel pretende oferecer aos palestinos é a paz da cova.
Leia mais
- Decepção entre as famílias de prisioneiros palestinos exilados: desde esperá-los com roupas novas até voltar para casa chorando
- Quais dúvidas pairam sobre plano de paz de Trump para Gaza?
- Por que a guerra não acabou, não importa o quanto Trump proclame a paz em Gaza. Artigo de Jesus A. Nunez
- Israel e Hamas chegam a acordo sobre a primeira fase do plano de paz de Trump para Gaza
- Todos os pontos-chave do plano de Trump. E o que ele pode fazer com o sonho de um Estado palestino
- Trump e Netanyahu fazem um acordo para forçar o Hamas a se render sem esclarecer o futuro dos palestinos
- Com Tony Blair no comando e uma missão internacional de tropas: o que se sabe sobre o novo plano de Trump para a Palestina?
- A "Riviera" de Tony Blair que assusta todo o mundo árabe. Artigo de Fabio Carminati
- “Gaza criará um centro comercial e um resort de férias”, plano de Tony Blair apresentado a Trump
- Blair e Kushner se encontram com Trump. Uma cúpula sobre o futuro da Faixa de Gaza será realizada na Casa Branca
- Férias na Praia de Gaza. Artigo de Giuseppe Savagnone
- Trump zombou de Gaza com um polêmico vídeo criado com inteligência artificial
- Países árabes podem impedir planos de Trump para Gaza?
- Mar-a-Gaza ou Nakba? Transformar a Faixa de Gaza em Riviera é uma indignação para os árabes. Mas há quem sinta o cheiro do negócio
- Projeto "Riviera" de Trump nas ruínas de Gaza: deslocamento forçado para um centro de turismo e tecnologia