18 Junho 2025
O Kremlin e a Igreja Ortodoxa Russa perseguiram dezenas de líderes religiosos que clamavam pela paz. Os tribunais eclesiásticos os privam de garantias.
A reportagem é de Javier G. Cuesta, publicada por El País, 18-06-2025.
A Bíblia diz "não matarás", mas nas igrejas da Igreja Ortodoxa Russa é obrigatório rezar pela vitória dos invasores na guerra na Ucrânia. "Ó Deus, levanta-te em auxílio do teu povo e concede-nos a vitória pelo teu poder", diz a Oração pela Santa Rus, uma oração imposta pelo Patriarca Kirill — o líder da Igreja na Rússia — ao seu clero em todas as missas desde 2022, ano em que o Kremlin lançou uma invasão em larga escala ao país vizinho. Um padre desconhecido, Ioann Koval, ousou substituir a palavra "vitória" por "paz" e foi pessoalmente expulso pelo líder supremo.
Dezenas de outros líderes religiosos foram perseguidos por pedirem o fim da guerra, alguns deles presos ou banidos sob o temido rótulo de "agentes estrangeiros". A repressão coordenada entre o regime de Vladimir Putin e o patriarca chega, assim, ao último canto da Rússia onde se poderia falar de paz sem medo: as igrejas.
“Houve problemas entre a Rússia e a Ucrânia, é verdade. Por exemplo, a aceitação da língua russa. Mas eles deveriam ter sido resolvidos por meio de negociações. Não se pode ir à guerra! Não se pode matar! Ponto final!”, disse enfaticamente dom Grigory Mikhnov-Vaitenko a este jornal após celebrar a missa dominical diante de um pequeno grupo de paroquianos em uma capela remota em um parque industrial de São Petersburgo.
O clérigo toma chá todos os domingos com outros cristãos. Mikhnov-Vaitenko alcançou a fama em 2014 por protestar contra a inação da Igreja Ortodoxa Russa diante da anexação da Crimeia e da guerra iniciada pelo Kremlin no leste da Ucrânia. Um ano depois, filiou-se à Igreja Ortodoxa Apostólica, outra comunidade religiosa independente da Igreja Ortodoxa Russa. Em 16 de fevereiro de 2024, dia em que o opositor Alexei Navalny morreu na prisão, Mikhnov-Vaitenko foi preso a caminho de celebrar um culto em memória do arquirrival do presidente Putin, em um memorial às vítimas da repressão política. Pouco depois, o Kremlin declarou o bispo um "agente estrangeiro", o que implica em ostracismo.
"Visito prisões há mais de 10 anos, ajudando presos políticos, mas agora estou banido", lamenta Mikhnov-Vaitenko, cujo rótulo torna sua vida miserável. O agente estrangeiro corre o risco de ser preso e está impedido de participar de muitas atividades públicas.
O clérigo encontrou refúgio na Igreja Ortodoxa Apostólica, que é independente da Igreja Ortodoxa Russa, embora ambas compartilhem uma estrutura semelhante: ambas são registradas como "organizações religiosas não comerciais" junto às autoridades russas. No entanto, a Igreja Ortodoxa Russa fundiu-se de fato com o Estado, enquanto a Igreja Ortodoxa Apostólica corre o risco de ser liquidada por não servir a Putin.
"Se acontecer, terá acontecido", resignou-se o bispo. "As Testemunhas de Jeová são uma organização relativamente inofensiva que evita qualquer envolvimento com o Estado e foi banida. Esse medo existe, mas isso não significa que devemos interromper nossas atividades ou apoiar a guerra. Não será o caso", afirma Mikhnov-Vaitenko.
De acordo com um relatório apresentado à ONU por Sergei Chapnin, ex-diretor adjunto da Editora do Patriarcado de Moscou (o serviço editorial da Igreja Ortodoxa Russa), as autoridades abriram processos criminais contra pelo menos 16 figuras religiosas e processos administrativos contra outras trinta. Além disso, há pelo menos 19 julgamentos canônicos dentro da Igreja Ortodoxa Russa, uma simulação de tribunais comuns sem quaisquer garantias, segundo organizações de direitos humanos. Este jornal tentou obter a versão da Igreja Ortodoxa Russa sobre a situação, mas não obteve resposta.
O patriarca Kirill suspendeu o padre Dmitry Safronov de suas funções por três anos por oficiar o funeral de Navalny em 2024. Outro clérigo, Vladimir Korolev, reitor da Catedral de Kazan em Tula, foi removido por se recusar a permitir que crianças costurassem redes de camuflagem e arrecadassem dinheiro para o esforço de guerra na escola dominical que ele fundou.
"Um padre foi preso por duas semanas porque publicou uma foto da bandeira ucraniana de 2014 em suas redes sociais. Ninguém, em geral, procura fotos de 10 anos atrás", disse o padre Andrei Kordochkin por telefone, do exílio. Sua organização, Paz para Todos (Mir Vsem, em russo), ajuda outras pessoas religiosas perseguidas pelo regime e pela Igreja Ortodoxa Russa.
O objetivo deles é demonstrar que há "uma voz contra a guerra e o putinismo" dentro da igreja e demonstrar solidariedade ao clero, que só pode permanecer em silêncio. "Qualquer pessoa que more em uma província pode acabar sendo ostracizada. Não apenas pela comunidade da igreja, mas também por todos os seus vizinhos", diz Kordochkin, que alerta que padres e suas famílias "podem perder suas casas e todo o seu sustento se forem expulsos".
Entre outras ações, a Paz para Todos ajuda líderes religiosos a deixar a Rússia com vistos humanitários. "A perseguição nos territórios ocupados da Ucrânia é brutal", acrescenta Kordochkin.
O padre admite que os críticos da guerra são uma minoria, mas enfatiza que são uma minoria que incomoda os que estão no poder. "Uma parcela significativa da Igreja apoia Putin, isso é claro; mas tanto o Estado quanto a Igreja querem mostrar que há apoio total, e não é o caso. Nossa atividade os irrita porque era um dos últimos lugares onde havia espaço para debate", ressalta Kordochkin.
A Igreja Ortodoxa Russa é, legalmente, uma organização sem fins lucrativos, "mas tem suas peculiaridades", enfatiza o advogado de direitos humanos Mikhail Benyash, que ironicamente observa que essa organização é registrada da mesma forma que a antiga ONG de Navalny.
Uma de suas peculiaridades é seu próprio sistema judicial, o instrumento usado para reprimir padres indisciplinados. Esse mecanismo não oferece as garantias de um tribunal comum: seus julgamentos são realizados a portas fechadas, a presença de advogados não é permitida, "e a verificação de algumas provas apresentadas, como os protocolos abertos pela polícia", diz Benyash, que enfatiza que um de seus maiores problemas é que os tribunais não são independentes e a decisão final é tomada no topo da Igreja.
Kirill, hoje um expoente do tradicionalismo russo, foi responsável por tornar a Igreja Ortodoxa Russa a maior importadora de álcool e tabaco do país após o colapso da União Soviética. Como chefe do Departamento de Relações Exteriores da instituição, Kirill aproveitou a isenção de impostos da Igreja para construir um negócio que movimentou bilhões de rublos.
Três décadas depois, Kirill é um ferrenho defensor dos valores tradicionais e das famílias numerosas. No final de 2024, ele exortou as pessoas a encararem uma hipotética guerra nuclear "de um ponto de vista espiritual" e "a não desanimarem nem temerem o suposto fim do mundo". "O Senhor virá em sua glória, destruirá o mal e julgará todas as nações", declarou perante o Conselho Mundial do Povo Russo, cujos fiéis ele encorajou a "serem guerreiros do Senhor".
"Conheci Kirill no início dos anos 2000", lembra Mikhnov-Vaitenko. "Achei-o uma pessoa muito moderna, com uma mente analítica muito apurada, muito aberto à cultura ocidental e, em geral, à comunicação internacional", acrescenta o padre com um suspiro, incapaz de compreender a enorme evolução do patriarca. "Ele mudou de ideia ou ficou intimidado? É difícil dizer, mas eles parecem duas pessoas diferentes".
Mikhnov-Vaitenko sente que grande parte de seus colegas que permanecem na Igreja Ortodoxa "estão muito preocupados [com a guerra], mas não conseguem se expressar; estão presos às circunstâncias". De qualquer forma, ele continuará a pedir o fim do conflito: "Todas as guerras terminam um dia. Não há outra opção a não ser entrar em negociações e buscar a paz. E quanto mais cedo isso acontecer, melhor. Rezamos para que aconteça amanhã. E amanhã rezaremos novamente pelo dia seguinte. Todos os dias".