30 Abril 2024
"A escolha de Francisco não é extemporânea, mas está ligada à sua visão pessoal da arte. Na verdade, para Bergoglio, a arte sempre foi vida e discurso sobre a vida: nunca acreditou no lema esteticista de 'a arte pela arte'", escreve o jesuíta italiano Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação, em artigo publicado por Religión Digital, 29-04-2024.
"Com meus olhos" é o título do pavilhão da Santa Sé na Bienal de Arte de Veneza. O Vaticano está presente no evento desde 2013, mas a edição número 60 será a primeira a receber um Pontífice como visitante.
O Pavilhão, promovido pelo prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação da Santa Sé, o cardeal José Tolentino de Mendonça, que é seu delegado, foi organizado por Chiara Parisi e Bruno Racine. Seu título se deve à rica ambiguidade do olhar. "Verdadeiramente não te amo com meus olhos", escreveu Shakespeare em um de seus sonetos, que aqui ressoa com o bíblico Livro de Jó, que em contraste exulta: "Meus olhos te viram!"
A visão é negada primeiro em sua importância em relação ao coração que vê mais do que os sentidos, depois é afirmada porque apenas os sentidos certificam a presença real. Um cruzamento entre insuficiência e necessidade, em última análise, hoje minado pela visão "filtrada" pelos dispositivos digitais. Ainda sabemos o que é ver com os olhos?
A escolha forte e contra a corrente da Santa Sé foi instalar o Pavilhão no interior da prisão de mulheres de Giudecca, onde o helicóptero papal pousará às 8 da manhã de 28 de abril. E Francisco encontrará as presas porque serão elas que guiarão os visitantes até o Pavilhão.
A proposta artística leva ao pé da letra as palavras de Francisco, quando ele pede para abrir os olhos para os últimos e "rejeitados" da sociedade. Os olhos do cuidado exigem uma visão "ampliada" - e de forma alguma virtual -, não por dispositivos artificiais, mas pela atenção e pelo coração. Na verdade, ainda como arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio disse que 'a maior exclusão consiste em nem sequer ver os excluídos'. Quem dorme na rua, por exemplo, "não é visto como pessoa, mas como parte da sujeira e do abandono da paisagem urbana, do lixo". A cidade humana, por outro lado, "cresce com o olhar que 'vê' o outro".
Para Francisco, o artista vê "com seus olhos, olha e ao mesmo tempo sonha, vê mais profundamente, profetiza, anuncia uma maneira diferente de ver e entender as coisas". Ele adora, por exemplo, a arte produzida com materiais descartados, como a de Alejandro Marmo. A ligação entre arte e compromisso civil, entre beleza e luta contra o desperdício, ficará evidente este ano na Bienal de Veneza.
Foto: Vatican Media
Este é, portanto, o mensagem que o Papa quer transmitir com sua presença na Bienal: a arte é a voz dos sonhos e das angústias humanas. E por isso age "como consciência crítica da sociedade". As obras serão um convite aos visitantes para prestarem atenção nessas realidades que frequentemente são deixadas de fora do debate cultural. Participam oito artistas: Maurizio Cattelan, Bintou Dembélé, Simone Fattal, Claire Fontaine, Sonia Gomes, Corita Kent, Marco Perego & Zoe Saldana, Claire Tabouret.
O Pavilhão faz parte do espaço da Bienal, organizado pela primeira vez por um latino-americano, o brasileiro Adriano Pedrosa, cujo tema geral é "Estrangeiros em todos os lugares", que certamente toca a sensibilidade de Francisco: pensemos nas migrações, na situação dos indígenas, nas diferentes diásporas.
A escolha de Francisco não é extemporânea, mas está ligada à sua visão pessoal da arte. Na verdade, para Bergoglio, a arte sempre foi vida e discurso sobre a vida: nunca acreditou no lema esteticista de "a arte pela arte". O domínio da arte não é um mundo separado, culto, erudito, cortesão e essencialmente "burguês". A dele é uma visão radicalmente "popular", e isso também afeta a produção artística e sua fruição. O Papa é muito sensível ao gênio e à criatividade, que para ele não são exceções, mas dimensões da vida ordinária abordadas com energia e intensidade.
"É importante a criatividade na vida de uma pessoa?", perguntei na primeira entrevista que fiz a ele em 2013 para La Civiltà Cattolica e revistas jesuítas de todo o mundo. Ele respondeu com um grito: 'É muitíssimo importante!' E me deu dois exemplos: 'na pintura, admiro Caravaggio: suas telas me falam. Mas também Chagall com sua Crucificação branca...". E continuou: 'Adoro os artistas trágicos', citando vários exemplos poéticos e narrativos.
O dele não é apenas um puro fascínio pela tragédia como gênero, mas um desejo de entrar na condição humana também pela via da representação estética. Não é o trágico elitista e refinado que chama a atenção de Bergoglio, mas o trágico "popular". Até o ponto em que ele faz sua própria a definição de ópera "clássica" tirada de Cervantes: a ópera "clássica" é aquela que todo mundo pode sentir de alguma forma como sua, não a de um pequeno grupo de entendidos refinados.
Sua paixão pelo neorrealismo se insere nessa visão da arte ligada ao povo: "a arte não é algo desenraizado: a arte vem do coração do povo", disse ao inaugurar o museu etnológico "Anima Mundi". Daí também o amor pela arte e poesia amazônicas, e - mais geralmente - o convite para abrir novas perspectivas sobre as dinâmicas sociais e artísticas, desafiando preconceitos, convenções, bem como a austeridade do conceito abstrato. Por isso é interessante observar como a dinâmica popular de sua estética é a mesma que sua visão pastoral.
Mas, em particular, para Bergoglio, a arte levanta um dos graves problemas da fé: "imaginar" adequadamente as verdades nas quais acreditamos, oferecer "a substância do que se espera, a evidência do que não se vê", como diz a Carta aos Hebreus. Precisamos de imagens poderosas. Esta é uma das razões pelas quais, por exemplo, ele adora as litografias surrealistas de Victor Delhez, que usou para seus cartões de Páscoa de 2014.
Los Cuatro Evangelios N. Señor Jesucristo de Victor Delhez (Foto: Wikimedia Commons)
Mas também por isso ele adora a "piedade popular", porque é uma mina de ouro de imagens fortes bem enraizadas no imaginário coletivo de um povo, que se expressam de maneira muitas vezes subversiva, capaz de capturar até mesmo os sonhos que a vida ordinária silencia ou descarta. Bergoglio é radicalmente anti-iconoclasta, mas sempre consciente da necessidade de uma hermenêutica que nem sempre é fácil, como aconteceu com ele no caso das obras de León Ferrari e Luis Espinal.
A prova do vínculo que ele sente entre a obra de arte e a visão da vida está naquela entrevista com as revistas dos jesuítas, na qual Francisco destacava com força que as formas de expressão da verdade podem ser variadas e discordantes, e que de fato "o homem muda sua maneira de se perceber ao longo do tempo: uma coisa é um homem se expressar esculpindo a Nike de Samotrácia, outra é fazê-lo Caravaggio, outra Chagall e outra Dalí".
Pintura Das Jüngste Gericht de Hans Memling (Foto: Wikimedia Commons)
A arte, portanto, não é um simples "laboratório" para experimentar dinâmicas culturais e expressivas, mas parte integrante do fluxo da história, expressão da experiência vivida, por isso Bergoglio ama o grande pintor flamengo Hans Memling, que realiza um "milagre de delicadeza" ao representar as pessoas. A arte está no caminho do homem sobre a terra, hoje aberto a um abismo. E nele, do interior do pátio central da prisão de Giudecca, surge uma mensagem concisa, um letreiro de néon da dupla Claire Fontaine que brilha na escuridão: "Estamos contigo na noite".
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Papa Francisco e a arte. Artigo de Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU