10 anos do Papa Francisco: o pontificado que transformou a Igreja Católica a partir do Evangelho. Entrevista especial com Rubens Ricupero e Wagner Azevedo

Em 2013, Mario Bergoglio é eleito papa. Dez anos depois, analistas ouvidos pelo IHU destacam que o maior avanço é ver a Igreja em meio ao povo, mas o desafio reside justamente em vencer as resistências internas a esse estilo de Francisco

Papa Francisco com os pobres, que "estão no centro do Evangeho" e deste pontificado | Foto: Vatican Media

Por: João Vitor Santos | 03 Abril 2023

Do alto da varanda do Palácio Apostólico, o cardeal Jean-Louis Pierre Tauran, decano do Colégio Cardinalício, em 13-03-2013, anunciou o argentino Jorge Mario Bergoglio como novo papa. Pela primeira vez na história o Chefe de Estado da Cidade do Vaticano não pertencia ao "centro do mundo". Bergoglio, em suas primeiras palavras, brincou: “foram buscar um papa lá do fim do mundo”.

A noite, fria e chuvosa, apresentou o primeiro papa jesuíta e, reservou outras surpresas: Jorge Mario Bergoglio escolheu ser chamado de Francisco, em referência a São Francisco, pela simplicidade e dedicação do Santo de Assis com os pobres; e assistimos ao novo papa curvado diante da Praça São Pedro lotada. Naquele momento, essas eram as primeiras pistas da mudança radical que o até então Cardeal Argentino traria para a Igreja Católica

Depois daquele 13 de março, as surpresas não pararam. Todos se surpreendiam com a simplicidade e austeridade de Francisco. Tal postura tem sido um norte para sua gestão que não apenas é uma Igreja mais simples e dessacralizada como também está mais perto do povo. Para o mestre em Ciência Política, Wagner Fernandes de Azevedo, o Papa Francisco “transformou o papado com a história da Igreja libertadora, principalmente na sua vertente argentina, da Teologia do Povo”. “É uma inversão do eixo de poder, é um papado destronado, descentralizado e, portanto, desocidentalizado”, completa, em entrevista via mensagens de WhatsApp concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Wagner destaca que o pontífice foi capaz de auscultar claramente que vivemos uma transição epocal. “Francisco entendeu que o mundo ocidental, outrora sustentado pelo cristianismo, está em crise. E entendeu que deve propor um novo papel à Igreja nesse novo mundo, sem perder a centralidade do Evangelho”, analisa.

O diplomata Rubens Ricupero observa que “o comportamento do papa é quase como se fosse um pároco, como se sentiu durante a pandemia quando rezava diariamente a missa em Santa Marta, com simplicidade”. Mas nem por isso Francisco se senta na Cátedra de Pedro e se move a partir dela com cheiro de sacristia. Sua liderança e lucidez acerca das crises globais o colocam na ponta de movimentos geopolíticos, um lugar de poucos. E isso, na sua opinião, se mede de diversas formas, inclusive pelos documentos pontifícios: “Sua encíclica Laudato si’ é a mais alta expressão teológica e filosófica da ecologia radical. Não ficam atrás na profundidade e beleza a encíclica Fratelli tutti e a exortação apostólica Evangelii gaudium”, avalia.

As entrevistas a seguir, foram publicadas originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU por ocasião dos 10 anos do pontificado de Francisco, 13-03-2023.

Confira a entrevista. 

Rubens Ricupero na Unisinos (Foto: Rodrigo W. Blum | Unisinos)

Rubens Ricupero é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Ocupa a Cátedra José Bonifácio da USP. Diplomata de carreira desde 1961, exerceu as funções de assessor internacional do presidente Tancredo Neves (1984-1985), assessor especial do presidente José Sarney (1985-1987), representante permanente do Brasil junto aos órgãos da ONU sediados em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993). Foi ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e do Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco. Serviu de embaixador na Itália e secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento – UNCTAD, órgão da ONU. Entre suas obras, destaca-se: A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017).

Eis a entrevista.

IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?

Rubens Ricupero – Não tanto avanços, mas sim mudanças.

A) A primeira é a prioridade às pessoas em situação de periferia, na vida e na própria Igreja da periferia, minoritárias, em países longínquos, sem tradição cristã. Os pobres antes de tudo.

B) A segunda é a coerência da vida pessoal de volta à radicalidade do Evangelho: morar na casa Santa Marta, recusar palácios, luxo, vida de simplicidade, despojamento.

C) A terceira é o deslocamento da fixação em questões de moral sexual individual para a justiça social e o meio ambiente.

Limites:

A) Resistência conservadora que freia a evolução em questões-chave como o celibato dos padres, a posição sobre divorciados e afastados da Igreja, o papel da mulher na Igreja e na sociedade.

B) A falta de apoio de governos, da população e até dos fiéis na pregação em favor do acolhimento a refugiadosmigrantes.

C) A pouca afinidade das igrejas na Europa com um papa visto como excessivamente latino-americano, terceiro-mundista, a franca desconfiança de largos setores conservadores e moralistas da Igreja dos Estados Unidos.

IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?

Rubens Ricupero – O estilo já se definiu na escolha do nome Francisco, que anunciava estilo de vida de pobreza, amor à natureza e ao meio ambiente, desejo de contar com as orações dos fiéis. Vive como prega: coerência absoluta. Estilo informal, que desconcerta europeus e os habituados com o formalismo do papado.

Ainda, impulsivo, inclinado a gestos dramáticos. Por exemplo, a primeira viagem para jogar coroa de flores no local de naufrágio e morte de refugiados, a ida a campos de refugiados para trazer alguns a Roma. A multiplicação de encontros com patriarcas ortodoxos, inclusive o de Moscou, com líderes religiosos do Islão sunita e xiita, de monges budistas.

A maneira de falar familiar, próxima às pessoas simples, lembrando São João XXIII: desejar bom almoço de domingo. Desmistificação da figura do papa: vai pessoalmente comprar óculos, gostaria de poder caminhar a pé.

Questões globais

Frente às grandes questões globais, Francisco se definiu desde cedo pela defesa do meio ambiente, a luta contra o aquecimento global, a denúncia da injustiça e do desequilíbrio do regime capitalista, a recusa de toda e qualquer guerra, a crítica ao egoísmo das potências ricas e ao armamentismo. Outros papas também tinham feito o mesmo.

Francisco, porém, atualizou os conceitos e a linguagem, renovando o estilo dos documentos pontifícios, dando-lhes uma qualidade pessoal de legibilidade, citando poetas como Vinícius, músicos populares. Sua encíclica Laudato si’ é, na minha opinião, a mais alta expressão teológica e filosófica da ecologia radical. Não ficam atrás na profundidade e beleza a encíclica Fratelli tutti e a exortação apostólica Evangelii gaudium.

IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?

Rubens Ricupero – Tudo o que ficou dito nas respostas acima representou uma profunda transformação, verdadeira revolução do pontificado, se comparado ao de João Paulo II ou Bento XVI. Sem repetir esses aspectos, acrescentaria o espírito pastoral, muito mais que doutrinário, de ação concreta para aliviar o sofrimento do próximo, em vez de ficar discutindo dogmas, interdições ou abandono das condenações de teólogos e dissidentes, o comportamento do papa quase como se fosse um pároco, como se sentiu durante a pandemia quando rezava diariamente a missa em Santa Marta, com simplicidade.

Devem-se destacar também a disposição de perdoar, de acolhimento, a grande repercussão que teve o Ano da Misericórdia, o conselho aos confessores para acolherem e perdoarem, não se fecharem em posições rígidas. A abordagem da moral não em abstrato, mas no exame das situações individuais, caso a caso.

Transformação ainda em curso, iniciada desde o começo do pontificado, tem sido a reforma da Cúria e do governo centralizado da Igreja no sentido de acentuar o espírito de sínodo, de assembleia, de fraternidade entre os bispos, de tentativa de superação do clericalismo, afirmação das mulheres e dos leigos. É difícil a esta altura prever os resultados a longo prazo.

Problemas

Ao mesmo tempo, o pontificado de Francisco enfrentou, ou vem enfrentado, problemas pelos quais não é responsável e sobre os quais tem pouco ou nenhum controle. Um deles foi, obviamente, a pandemia e seus efeitos na vida e atividades da Igreja, até no nível das paróquias.

Outro, devastador, o recrudescimento dos escândalos de abusos sexuais, as investigações que se multiplicam nas mais diferentes igrejas. Embora a reação de Francisco tenha sido muito mais aberta, franca e corajosa que a de seus antecessores, é inegável que o impacto das revelações anula ou perturba muito do que ele desejaria realizar. A dificuldade é aumentada pela incapacidade até agora de ir à raiz da questão: a maneira como a tradição lida com a sexualidade, sua paralisia diante de desafios como o do celibato, da limitação de nascimentos, da interrupção de gravidez, do divórcio.

 

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Wagner Fernandes de Azevedo (Foto: Arquivo pessoal)

Wagner Fernandes de Azevedo possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM e mestrado em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Tendo realizado pesquisa em que analisou o papel da Teologia da Libertação na integração e cultural política na América Latina, segue atuando em temas como América Latina, religião e pós-colonialismo.

Eis a entrevista.

IHU – Quais foram os três avanços mais significativos do pontificado de Francisco? E quais seriam os maiores limites?

Wagner Fernandes de Azevedo – Proponho pensar os avanços e os limites sob a ótica da primeira exortação apostólica de Francisco, a Evangelii gaudium. Penso que neste documento está o Plano Pastoral do pontificado. A partir da EG, percebo três instâncias no exercício do pontificado: teológicaeclesiológica e política.

Avanços teológicos

Vejo a teologia de Francisco sustentada pelo tripé: misericórdia, diálogo e piedade popular. Esse pontificado rompeu com uma linha doutrinal persecutória, acusatória, fechada ao diálogo com as demais instâncias da sociedade. Pelo contrário, ao assumir um coração humilde à Igreja, Francisco colocou o Evangelho no centro do discurso e como base para seu modelo de pontificado.

Exemplos disso são inúmeros, mas as relações com os povos indígenas, a abertura ao rito amazônico, a constante abertura ao diálogo com as tradições religiosas do Islã e do cristianismo ortodoxo... Francisco retirou o papado da sede gestatória e o colocou no chão, escutando e rezando com a fé popular e atuando entre aqueles que mais precisam.

Neste sentido, na exortação Gaudete et exsultateFrancisco reforça que a santidade se faz na vida cotidiana e em comunidade: “A comunidade, que guarda os pequenos detalhes do amor [107] e na qual os membros cuidam uns dos outros e formam um espaço aberto e evangelizador, é lugar da presença do Ressuscitado que a vai santificando segundo o projeto do Pai” (145).

Em outro ponto, ele conseguiu avançar com uma ecoteologia, na encíclica Laudato si’, porém ele sempre afirmou que pouca importância dava ao tema ecológico, até a Conferência de Aparecida (2007). A Laudato si’ e a ecologia integral são avanços enormes, mas não tão desenvolvidos pelo magistério.

Avanços eclesiológicos

Os grandes meios de comunicação noticiavam que os cardeais mais próximos a Ratzinger seriam os favoritos para o papado. No entanto, ao passar dos anos, outros jornais, mais vaticanistas, revelavam outro ponto central para o novo papa: a reforma da Cúria. Em suma, o grande desafio de Francisco foi este: e está sendo cumprido.

A nova constituição apostólica Praedicate evangelium foi aprovada e implementada mesmo depois de grandes turbulências, inclusive nos círculos mais próximos a Francisco, como no Conselho de Cardeais e na Secretaria de Estado. Francisco conseguiu dar passos concretos ao que anunciava na EG: reformar a Igreja para a saída missionária. A nova constituição coloca a Cúria a serviço do trabalho evangelizador, revertendo a operacionalidade de uma Roma glamourizada e sustentada pelas periferias.

Nisto, é essencial o papel que os sínodos estão tendo. O atual, inclusive, é a maior consulta democrática que uma instituição já tenha feito. E não uma democracia apenas de voto, mas de discussões, propostas, divergências, explícitas e abertas, com encaminhamentos que são visíveis e “auditáveis” por todos os participantes. Neste mesmo sentido, Francisco deu passos largos no combate aos abusos, com a publicação de novas diretrizes legais, mas trazendo ao centro e escutando as vítimas dos crimes, investigando e sancionando os criminosos, sejam cardeais, padres, religiosos e até mesmo “quase santos”.

Avanços políticos

Francisco entendeu que o mundo está em uma transição de hegemonia e em um Novo Regime Climático. As mudanças geopolíticas não são novidades para a Igreja, que sempre soube se reinventar. No entanto, o eixo ocidental, que tem em seu cerne o cristianismo, tem seu poder relativo sucumbindo perante ao Oriente. Destarte, os sinais de Francisco sempre foram de se aproximar, primeiro guiado pela misericórdia, aos que sofrem, migrantes, refugiados, países em guerra (visitas ao Iraque, à República Democrática do Congo, à República Centro-Africana...); segundo pela estratégia global, colocar a Igreja no centro onde é periferia.

Ainda como ator global, Francisco entende que as crises e os conflitos estão abaixo de uma grande crise maior: a climática. A Laudato si’ foi lançada seis meses antes da Conferência das Partes de Paris [COP15], com o intuito de mobilizar as ações da comunidade católica global e agir com protagonismo no tema. Excluindo a análise da aplicação nas comunidades e vida católica, é fato que Francisco colocou a Santa Sé como o principal organismo da ONU em mobilização pelo clima.

Limites

Francisco entendeu que o mundo ocidental, outrora sustentado pelo cristianismo, está em crise. E entendeu que deve propor um novo papel à Igreja nesse novo mundo, sem perder a centralidade do Evangelho.

Não obstante, se as respostas estão corretas ou se o modo de abordagem será suficiente para pôr em prática seu Plano Pastoral, levaremos alguns anos para avaliar. O que há hoje é uma resistência muito forte dentro da Igreja e nos centros do poder global, que paralelamente sucumbem nessa nova ordem. Um exemplo é a Conferência dos Bispos dos EUA e os atravancos com grupos tradicionalistas católicos.

Essa limitação também se vê na forma cuidadosa de não avançar com reformas que vêm do próprio processo sinodal, como abrir para a ordenação de mulheres ou de homens casados (viri probatii).

IHU – Francisco tem um estilo próprio de conduzir o pontificado e de se posicionar frente às grandes questões globais. Como define esse estilo, essas opções de Francisco?

Wagner Fernandes de Azevedo – Francisco tenta colocar a Igreja Católica como protagonista no cenário global. Na verdade, o poder da Igreja no sistema moderno de Estado sempre foi o brando, o cultural. Porém, a Modernidade colocou o cristianismo em processo de irrelevância.

A atuação de Francisco é alinhada aos princípios do Evangelho, com foco nos pobres, na luta por justiça social, climática e pela paz. Consegue mais respeito e, por conseguinte, em sociedades escanteadas pela ordem global, como foi o caso da visita recente ao Sudão do Sul. Em temas como economia, tecnologia e educação, a relevância das intervenções vaticanas é bem pequena, mas geralmente a posição da Santa Sé é utilizada como barganha política e justificativa para quem de fato faz o jogo global.

IHU – Por quais transformações passou o pontificado ao longo dessa década? Como analisa essas transformações?

Wagner Fernandes de Azevedo – Como dito acima, Francisco fez o papado descer da gestatória. E o fez na era das grandes mídias. Hoje, o papado não é visto do alto: o papa se fez povo, mas a sociedade também trata o papado como povo. Pela semiótica, Francisco está colocando o poder da Igreja em um cenário horizontal, conectado às diferentes redes, sejam católicas ou não.

processo sinodal é uma materialização disto, bem como quando Francisco, em cadeira de rodas, faz oração junto aos povos indígenas canadenses massacrados, ou acolhe diferentes crenças e ritos, literalmente até no seu jardim. A visão de um papado humilde e misericordioso, junto ao povo, está no cerne da sua trajetória na teologia latino-americana.

Pode-se dizer que Francisco transformou o papado com a história da Igreja libertadora, principalmente na sua vertente argentina, da Teologia do Povo. É uma inversão do eixo de poder, é um papado destronado, descentralizado e, portanto, desocidentalizado.

As reações estão acontecendo e assim continuarão. Mas a mudança está posta em marcha, Francisco não ficará no pontificado por muito mais tempo, mas assumiu o chamado de “vai e reconstrói a Igreja” e de “não se esqueça dos pobres”.

Igreja poliédrica

Particularmente, eu me identifico mais com este papado que o de outrora. Uma Igreja poliédrica em um mundo fragmentado parece ser convergente. Mas mesmo nesse ambiente de fragmentação, o individualismo extremo conseguiu se aglutinar com força nos diversos campos da sociedade. O desafio de Francisco é continuar tendo força de acessar e construir uma subjetividade da misericórdia contra o individualismo, o fascismo e todas as culturas de ódio – mesmo quando ele não estiver mais no papado.

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 Confira os vídeos que o Vaticano preparou com os atos mais importantes dos 10 anos do pontificado do papa Francisco: 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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