O que pensa Jorge Mario Bergoglio?

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24 Março 2013

Há uma semana, ouve-se e lê-se tudo sobre o novo papa. Muitas são as interrogações, em que muitas vezes se reflete o vício italiano de catalogar tudo com base na dicotomia esquerda/direita. O padre biblista Matteo Crimella fala sobre o livro Sobre el cielo y la tierra, escrito a quatro mãos pelo então arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio, e pelo rabino Skorka. Certamente, em breve teremos muitas traduções desse texto.

O artigo foi publicado no sítio Missionline, 16-03-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Entre os muitos dons que o Senhor me deu, um deles se destaca sobre todos: eu vivi por nada menos do que seis anos em Jerusalém, debruçado sobre os textos do Antigo e do Novo Testamento, observando e medindo com os meus olhos cada pedra da cidade santa. Para uma pessoa curiosa e apaixonada por livros, Jerusalém é um paraíso: há lugares (muitas vezes simples porões muito desordenados) onde se encontra todo tipo de livros, em todas as línguas do mundo.

Nos anos em que eu vivia na cidade santa, eu me permitia a satisfação de uma visita às livrarias, sem nunca me decepcionar. No verão passado, o livreiro (um sorridente judeu de origem polonesa) me informou que haviam recém-esvaziado o apartamento de um professor de língua espanhola. Eu desci na grande loja e olhei intrigado, mas só encontrei um livro que me interessava, Sobre el cielo y la tierra, escrito a quatro mãos pelo arcebispo de Buenos Aires, Bergoglio, e pelo rabino-chefe da cidade, Skorka (Jorge Bergoglio e Abraham Skorka, Sobre el cielo y la tierra, Editorial Sudamericana, Buenos Aires, 2010, 220 páginas). Olhei o índice, li a contracapa, descobrindo que ambos haviam estudado química, passei pelo primeiro capítulo intitulado "Sobre Dios" e decidi comprá-lo. No dia 13 de março à noite, depois do habemus papam, fui pescá-lo novamente na minha biblioteca e li-o de uma vez só.

O livro reúne os diálogos que ocorreram entre o cardeal e o rabino a propósito de vários temas: Deus, os ateus, as religiões e o seu futuro, os discípulos, a oração, o pecado, a morte, a mulher, o aborto, a educação, a política, o dinheiro, o Holocausto, o diálogo inter-religioso, em um total de 29 breves capítulos nos quais os dois discutem.

Na introdução, o rabino afirma que o diálogo é um exercício em que "a alma de um se reflete na do outro". Além disso, evocando um baixo-relevo no frontispício da Catedral Metropolitana de Buenos Aires, que representa o abraço de José, vice-rei do Egito, com os seus irmãos, o líder da comunidade hebraica reafirma o valor da "cultura do encontro". De fato, no diálogo, cada um é ele mesmo, o cardeal com a sua identidade católica, e o rabino com judaica, mas juntos se confrontam e se enriquecem mutuamente.

O que emerge daí? Bergoglio fala de si, do seu encontro com Deus, Ele não esconde ter feito um itinerário marcado por luzes e sombras, passando por consolações e desolações (segundo uma linguagem tipicamente inaciana e, portanto, jesuítica). Afirma: "Minha experiência de Deus se dá no caminho, na busca, no deixar-me buscar". A partir desta experiência tão intensamente pessoal, Bergoglio olha para o mundo. A propósito dos ateus, ele diz: "Quando me encontro com pessoas ateias, compartilho as questões humanas, mas não lhes proponho de entrada o problema Deus, exceto no caso em que elas me o proponham. Se isso ocorre, eu lhes conto por que eu acredito. Mas o humano é tão rico para compartilhar, para trabalhar, que tranquilamente podemos complementar mutuamente as nossas riquezas. Como sou crente, sei que essas riquezas são um dom de Deus".

Skorka, referindo-se ao pensamento de Maimônides, ecoa a sua afirmação dizendo: "Podemos conhecer suas fórmulas [da perfeição da natureza], mas não a sua essência". Bergoglio continua: "Creio que quem adora a Deus tem, nessa experiência, um mandato de justiça para com seus irmãos. É uma justiça sumamente criativa, porque inventa coisas: educação, promoção social, cuidado, alívio etc. Por isso, o homem religioso íntegro é chamado de homem justo, leva a justiça para os demais. Nesse aspecto, a justiça do religioso ou da religiosa cria cultura. Não é a mesma coisa a cultura de um idólatra que a cultura que uma mulher ou um homem que adoram o Deus vivo criam.(...) Hoje, por exemplo, temos culturas idólatras em nossa sociedade: o consumismo, o relativismo e o hedonismo".

A centralidade do mistério de Deus e da relação com ele surge quando o cardeal reflete sobre os líderes religiosos: "Os grandes líderes do povo de Deus foram homens que deixaram lugar à dúvida. (…) Moisés é o personagem mais humilde que houve sobre terra. Diante de Deus, não resta nada mais do que a humildade, e aquele que quer ser líder do povo de Deus tem que dar espaço a Deus; portanto, apequenar-se, esvaziar a si mesmo com a dúvida, com as experiências interiores de escuridão, de não saber o que fazer. (…) Uma das características do mau líder é ser excessivamente prescritivo pela autossegurança que tem".

O rabino ecoa a sua afirmação sem qualquer problema: "A própria fé [judaica] deve se manifestar por meio de um certo sentimento de dúvida. (…) Posso ter 99,99% de certeza sobre Ele [Deus], mas nunca 100%, porque vivemos buscando-O".

Bergoglio demonstra ser um homem muito aberto, mas ao mesmo tempo têm ideias claras sobre a Igreja. Ele se distancia fortemente daqueles que gostariam de reduzi-la a uma agência social: "Eu acredito que [a liderança] de uma congregação [religiosa] não pode se assimilar à de uma ONG. Em uma ONG, a palavra santidade não entra. Deve haver, sim, um comportamento social adequado, honestidade, uma ideia de como ela vai levar adiante a sua missão, uma lógica para dentro. Pode funcionar dentro da sua laicidade. Mas, na religião, a santidade é inevitável em seu líder".

São muitas as referências à experiência pastoral do arcebispo de Buenos Aires. A propósito da formação dos candidatos ao sacerdócio, o cardeal recorda as escolhas feitas na sua diocese, mas o pensamento vai mais longe: "Nós aceitamos no seminário, aproximadamente, somente cerca de 40% dos que se postulam. (…) Por exemplo, existe um fenômeno psicológico: patologias ou neuroses que buscam seguranças externas. Há alguns que sentem que, por si mesmos, não vão ter êxito na vida e buscam corporações que os protejam. Uma dessas corporações é o clero. Com relação a isso, estamos com os olhos abertos, tentamos conhecem bem as pessoas que demonstram interesse, fazemos testes psicológicos com elas em profundidade antes que ingressem no seminário. Depois, na consciência de um ano prévia ao ingresso, durante todos os fins de semana, vai-se vendo e se discerne entre as pessoas que têm vocação e aquelas que, na realidade, não são chamadas, mas buscam um refúgio ou se equivocam na percepção da vocação".

Um dos pontos mais tocantes do diálogo é quando o rabino e o bispo tocam no tema da oração. "A oração deve servir para unificar o povo, é um momento em que todos dizemos exatamente as mesmas palavras": é assim que o rabino Skorka inicia o seu discurso sobre uma realidade tão pessoal que é difícil discutir a respeito publicamente, talvez até mesmo articular algumas palavras.

Bergoglio está em sintonia: "Rezar é um ato de liberdade". E continua: "A oração é falar e ouvir. Há momentos que são de profundo silêncio, ´de adoração, esperando que o tempo passe". Depois, ele cita o exemplo de Abraão, que intercede por Sodoma e Gomorra, e de Moisés que reza pelo povo.

Sobre os tradicionalistas (os lefebvrianos têm um seminário e algumas igrejas na Argentina) o juízo de Bergoglio é claro: ele define os "pequenos grupúsculos restauracionistas" como "fundamentalistas", e acrescenta: "Esse tipo de religiosidade, muito rígida, se disfarça com doutrinas que pretendem dar justificações, mas, na realidade, privam da liberdade e não deixam que as pessoas cresçam. Em grande parte, terminam na vida dupla".

Quando o discurso aborda as grandes ideologias do século XX, o cardeal é explícito: "O cristianismo condena com a mesma força tanto o comunismo quanto o capitalismo selvagem. (…) Um exemplo claro é o que acontece com o dinheiro que foge para o exterior. O dinheiro também tem pátria, e aquele que explora uma indústria no país e leva o dinheiro embora para guardá-lo fora está pecando. Porque não honra com esse dinheiro o país que lhe dá a riqueza, o povo que trabalha para gerar essa riqueza". E acrescenta, a propósito da lavagem de dinheiro proveniente do tráfico de drogas: "Não se pode aceitar o dinheiro manchado com sangue".

Significativa é a passagem sobre a riqueza da Igreja: "Sempre se fala do ouro do Vaticano, mas isso é um museu. Também é preciso distinguir o museu da religião. Uma religião precisa de dinheiro para manejar as suas obras, e isso se faz através de instituições bancárias, não é ilícito. (…) O que entra em doações ou por visitas a museus vai para leprosários, para escolas, para comunidades africanas, asiáticas, americanas". Mas, depois, lembrando o martírio de São Lourenço e a sua defesa dos pobres de Roma, ele afirma: "Os pobres são o tesouro da Igreja e é preciso cuidá-los; e se não temos essa visão, construiremos uma Igreja medíocre, morna, sem força".

O diálogo entre um rabino e um cardeal não podia não tocar nas relações entre judeus e cristãos, e a tragédia do Holocausto. A esse propósito, Bergoglio reitera a doutrina do Vaticano II: "Efetivamente, não se pode falar de um povo deicida". Mas, depois, com a franqueza extrema, admite que na Argentina há alguns eclesiásticos antissemitas, mas declara resolutamente: "Hoje a política da Igreja argentina é clara: diálogo inter-religioso".

Sobre o futuro das religiões, o olhar prospectivo afunda suas raízes na história: "Se olharmos para a história, as formas religiosas do catolicismo variariam notoriamente. Pensemos, por exemplo, nos Estados Pontifícios, onde o poder temporal estava unido ao poder espiritual. Era uma deformação do cristianismo. Não correspondia ao que Jesus quis e ao que Deus quer. Se, ao longo da história, a religião teve tanta evolução, por que não pensar que, em um futuro, ela também se adequará com a cultura do seu tempo? O diálogo entre a religião e a cultura é chave, já afirmava o Concílio Vaticano II. Desde o princípio pede-se da Igreja uma contínua conversão – Ecclesia semper reformanda – e essa transformação adquire diversas formas ao longo do tempo, sem afetar o dogma".

Não faltam no livro anedotas e piadas. A propósito, por exemplo, do uso ou não batina por parte dos sacerdotes (cujo abandono, na opinião de Messori, é um dos maiores problemas da Igreja atual), Bergoglio cita um diálogo seu com um jovem padre ao qual disse: "O problema não é se você a usa, mas sim que você a arregace quando a tiver que trabalhar pelos demais".

Diante de palavras tão claras, as que o bispo de Roma pronunciou até agora não são uma surpresa!

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