16 Janeiro 2023
"O paradoxo é que, enquanto em algumas partes do mundo se luta para retirar as forcas, em outras partes onde a civilização jurídica as retirou, há uma luta para restaurá-las. Temos que nos perguntar de onde vem esse mal sombrio, quais são suas causas profundas? Quando começou esse processo de enfraquecimento da democracia e o que o gerou? Talvez quando aceitamos a união incestuosa entre a democracia e a guerra", escreve Domenico Gallo, juiz italiano e conselheiro da Suprema Corte de Cassação da Itália, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 13-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
"Um dia, ao voltarmos do trabalho, vimos três forcas erguidas na praça central... Três acorrentados condenados, e entre eles o pequeno Pipel, o anjo de olhos tristes. As SS pareciam mais preocupadas. Mais inquietas do que o normal. Enforcar um garoto na frente de milhares de espectadores não era pouca coisa... Todos os olhos estavam fixos no menino. Ele estava lívido, quase calmo, e mordia o lábio... Os três condenados subiram juntos em suas cadeiras... - Viva a liberdade! os dois adultos gritaram. O pequeno ficou em silêncio... A um aceno do chefe do campo as três cadeiras foram retiradas...
Depois começou o desfile. Os dois adultos não viviam mais. A língua pendente, inchada e azulada. Mas a terceira corda não estava imóvel: mesmo que por pouco o garoto ainda estava vivo. Mais de meia hora ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando diante de nossos olhos. E nós tínhamos que olhar bem na sua cara. Ele ainda estava vivo quando passei diante dele. A língua ainda estava vermelha, os olhos ainda não tinham se apagado".
As notícias dos enforcamentos que se sucedem no Irã, que roubam a vida dos jovens manifestantes, como Mohammad Karami, de 22 anos, e Mohammad Hosseini, de 20 anos, acusados de "inimizade contra Deus", fizeram voltar à minha memória o terrível episódio relatado por Elie Wiesel em A Noite, no qual testemunha sua experiência como deportado em Auschwitz. Eu me perguntei quanto tempo durou a resistência à morte para esses jovens, se eles também ficaram lutando entre a vida e a morte sob o olhar impassível de seu carrasco. A crueldade do regime iraniano não tem nada a invejar àquela das SS. A pergunta de Auschwitz também deve ter ressoado na prisão de Teerã: onde está Deus? A resposta é a mesma do jovem Wiesel: “Onde está? Aqui está: está pendurado ali, naquela forca”.
Apesar da brutalidade da repressão exercida pelo regime nazi-islâmico dos aiatolás, a resistência do povo iraniano, que não aceita mais ser subjugada pela estrutura autoritária e desumana do poder teocrático, não foi quebrada. Nesta parte do mundo há uma luta e um sofrimento inéditos para desmantelar aquelas estruturas autoritárias de poder que sufocam os direitos humanos e ultrajam a dignidade da pessoa.
Em outras palavras, uma luta, análoga à da Resistência, está em andamento para conquistar a liberdade e estabelecer instituições democráticas. Em vez disso, em outras partes do mundo, onde a liberdade foi estabelecida e garantida pelas Constituições, a democracia está sendo corroída por um mal obscuro, vilipendiada, infamada; explodem revoltas populares que atacam as instituições e os próprios símbolos da democracia. O episódio mais marcante foi o ataque orquestrado realizado no domingo por seguidores de Bolsonaro. O que aconteceu lá, porém, não é um evento isolado, basta pensar na invasão ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021.
Em quase todos os lugares há regurgitações de fascismo que atacam democracias consolidadas e colocam em discussão os valores fundamentais trazidos pelas Constituições e pelas Cartas de Direitos. O sentimento de desprezo pela democracia também penetrou no reduto da União Europeia, onde estamos experimentando, na Hungria como na Polônia, um novo modelo de "democracia iliberal" que corre o risco de ser imitado pelos novos governos da Suécia e da Itália.
O paradoxo é que, enquanto em algumas partes do mundo se luta para retirar as forcas, em outras partes onde a civilização jurídica as retirou, há uma luta para restaurá-las. Temos que nos perguntar de onde vem esse mal sombrio, quais são suas causas profundas? Quando começou esse processo de enfraquecimento da democracia e o que o gerou? Talvez quando aceitamos a união incestuosa entre a democracia e a guerra.
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