Rumo a uma Igreja Samaritana e cuidadora da Natureza. Artigo de Leonardo Boff

(Foto: Cristhian Carreno | Unsplash)

13 Setembro 2022

 

 

O artigo é de Leonardo Boff, teólogo, filósofo, escritor, e autor de Ecologia: grito da terra-choro dos pobres, Trotta 2000 e, com o cosmólogo Mark Hathaway, The Tao of Liberation: Exploring Transformational Ecology, Trotta 2011, publicado por Religión Digital, 11-09-2022.

 

Eis o artigo.

 

Antes de abordar o assunto - Rumo a uma Igreja Samaritana e zeladora da Natureza - pretendo fazer duas observações:

 

- A primeira: que mensagem a Mãe Terra quer nos comunicar com a intrusão do Coronavírus?

 

- A segunda: o confronto de dois paradigmas civilizacionais: o dominus e o frater: qual o seu significado para a atual crise generalizada?

 

Vamos à primeira observação: além das vacinas e todos os cuidados contra a propagação do vírus, devemos nos perguntar: de onde vem o vírus? Tudo parece indicar que o vírus é um contra-ataque da Mãe Terra como resultado da agressão milenar que os poderosos fizeram a ela, devastando ecossistemas inteiros baseados no acúmulo de bens materiais. Em outras palavras, é uma resposta ao Antropoceno e ao Necroceno. Tocamos os limites ecológicos da Terra a ponto de precisarmos de mais de um planeta e meio para atender o consumo e principalmente o consumismo suntuoso de uma pequena parcela da humanidade.

 

 

A Mãe Terra quer nos dizer: pare com esse tipo de relacionamento violento contra mim, que diariamente lhe dá tudo o que você precisa para viver. Caso contrário, virão outros vírus mais nocivos e, eventualmente, o Grande Vírus (The Next Big One) contra o qual as vacinas serão ineficazes e grande parte da biosfera poderá ser perigosamente afetada. Ou outros eventos extremos virão como grandes catástrofes ecológico-sociais.

 

Tudo indica que tal mensagem não está sendo ouvida pelos chefes de Estado, pelos dirigentes das grandes corporações multinacionais e pela população em geral. Se o ouvissem, teriam que mudar seu modo de produção, os lucros absurdos e perder seus privilégios.

 

É preciso reconhecer que a Covid-19 caiu como um meteoro rasante sobre o capitalismo neoliberal, desmantelando seus mantras: lucro, acumulação privada, competição, individualismo, consumismo, Estado reduzido ao mínimo e privatização das coisas públicas e dos bens comuns.

 

Enquanto isso, coloco inequivocamente o dilema: o lucro ou a vida valem mais? Devemos salvar a economia ou salvar vidas humanas? Se tivéssemos seguido tais mantras, todos estaríamos em perigo.

 

 

O que nos salvou foi o que falta ao capitalismo: solidariedade, cooperação, interdependência entre todos, generosidade e cuidado mútuo com a vida de cada um e com a natureza.

 

Segunda observação: O atual caos sanitário, ecológico, social, político e espiritual é a consequência derivada do paradigma que dominou os últimos três séculos de nossa história, agora globalizada. Os pais fundadores da Modernidade no século XVII entendiam o ser humano como o dominus, o maître et possesseur da natureza e não como parte dela. Para eles, a Terra não tem finalidade e a natureza não tem valor em si mesma, mas só é ordenada ao ser humano que pode dispor dela como bem entender. Esse paradigma modificou a face da Terra, trouxe benefícios inegáveis, mas em sua ânsia de dominar tudo, criou o princípio da autodestruição de si e da natureza com armas químicas, biológicas e nucleares.

 

O fim do mundo não é mais uma questão de Deus, mas do próprio ser humano que dominou a própria morte. Chegamos a tal ponto que o secretário-geral da ONU, António Guterrez, disse recentemente em uma reunião em Berlim sobre o aquecimento global que está crescendo de maneira inesperada: "Só temos esta escolha: ação coletiva ou suicídio coletivo".

 

Diante do paradigma dominus, o Papa Francisco, na encíclica Fratelli tutti, propõe outro paradigma: o do irmão e da irmã, o da fraternidade universal e da amizade social (n. 6; 128). Desloca o centro: de uma civilização técnico-industrial, antropocêntrica e individualista para uma civilização solidária, de preservação e cuidado de toda a vida.

 

Sabemos, a partir de dados científicos, que todos os seres vivos têm em comum o mesmo código genético básico, os 20 aminoácidos e as mesmas quatro bases nitrogenadas, desde a célula mais primitiva de 3,8 bilhões de anos, passando pelos dinossauros, cavalos e nos legando. É por isso que somos de fato, e não retórica ou misticamente, irmãos e irmãs. Isso é reafirmado pela Carta da Terra, bem como pelas duas encíclicas ecológicas do Papa Francisco.

 

Esses dois paradigmas são hoje altamente confrontados. Se seguirmos o paradigma do senhor e dono que usa o poder para dominar tudo, até as últimas dimensões da matéria e da vida, certamente encontraremos um armagedon ecológico, com o risco de exterminar a vida na Terra. Seria o justo castigo pelas ofensas e feridas que infligimos à Mãe Terra durante séculos e séculos. Ela continuará seu curso ao redor do sol, mas sem nós.

 

Com a mudança para o paradigma do frater, do irmão e da irmã, abre-se uma janela de salvação. Superaremos a visão apocalíptica da ameaça do fim da espécie humana, com uma visão de esperança, de que podemos e devemos mudar de rumo e de fato sermos irmãos e irmãs dentro da mesma Casa Comum, incluindo a natureza. Seria a boa vida e convivência do ideal andino, em harmonia entre os humanos e com toda a natureza.

 

É neste contexto que deve situar-se a ação da Igreja, que pretende ser samaritana e cuidadora de tudo o que existe e vive.

 

O Papa Francisco de Roma, inspirado pelo outro Francisco, o de Assis, percebeu a gravidade da situação dramática do sistema-Terra e do sistema-vida, e formulou uma resposta. Na Laudato Si': como cuidar da nossa Casa Comum, ele convidou a todos a "uma conversão ecológica global" (n. 5), além de "uma paixão por cuidar do mundo"..."uma mística que nos encoraja, nos impele, anima e dá sentido à ação pessoal e comunitária” (n. 216). Em Fratelli tutti foi ainda mais radical: “estamos no mesmo barco, ou todos nos salvamos ou ninguém se salvará” (n. 32).

 

Acredito que os elementos das duas encíclicas ecológicas do Papa Francisco podem nos inspirar a cumprir a missão de sermos samaritanos e zeladores de toda a vida.

 

 

Mas a primeira coisa é por onde começar. Aqui o Papa revela sua atitude básica, muitas vezes repetida em encontros com movimentos sociais, seja em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, seja em Roma:

 

"Não espere nada de cima porque sempre há mais do mesmo ou até pior; comecem por vocês mesmos”, “desde baixo, de cada um de vocês, para lutar pelo que há de mais concreto e local, até o último canto da pátria e do mundo” (Fratelli n. 78). O Papa sugere o que hoje é o ponto da discussão ecológica global: trabalhar a região, biorregionalismo que permite a verdadeira sustentabilidade, com agroecologia, uma democracia popular e participativa que humaniza as comunidades e articula o local com o universal (Fratelli n. 147).

 

De mãos dadas com a parábola do Bom Samaritano, ele faz uma análise rigorosa dos vários personagens que entram em cena e os aplica à economia política, culminando com a pergunta: “com quem você se identifica (com o ferido na estrada, com o sacerdote, com o levita ou com o estrangeiro, o samaritano, desprezado pelos judeus)? Esta pergunta é crua, direta e decisiva. Com qual deles você se parece?" (Fratelli n. 64). O Bom Samaritano torna-se modelo de amor social e político (n. 66).

 

Isso me lembra o que sempre disse o grande bispo do povo indígena de Chiapas, no México, Monsenhor Samuel Ruiz, tão incompreendido por Roma: “Esta é a pergunta que o Juiz Supremo fará a cada um no final de sua vida: de que lado você estava ligado? Quem você tem defendido? Quais pessoas você escolheu? Na resposta a essas perguntas o destino humano é decidido.

 

Como nunca antes na história, a Igreja, seja local ou universal, deve mostrar-se samaritana porque há milhões e milhões caídos nas estradas, morrendo de fome ou doenças da fome. É cruel notar que 1% da humanidade tem mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas. Eles são desumanos e impiedosos. Neste campo, em todos os países, as Igrejas se mostraram samaritanas, especialmente com as mais vulneráveis. Uma imensa onda de solidariedade se manifestou nos movimentos cristãos que ofereceram centenas de toneladas de produtos agroecológicos e milhões de pratos de comida aos marginalizados nas periferias das cidades.

 

Curiosamente, o Papa Francisco, no arco do novo paradigma da fraternidade universal e do amor social, confere um significado político a dimensões que sempre foram tratadas no campo da subjetividade, como a ternura, o cuidado e a bondade. Afirma que “na política há lugar para o amor com ternura: ao menor, ao mais fraco, ao mais pobre; eles devem nos suavizar e ter o 'direito' de encher nossa alma e nosso coração; sim, eles são nossos irmãos e irmãs e como tais devemos amá-los e tratá-los assim” (Fratelli n. 194).

 

Ele se pergunta o que é ternura e responde: “é o amor que se torna próximo e concreto; é um movimento que vem do coração e chega aos olhos, aos ouvidos, às mãos” (n. 196).

 

Da mesma forma, ele define a bondade em seu aspecto político, que significa “um estado de espírito que não é duro, duro, rude, mas afável, gentil, que sustenta e conforta. Quem possui esta qualidade ajuda os outros a tornar a sua existência mais suportável" (Fratelli n. 223). Este é um desafio para os políticos, também para os bispos e padres: fazer a revolução da ternura. Da mesma forma, vê na solidariedade uma forma de “cuidar da fragilidade humana” (Fratelli n.115).

 

A essência da Igreja, cujas raízes se encontram na comunhão das três Pessoas divinas, reside na communio e não na sacra potestas, ou seja, na sua estrutura hierárquica e piramidal. O Papa Francisco, especialmente na Laudato Si', traduz isso em termos de ecologia moderna e física quântica: um fio condutor percorre todo o texto, sustentando “que tudo está relacionado e nada existe fora da relação (LS nn. 117 e 120). Aqui reside o primado da communio como valor ecológico e principalmente eclesiológico.

 

A missão da Igreja é construir pontes, pontes afetivas entre todos e com a natureza. É refazer as relações rompidas pelo individualismo da cultura do capital. De fato, a bioantropologia e a psicologia evolutiva deixaram claro que a essência específica do ser humano é cooperar e se relacionar com todos. Não existe gene egoísta, formulado por Dawkins no final dos anos 1960 sem qualquer base empírica. Todos os genes estão inter-relacionados entre si e dentro das células. Nesse sentido, o individualismo, valor supremo da cultura do capital, é antinatural e não tem fundamento biológico.

 

 

Outro ponto fundamental na missão samaritana da Igreja é o cuidado com toda a criação. O cuidado essencial pertence a todos os seres vivos e, segundo a velha fábula do cuidado, do escravo Hyginio, aprofundada por Martin Heidegger em seu Ser e Tempo, o cuidado é a essência do humano sem a qual ninguém subsistiria. Não preciso narrar a fábula porque a trabalhei a fundo em meu livro que está em espanhol: Saber cuidar: ética do humano e compaixão pela Terra.

 

Capa do livro "Saber cuidar: ética do humano e compaixão pela Terra", de Leonardo Boff. (Foto: Divulgação)

 

O cuidado também é uma constante cosmológica: as quatro forças que sustentam o universo (gravitacional, eletromagnética, nuclear fraca e nuclear forte) atuam sinergicamente com extremo cuidado, sem as quais não estaríamos aqui refletindo sobre essas coisas.

 

O cuidado pressupõe uma relação amistosa com a vida, protetora de todos os seres porque os vê como um valor em si mesmo, independente do uso humano. Foi a falta de cuidado com a natureza, devastando-a, que fez com que os vírus perdessem seu habitat, preservado por milhares de anos, e passassem para o ser humano. Tudo o que cuidamos, amamos e tudo o que amamos, cuidamos.

 

O ecofeminismo tem contribuído significativamente para a preservação da vida e da natureza com a ética do cuidado, pois o cuidado adquire uma densidade especial nas mulheres.

 

Outro ponto fundamental da missão da Igreja é a solidariedade. Ela está no centro de nossa humanidade e em si é um valor eclesiológico, como se pôde ver nas comunidades da Igreja primitiva e acrescentaria nas comunidades eclesiais de base que estão em todas as partes da Igreja.

 

Os bioantropólogos nos revelaram que, quando nossos ancestrais antropoides procuravam sua comida, eles não a comiam isoladamente. Eles os levaram para o grupo e serviram a todos começando pelo mais novo, depois o mais velho e depois todos os outros. Daí surgiram a comensalidade e o sentido de cooperação e solidariedade. Foi a solidariedade que nos permitiu dar o salto da animalidade para a humanidade. O que era válido ontem também é válido para hoje.

 

Essa solidariedade não existe apenas entre os humanos. É outra constante cosmológica: todos os seres convivem, estão envolvidos em redes de reciprocidade e relações de solidariedade para que todos possam se ajudar a viver e coevoluir. Mesmo o mais fraco, com a colaboração de outros, subsiste, tem seu lugar no grupo dos seres e coevolui.

 

O sistema do capital não conhece a solidariedade, apenas a competição que produz tensões, rivalidades e verdadeira destruição de outros competidores com base na maior acumulação. Ele tem uma tendência suicida.

 

Hoje o maior problema da humanidade não é econômico, nem político, nem cultural, nem religioso, mas sim a falta de solidariedade com os outros seres humanos que estão ao nosso lado. O capitalismo não ama a pessoa, apenas sua capacidade de produção e consumo.

 

Como cristãos que seguem Jesus, devemos fazer da solidariedade essencial um projeto, ou seja, uma opção consciente: solidariedade do último e invisível, daqueles que não contam para o sistema vigente e são considerados zeros baratos e dispensáveis. Aqui está a base espiritual e teológica da Teologia da Libertação, cujo eixo central é a opção pelos pobres, contra sua pobreza e a favor de sua libertação.

 

 

Qual é o projeto societário sonhado pelo Papa Francisco, fundado na fraternidade universal e no amor social? O que resulta de seus textos e pronunciamentos é uma sociedade biocêntrica. A vida com toda a sua diversidade detém a centralidade. A economia e a política estão a seu serviço para que esta vida seja mantida na Terra, a Terra seja entendida como viva, a Magna Mater dos antigos, a Pachamama dos andinos e a Gaia dos modernos.

 

Tudo isso não pode ser apenas um projeto formulado intelectualmente com todos os recursos técnicos e científicos de que dispomos. Temos que incorporar algo fundamental: a razão cordial ou sensível. O mundo da excelência reside neste tipo de inteligência, que nos move e fomenta a ética, a espiritualidade e o cuidado de tal forma que construímos um vínculo afetivo com a nossa Mãe Terra.

 

A razão intelectual, importante para explicar a complexidade de nossas sociedades, tem apenas cerca de 7 a 8 milhões de anos. A razão cordial ou sensível tem cerca de duzentos e vinte milhões de anos e surgiu quando os mamíferos surgiram no processo de evolução. A mãe, ao dar à luz seus filhotes, a ama, cuida dela e a defende. Nós humanos somos mamíferos racionais, imbuídos de afeto, cuidado e amor por nossos filhos e filhas.

 

Hoje essa dimensão afetiva está praticamente ausente nos processos técnico-científicos, típicos do nosso paradigma moderno. É importante enriquecer a razão intelectual com a razão sensível e cordial para nos mover a amar e cuidar da Terra e da natureza. Em sua encíclica Laudato Si', o Papa Francisco mostra várias vezes essa razão cordial e sensível. Ele vê em São Francisco “o exemplo por excelência de cuidado... ele tinha um coração universal” (LS n.10). Em outro lugar, ele diz com profunda sensibilidade cordial: “Tudo está relacionado e todos nós, seres humanos, caminhamos juntos como irmãos e irmãs em uma maravilhosa peregrinação... que também nos une com terno afeto ao irmão Sol, irmã Lua, ao rio irmão e à Mãe Terra” (LS nos. 92 e 86).

 

Sem o resgate dos direitos do coração não vamos nos comprometer com a salvação dos "comuns", nem vamos estabelecer uma aliança afetiva com o irmão da floresta, com a irmã da água, enfim, com todos os seres da natureza dos quais fazemos parte.

 

 

Unidos, coração e mente, podemos dar sustentabilidade ao projeto de uma civilização biocêntrica. O próximo passo para a humanidade é começar a dar forma a esse tipo de civilização, que será capaz de garantir um futuro abençoado para a Casa Comum, incluindo a natureza.

 

Termino com uma frase do Livro da Sabedoria, citada pelo Papa na encíclica Laudato Si' (n. 89): “Senhor, tu amas tudo o que existe e não odeias nada do que fizeste; Ora, se odiasses alguma coisa, não a terias criado... Tu és indulgente com todas as coisas, porque todas são tuas, ó Senhor, amante da vida (Sb 11,24-26).

 

Um Deus que é um amante apaixonado da vida não vai permitir que seus filhos e filhas pereçam assim miseravelmente. Esperamos que haja mudanças substanciais na consciência da humanidade, diante das ameaças que podem exterminá-la, que leve, em suma, a "uma conversão ecológica global" (LS n.5) e assim continue a viver e brilhar neste pequeno e radiante planeta Terra, nossa Grande Mãe e Casa Comum.

 

Dixi et salvavi animam meam.

 

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