A Economia do Bem Viver: uma reflexão para a sociedade pós-pandemia

Coluna “Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco”

17 Mai 2021

 

“A transição socioecológica da economia trata-se de desenhar uma mudança histórica, um novo contrato social; é a transição de uma concepção antropocêntrica para uma sociobiocêntrica. A transição começa com o reconhecimento de que a humanidade não é uma comunidade de seres individualistas e competitivos. Nós fomos socializados por civilizações que favoreceram esses comportamentos e os sobrepujaram à cooperação e a solidariedade, que invisibilizaram o cuidado com a vida e as formas de trabalho reprodutivo e não remunerado”, escreve Alair Ferreira de Freitas, em artigo para a Coluna Rumo a Assis: na direção da Economia de Francisco, publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU. O artigo foi publicado também pelo periódico acadêmico Nau Social, da Universidade Federal da Bahia.

 

Alair Ferreira de Freitas é doutor em Administração pela UFMG, professor do Departamento de Economia Rural da Universidade Federal de Viçosa e foi um dos jovens brasileiros selecionados para o encontro Economy of Francesco.

 

Eis o artigo.

 

Introdução

 

A ferramenta mais poderosa em economia não é o dinheiro, nem mesmo a álgebra. É o lápis. Porque com um lápis pode-se redesenhar o mundo” (Kate Raworth)

 

“É necessário ‘re-animar’ a economia!”. Essa é uma afirmação marcante registrada na carta convite do Papa Francisco aos jovens do Mundo para o evento internacional Economy of Francesco, que seria realizado em 2020 em Assis, na Itália, para repensar a economia mundial e propor alternativas mais sustentáveis, solidárias e inclusivas [1]. Essa proposta é baseada na Encíclica Laudato Si', publicada pelo Papa Francisco e que completou 5 (cinco) anos de publicação em 2020, ano de deflagração de uma das maiores crises do século decorrente de uma pandemia global. A conjuntura atual expõe que aquela frase é mais atual do que nunca e revela a pronunciada necessidade de redesenhar a economia. A pandemia da covid-19 mostrou, mesmo aos mais céticos, a fragilidade do nosso sistema econômico e da própria humanidade. Ela exibiu mazelas da sociedade, intensificou desigualdades e mostrou, assim como o Papa Francisco enfatizou, que tudo está interconectado: economia, Sociedade e Natureza [2] estão intrinsecamente ligadas à (re)produção da vida.

Contudo, apesar de muitas ações solidárias em meio à grave crise que assola a humanidade (que no Brasil é intensificada por uma das maiores crises políticas de sua história democrática), a apatia social tem também isolado moralmente grande parcela da população e emitido sinal da perda do sentido de responsabilidade entre as pessoas e delas com o mundo. As narrativas em disputa enfatizam de forma premente o conflito entre a manutenção das atividades mercantis e a preservação da vida.

Muitas instituições, especialmente econômicas, aliadas a Estados conservadores e liberais, como é o caso do Brasil, tentam atribuir certa superficialidade a esse momento histórico, contrariando a profundidade da crise, que se enraíza na fragilidade do sistema de saúde, em pobreza, desigualdades e concentração de renda, numa estrutura social marcada pelo determinismo econômico da vida. A naturalização das contradições, um mecanismo discursivo e institucional das culturas capitalistas, é evocada novamente para a produção de comportamentos evasivos e sem criticidade, garantindo a manutenção do status quo. Uma das principais reivindicações do momento é a “volta ao normal”, referenciando o “normal”, ou seja, a realidade pretérita, como padrão. É justamente essa “normalidade”, porém, que a abordagem reflexiva da Laudato Si' sublinha como o caminho aos limites da própria humanidade.

Contrariando as narrativas que naturalizam o nosso padrão civilizatório individualista, consumista e patriarcal, que enuncia o mercado como entidade [3] inevitável de organização da Sociedade e o homem branco auto interessado como modelo humano, Francisco (2015), bem como movimentos sociais, cientistas, organizações feministas, grupos indígenas e camponeses e inúmeras outras manifestações contemporâneas de resistência ao sistema capitalista condenam o antropocentrismo despótico, institucionalizado numa “economia sem alma” [4], que segue trajetórias de exclusão, de produção de misérias e de degradação ambiental.

Esse contexto nos convida a repensar a economia e reposicioná-la no âmbito da construção da vida em Sociedade e de sua relação com a Natureza. O momento histórico que vivemos e as mazelas com que convivemos não podem ser mantidos naturalizados e deixar de incomodar a todas e a todos. As crises decorrentes da Pandemia da Covid-19 têm aprofundado a fome e a violência doméstica e intensificado a concentração de renda, problemas produzidos pela “condição humana” moderna e não pela “natureza humana”, como diria Hannah Arendt (2009), para quem a produção social da modernidade (o nosso “normal”), coloca em risco condições básicas da vida humana: a pluralidade e a cooperação. Não é o vírus e a pandemia, portanto, que ocasionam sozinhos tais problemas. Apenas os evidenciam e os intensificam. “Voltar ao normal” seria condescender à intransigência das instituições que sobrepõe a economia à vida.

Essa reflexão inspira a pensar a economia a partir de perspectivas contra hegemônicas, que se edifiquem sobre o “bem viver”, incluam os pobres e marginalizados, valorizem a diversidade e as ancestralidades e promovam a igualdade de gênero. Esse é um exercício ontológico, epistemológico, político e prático, que exige compreender os sentidos do que é “econômico” e a arquitetura institucional que condiciona a economia, bem como as dinâmicas sociais e ambientais que a orientam. Parto daí para construir percepções sobre a economia do bem viver, que valorize e integre a Natureza como sujeito e não objeto da realização dos desejos de consumo dos seres humanos, que reconheça os trabalhos das mulheres e seu protagonismo na economia e que pense a socialização de riquezas para reduzir desigualdades.

Esse será meu ponto de partida para introduzir uma reflexão cada vez mais necessária na atual conjuntura da humanidade. Ela passa propositadamente por (re)construir nossa cultura econômica e nossas sociabilidades. Trata-se de um processo cognitivo, de mudarmos nossa representação social sobre o mundo e sobre nós mesmos, mas também, institucional, de reconfigurar as regras e normas que reproduzem nosso padrão civilizatório e que constantemente nos constrangem a retornar à “ordem” que as estruturam.

Uma problematização sobre economias do bem viver exige, nesse sentido, como sugeriu a economista Kate Raworth (2017), que nos tornemos agnósticos sobre a importância e o papel do crescimento econômico para a Sociedade e o planeta e nutrirmos a natureza humana como incentivo intrínseco, ao invés de promover incentivos ao individualismo e aos comportamentos egoísticos. Para a autora, é preciso empreender institucionalmente uma dinâmica econômica distributiva, regenerativa e sustentável (social e ecologicamente), com base em valores até então marginalizados e negligenciados pela economia, como a igualdade de gênero e a compreensão efetiva de que os recursos naturais são finitos e estão em risco.

Foi diante dessa pauta e assumindo a liderança de uma agenda de transformação da economia global que o Papa Francisco fez o chamado aos jovens do mundo para construírem um “pacto comum” de mudança histórica. A transição proposta por essa agenda se edifica sobre os pressupostos acima mencionados e se caracteriza pelo ideal de fraternidade, atento, acima de tudo, aos pobres e excluídos, edificado sobre a cultura da comunhão, dando centralidade à vida, dos seres humanos e da Natureza. “Cuidar da nossa Casa Comum” é o propósito dessa agenda e a base da economia do bem viver, o que guiará a reflexão nesse texto.

Espero construir uma reflexão teórica e epistemológica aderente a este propósito, que convide as leitoras e leitores a pensarem suas pesquisas e sua práxis cotidiana, especialmente no contexto de um mundo pós-pandemia, cujo aprendizado primeiro foi que a maneira como a Sociedade reage ao vírus e às mazelas que ele intensifica diz mais sobre nós mesmo do que propriamente sobre a doença. Esse texto é um convite a revermos nossos esquemas mentais e morais, para que estejamos mais próximos da solidariedade e da cooperação do que da competição e do egoísmo, para que mesmo quando for necessário promover o isolamento social, saibamos conduzir a integração necessária para superar as crises e produzir resiliência.

Para construir esse quadro analítico, articulo ideias inspiradas em importantes autoras, influentes na economia contemporânea e na construção do pensamento econômico, em especial Kate Raworth, Diana Strassmann, Elinor Ostrom e Hannah Arendt, citadas nesse texto. Argumentos convergentes entre as reflexões sobre a ecologia integral, propostas pelo Papa Francisco, e do bem viver, propostas pelo economista latinoamericano Alberto Acosta, se tornaram bases para essa proposta. A partir dessas referências, duas dimensões reflexivas foram definidas, a i) cognitiva e a ii) institucional, separadas didaticamente no texto, mas integradas na realidade social, reciprocamente influenciadas. Assumo aqui que essas dimensões estão imbricadas de um caráter relacional, ou seja, se constituem a partir das relações sociais, mas também as influenciam.

As dimensões reflexivas são, assim, categorias analíticas necessárias para a construção de novos olhares e novas práticas econômicas, mas não encerram em si próprias a complexidade desse fenômeno e precisam ser compreendidas no âmago da interação recíproca entre estrutura e ação social. Apoiado pelo entendimento dessas dimensões, exponho perspectivas sobre uma transição socioecológica da economia, baseada na noção de ecologia integral. Não espero que essa seja uma reflexão teórica abstrata, mas uma contribuição, mesmo que pontual, ao pensamento social sobre caminhos à transição da economia e seu enraizamento na Sociedade.

 

Dimensão cognitiva

 

Essa é uma dimensão basilar, que explora o processo mental de percepção sobre a vida material, referente aos sentidos e significados que moldam nossa apropriação da realidade e orientam, assim, nosso comportamento. A trajetória do pensamento econômico e sua infiltração nas instituições da Sociedade refletem isso, explicitando e invisibilizando inúmeros aspectos da realidade. A economista Diana Strassmann (1999) dá exemplo ao argumentar que muitos modelos notadamente aceitos pela ciência e incorporados ao senso comum ou “verdades estilizadas”, foram baseados em suposições estereotipadas sobre gênero, marginalizando as mulheres à esfera doméstica e reforçando sua condição acessória em relação aos homens, provedores da economia, destituindo, assim, a própria economia da reprodução da vida.

O pensamento econômico ortodoxo, edificado sobre as bases inexoráveis da racionalidade, do auto interesse e do individualismo, logrou êxito como referencial civilizatório e não apenas teórico. Contudo, em contraposição, a heterodoxia reflete caminhos alternativos, ancorados na história, na interação social e em bases institucionais, que espero enfatizar a partir de uma apropriação substantiva da economia para revelar os significados de econômico e seu caráter instituído.

Para Polanyi (2012), o pensamento economicista passou a definir a natureza das instituições econômicas. Segundo o autor, isso se materializa na forma como a vida em Sociedade está organizada e os nossos meios de reprodução material são operados. Em síntese, a economia foi historicamente personificada no mercado e o resume no senso comum e em muitas teorias que intentam deslocar a economia da Sociedade. Transferem-se, assim, os sentidos e a história da economia ao mercado e sua história, minguando nossa compreensão sobre os mecanismos de reprodução da vida material e criando um anacronismo conceitual.

Polanyi (2012) classifica esse processo de “falácia economicista”, pois iguala a economia humana à economia de mercado, numa produção de sentidos que encerram nossa vida econômica em nossas aspirações e interações mercantis. Essa falácia reforça o determinismo econômico da vida e funda a ilusão de que essa é a lei geral da Sociedade, atribuindo hoje um sentido natural sobre o mercado, a competição e a exclusão. Contudo, é necessário, nesta reflexão, assumir que o mercado e o sistema econômico são construções sociais, consequências culturais históricas da nossa civilização, reproduzidas pela maioria das instituições, socializada entre gerações.

O Estado sempre assumiu papel fundamental nesse processo, impondo o mercado como matriz de organização da Sociedade, definindo as prioridades de apoio, favorecendo determinados segmentos e invisibilizando outros. Isso faz parte da história humana. Na história da agricultura e do desenvolvimento rural, por exemplo, presenciamos a prevalência de modelos institucionais desenvolvimentistas colonialistas, que supervalorizavam a produtividade agrícola, a monocultura e os grandes produtores em detrimentos da Natureza e da agricultura familiar e campesina e reforçavam uma racionalidade patriarcal da produção agropecuária. E esse é ainda o nosso “normal”. Para Francisco (2015), a economia contemporânea produz uma mentalidade utilitária, que só fornece uma concepção estática da realidade em função de necessidades atuais, presente tanto quando o mercado atribui os recursos como quando o faz um Estado planificador.

O homo economicus [5], que para muitos se tornou doutrina, é uma formulação categórica do pensamento econômico que ajudou a institucionalizar as bases da economia de mercado contemporânea, mas que não representa realmente os homens, muito menos a mulheres. O sistema econômico, portanto, não pode traduzir a Sociedade e precisa ser entendido a partir dela e não o contrário. Para conduzir esse diálogo, vamos compreender dois significados de econômico, assim como elucidou Polanyi (2012).

Para o autor, o termo “econômico” é frequentemente empregado por distintas disciplinas quando se referem à subsistência humana, mas dependendo do quadro de interpretação, isso ora aparece associado à noção de escassez, ora às necessidades materiais de reprodução da vida. Distinguem-se aí dois polos de significação não relacionados entre si, o significado formal e o significado substantivo. O significado formal, baseado no argumento da escassez, se constrói no sentido de economizar, conseguir preço baixo, com referência a negociações em torno de meios insuficientes, que impelem à prática econômica. O significado substantivo, porém, não implica necessariamente escassez e introduz o costume e as tradições como elementos que condicionam as escolhas; e quando estas se realizam, não necessariamente se padronizam pela insuficiência material.

Para Polanyi (2012), institucionalizou-se a crença universal da natureza limitada da oferta e um postulado filosoficamente temerário sobre a natureza ilimitada dos desejos e das necessidades humanas. Segundo o autor, embora essa constatação se proclamasse empírica, não passava de uma asserção dogmática que contribuiu para universalizar o mercado como instituição econômica de organização da Sociedade. A naturalização da situação de escassez e a representação de que o acesso aos bens escassos passa necessariamente pelo mercado o tornou um dos elementos mais necessário à vida humana, assentou o significado formal da economia e o enraizou em nosso “normal”. Para ele, principal ponto de problematização desse significado é que ao tratar de carências e escassez entende-se a prática humana a partir de uma concepção puramente utilitária, atomizando os indivíduos.

Já o significado substantivo se refere ao que de fato dá substância à vida, associado à interdependência dos seres humanos entre si e com a Natureza, necessárias para sobreviver e manter as Sociedades. O autor sublinha que é exatamente a interação institucionalizada com o ambiente natural que possibilita a reprodução social da vida humana, num processo de satisfação das necessidades materiais. Contudo, não se pode interpretar que as necessidades sejam exclusivamente corporais, como alimentação, vestuário ou moradia, apesar de serem essenciais à subsistência, pois há inúmeras necessidades e motivações subjetivas ao consumo. Os meios, não as necessidades, é que são materiais. Exatamente por isso, não é a utilidade o principal vetor do comportamento econômico.

A dimensão cognitiva, portanto, revela a necessidade de pensarmos o que significa a economia e como algumas apropriações teóricas, apesar de legitimadas, dão conta apenas da superfície do que o “econômico” representa para a vida humana e é por ela definido (e não o contrário). Trata-se de um exercício de desnaturalizar o mundo econômico e revelar a “economia como processo instituído”, como diria Karl Polanyi, ou seja, um processo de interação entre indivíduos e destes com a Natureza que resulta em um contínuo suprimento de satisfações das necessidades humanas: como processo, destaca seu dinamismo, seu movimento, já que os elementos materiais variam em termos de localização e de concentração em determinados grupos e pessoas; e ele é instituído porque está inserido num contexto institucional mais amplo, que condiciona formas de acesso e uso e lhe atribui sentido.

 

Dimensão institucional

 

O contexto institucional, que condiciona os comportamentos e a organização social, foi (e ainda permanece) invisibilizado em inúmeros modelos econômicos, que reproduzem o homo economicus. Porém, já não é mais coerente pensar a economia deslocada de sua dimensão institucional. O Estado, as escolas, a família, as religiões etc. têm profunda influência em como os indivíduos e grupos sociais definem seus caminhos de reprodução da vida. Valores, princípios, crenças, aspectos morais e simbólicos, em geral, são poderosas ferramentas de caracterização de Sociedades e, assim, de economias, por mais que a ortodoxia os marginalize analiticamente. Nós somos socializados e interiorizamos essas ferramentas de tradução da realidade e é a partir delas que consumimos, usamos e descartamos.

A Encíclica Laudato Si' registra que o “estado de saúde” das instituições de uma Sociedade tem consequências diretas na natureza e na condição de vida humana, de forma que interferir na solidariedade e na organização cívica de uma Sociedade provoca danos ambientais. Para Francisco (2015, p. 116), “a ecologia social é necessariamente institucional e progressivamente alcança as diferentes dimensões, que vão desde o grupo social primário, à família, até à vida internacional, passando pela comunidade local e a nação”. Em cada uma dessas esferas de realização da vida e de organização da economia desenvolvem-se e se reproduzem instituições, que regulam as relações humanas e buscam dar sentido às nossas práticas e manter a ordem social.

Segundo Kate Raworth (2017), para mudarmos o sistema econômico e torná-lo regenerativo e sustentável é necessária uma profunda mudança institucional que, dentre outros, exige a proposição de novas legislações, ou seja, novas regras que condicionem o comportamento humano e as práticas do setor privado e dos governos. A autora reforça que o único conjunto de leis que não podemos mudar é aquele ligado à dinâmica do sistema Terra. O sistema financeiro, a característica dos produtos disponíveis para o consumo e os preços, todos podem ser alterados e reorientados e novas instituições podem ser criadas, voltadas à manutenção do equilíbrio entre a economia, a Natureza e a Sociedade, entendendo que a economia é um produto da Sociedade e a Sociedade parte integrante da Natureza. A proposição de Francisco (2015) reforça isso ao sublinhar que tudo está interconectado e essa conexão precisa ser adequada à vida e não ao lucro, que a preocupação das empresas precisa ser seu retorno à Sociedade e não sobre seus investimentos stricto sensu.

Portanto, a mudança institucional é radical a essa reflexão. Para mudar a economia é preciso mudar leis e normas que orientam a Sociedade. E isso passa por uma mudança que lhe é intrínseca, que é cognitiva. Se não entendermos que estamos à beira de um colapso planetário, que estamos colocando a humanidade em risco e que isso está diretamente associado à forma como nos relacionamos e consumimos, não iremos requerer novas formas de comportamento e práticas econômicas. As diversas experiências que integram economias do bem viver, como a agricultura agroecológica e os empreendimentos de economia solidária, ilustram caminhos, mas precisamos ampliar a escala dessas experiências para torná-las a regra e não a exceção.

A esse debate Kate Raworth (2017) novamente contribui, elucidando que muitos modelos econômicos que orientam processos de desenvolvimento têm negligenciado importantes esferas de formação de valor e realização da vida material para além do Estado e do mercado, exaltados pelo mainstream da economia. Isso passa a influenciar as instituições e a dinâmica econômica, que também as invisibilizam. O espaço doméstico e os bens comuns, ou bens públicos compartilhados não estatais que são bases da ação coletiva e integração da sociedade civil, em geral não aparecem e não são valorizados nos modelos econômicos. A invisibilidade dos espaços domésticos marginalizou o protagonismo das mulheres na economia e praticamente as retirou da reflexão teórica, contribuindo para tornar a economia, um sistema historicamente patriarcal e desigual.

Elinor Ostrom, grande referência global no tema dos bens comuns (commons), recebeu o Prêmio Nobel de Economia de 2009. Para a autora, a ação coletiva induz convenções e instituições capazes de preservar o bem comum, que não apenas o Estado e o Mercado produzem, mas isso depende da capacidade das comunidades em se mobilizarem e estabelecerem confiança mútua (Ostrom, 1990). A análise institucional que ela empreende demonstrou o poder da ação coletiva na preservação do bem comum, reforçando que a solução para o desenvolvimento sustentável não se encerra no mercado ou no Estado e não pode ser universalizável, pois emerge da própria Sociedade, adaptado às comunidades e aos arranjos institucionais para a governança dos recursos comuns, voltados à sua manutenção. Contudo, a autora adverte: a sustentabilidade da ação coletiva, para a preservação dos bens comuns, depende de como as instituições são construídas e se as regras e normas que as reproduzem reforçam comportamentos cooperativos e ampliam a confiança.

A economia do bem viver preserva os bens comuns, cuida da Natureza e valoriza a vida. Isso demanda mudar instituições, estimulando a cooperação e não a competição, a consciência e não o consumismo, a solidariedade e não o individualismo. Esse é um processo de mudança institucional e, como tal, parte de ações coletivas. E já há, em todas as partes do mundo, inúmeros empreendimentos humanos que constroem formas alternativas de interagir com a Natureza e de conceber a Sociedade, como as mobilizações pela igualdade de gênero, redes de agroecologia e agricultura sustentável, grupos de proteção da água como bem comum etc. São experiências coletivas que nutrem esperanças para o futuro e sinalizam a toda Sociedade que outras economias existem e funcionam.

Isso reforça que, se o sistema econômico atual e as leis que o regem i) induzem a organização da Sociedade a partir do consumo; ii) possibilitam e reforçam a competição desleal no mundo empresarial, que é regido pela necessidade de acumulação de lucro; iii) fazem as crianças desde cedo se reconhecerem como consumidoras, mas não as ajuda a entenderem sua relação com a Natureza; iv) criam status social a partir do acúmulo de bens materiais, dentre diversas outras características que lhe são inerentes; o problema nunca esteve nos “jogadores”, mas nas “regras do jogo”. Retomando Hannah Arendt, a questão em pauta não é a natureza humana, mas a condição humana, o “problema” não é que os indivíduos nascem com o gene da competição e do individualismo, mas que a condição em que eles nascem e vivem, as instituições por meio das quais são socializados, os moldam à sua própria lógica, para reproduzir o sistema e preservar a ordem instituída.

Mas se as regras e as instituições são socialmente construídas, elas podem ser alteradas.

 

Ecologia integral: por uma transição socioecológica da economia

 

O sistema econômico da forma como está institucionalizado pode ser concebido como um sistema vivo, enraizado em nossa cultura e reproduzido entre gerações. Nossas instituições são os principais aparelhos de operação desse sistema e os indivíduos suas engrenagens, que internalizam valores, rotinizam práticas e naturalizam determinados aspectos da realidade. Nós crescemos internalizando a noção de que somos proprietários e dominadores da Natureza e, por isso, autorizados a usá-la de acordo com nossos interesses. Vivemos nesse padrão civilizatório o que Acosta (2016) chamou de divórcio entre produção e Natureza. E, segundo o autor, para libertar a Natureza da condição de mero objeto de propriedade dos seres humanos é necessário um grande esforço político, e por isso institucional, de reconhecê-la como “sujeito de direitos”.

Podemos incluir essa questão no âmago do que Francisco (2015) defende como ecologia integral, uma perspectiva analítica e política sobre a relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a Natureza. A ecologia integral, da forma como compreendo, é uma referência epistemológica para traçar novos caminhos de ação e reflexão sobre a integração economia-Sociedade-Natureza, trazendo à baila questões centrais como os direitos da Natureza, a reprodução da vida e a igualdade de gênero, ausentes na construção do pensamento econômico e, assim, das políticas públicas, leis e de boa parte da história econômica.

Para Acosta (2016), na história humana, definiu-se a Natureza sem considerar a humanidade como sua parte integral, rejeitando o fato de que os seres humanos são, por si próprios, Natureza. Precisamos superar, portanto, os esquemas antropocêntricos de organização produtiva que impulsionam a economia. Para o autor, é preciso aceitar que todos os seres têm o mesmo valor ontológico. Isso não significa, entretanto, que sejam tratados como idênticos, mas que não podemos tornar a Natureza objeto de nossos interesses utilitários e sim sujeito de direitos. Isso articula o que o autor denomina de uma “igualdade sociobiocêntrica” como matriz de organização social.

Falar em direitos da Natureza não é criar uma noção anacrônica que defende a Natureza como intocada e a volta ao passado. Ao contrário, é um mecanismo para que a Sociedade humana permaneça em evolução e possa continuar a cultivar terras, pescar e criar animais, porém, com atenção direta e profunda aos ecossistemas e ao bem comum e não aos indivíduos e seus interesses particulares. Acosta (2016) argumenta, nesse sentido, que os direitos humanos e os direitos da Natureza são analiticamente diferenciáveis, e que nessa concepção se complementam e se transformam em uma espécie de “direitos da vida” e “direitos à vida”.

Pensar desse ponto de vista é criar um exercício para o que Francisco (2015) chamou de conversão ecológica, que diz respeito inicialmente a uma mudança cultural e cognitiva, no sentido de “alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo”. Para ele, a conversão ecológica, que se requer para criar uma mudança duradoura em nossa economia, para uma versão mais sustentável e inclusiva, é também uma conversão comunitária. A abordagem ecológica, no âmbito de uma ecologia integral, envolve, assim, uma abordagem social, entendendo que a degradação ambiental está sempre intimamente (objetiva e subjetivamente) ligada à degradação humana e ética da Sociedade. É por isso que Francisco (2015) deixa claro que não há ecologia sem uma adequada antropologia.

A pobreza, a fome e a desigualdade que descaradamente ainda assombram nossos tempos, intensificadas atualmente por uma pandemia global, possuem também lastro na concessão de direitos de propriedade sobre a Natureza e as funções dos ecossistemas (o que a torna objeto). Nosso pensamento funcional e utilitário nos afasta dos setores populares, invisibiliza a pobreza, minimiza os impactos ambientais e força o encolhimento dos Estados. A construção de economias para o bem viver exige uma transição socioecológica da economia, edificada sob a perspectiva de uma ecologia integral, por meio da qual possamos colocar a política e a economia a serviço da vida.

A sustentabilidade da vida humana não pode mais ser usualmente considerada como externalidade do sistema econômico, mas como o eixo estruturante da economia. Como tal, o trabalho é uma categoria fundamental, porque é ação implicada na transformação da Natureza. Se assim o é por condição, para responder à histórica omissão da economia, é preciso reconhecer e valorizar a igualdade de todas as formas de trabalho orientado à vida.

Contudo, imperiosamente os modelos de explicação da economia desconsideraram as formas de trabalho não produtivas e produtivas não remuneradas, o que expõe a enorme e equivocada omissão, que toma grandes proporções quando observamos que a política, que na maioria das nações é orientada pela economia, reproduz essas ausências. É por esse contexto que Strassmann (1999) afirma a necessidade de mudar as formas institucionais que marginalizaram o pensamento e a prática feminista e corroboram para desumanizar a economia. Para a autora, os argumentos que se assentam numa presunção de igualdade humana, como se homens e mulheres tivessem recursos e escolhas disponíveis em iguais proporções por conviverem numa mesma Sociedade, distorcem e omitem a realidade. Há uma variedade de influências importantes na vida das mulheres, reproduzidas por nossas instituições, como normas sociais sexistas, determinações culturais sobre a vida econômica das mulheres, responsabilidades desiguais sobre a reprodução, desequilíbrio de poder e violência doméstica e discriminação as mais variadas.

Isso depõe diretamente contra a configuração institucional da economia contemporânea e reafirma que a transição da economia para uma matriz regenerativa e sustentável é urgente, reintegrando a Natureza como sujeito de direitos e a humanidade como substrato das práticas sociais. Nessa transição é inevitável a inclusão da quitação de um débito histórico, oportunizando o protagonismo das mulheres, especialmente porque quando se reconhece todas as formas de trabalho e se ressignifica a economia, se conclui que sem as mulheres não há economia (MARÇAL, 2017).

Organizando essas reflexões e considerando as inúmeras e emergentes experiências econômicas alternativas, mas também a realidade sobre a qual elas brotam, marcadas pela desigualdade, ressalto que essa não é apenas uma discussão aparelhada a uma abordagem heterodoxa da economia, mas uma reflexão social e teórica sociobiocêntrica, contra hegemônica. Acredito que esse é o ângulo por meio do qual Francisco (2015) reafirma a necessidade de uma nova solidariedade universal e Acosta (2016) o gérmen de outra civilização. Por isso, como sugere este último, não se trata de buscar desenvolvimentos alternativos, mas alternativas de desenvolvimento, para que possamos promover mudanças institucionais e superar a miséria da modernização – o que não significa modernizar a miséria.

 

Considerações finais

 

Todas as autoras e autores mencionados aqui convergem com percepção de que um dos maiores desafios da humanidade é interferir nas dimensões cognitiva e institucional acima mencionadas, ou seja, mudar a forma como pensamos, para alterar as estruturas que regulam a Sociedade e, assim, mudar os comportamentos individuais e nossas relações sociais. A transição socioecológica da economia trata-se, assim, de desenhar uma mudança histórica, um novo contrato social; é a transição de uma concepção antropocêntrica para uma sociobiocêntrica.

A transição começa com o reconhecimento de que a humanidade não é uma comunidade de seres individualistas e competitivos. Nós fomos socializados por civilizações que favoreceram esses comportamentos e os sobrepujaram à cooperação e a solidariedade, que invisibilizaram o cuidado com a vida e as formas de trabalho reprodutivo e não remunerado. Retomando a epígrafe desse texto, será necessário, e é possível, “redesenhar o mundo”, ou seja, redesenhar as instituições e incorporar novos princípios de organização econômica, que estimulem a reciprocidade entre Sociedade e Natureza e a cooperação humana e que valorize as trabalhadoras e os trabalhadores como agentes decisivos da produção material e da reprodução da vida. Para Acosta (2016), o bem viver também requer princípios feministas de uma economia voltada ao cuidado da vida, baseada em cooperação, complementariedade, reciprocidade e solidariedade.

É preciso reforçar que tal transição, baseada numa ecologia integral, não pode ser reduzida ao imediatismo de uma Sociedade cínica [6]. Na perspectiva de Francisco (2015), o redesenho necessário ao mundo passa primeiro pela socialização do lápis que o realiza e deveria ser operado por uma reflexão diferente, por novas leis, políticas públicas e programas educativos, por novos estilos de vida e por espiritualidades que convirjam para a redução das desigualdades e a proteção da Natureza e façam resistência ao avanço do capitalismo depredador e desumano.

Retomamos aqui, para encerrar, o chamado do Papa Francisco aos jovens do mundo para repensarem a economia, refletirem sobre seus mundos, para tomarem os lápis e desenharem a transição necessária para a construção de economias para o bem viver. Esse “chamado” é um diálogo intersetorial, que fala sobre problemas e necessidades que escapam a religiões, etnias, classes, gêneros e qualquer outro marcador social. As juventudes assumem um papel poderoso nesse caminho de transformação, pois conduzirão as instituições e socializarão as futuras gerações. Não basta lhes passar o lápis, é necessário construir com eles o entendimento de que economias, ou melhor, de que mundo queremos: interferir na dimensão cognitiva e construir coletivamente novos olhares sobre o mundo, para interferir na dimensão institucional e construir coletivamente os termos de um novo “contrato social”.

A transição de que falo pode ser compreendida, portanto, como um compromisso intergeracional, um pacto para que a economia (entendida pelo seu significado substantivo) esteja a favor da vida, seja, portanto, uma economia do bem viver. E se pensarmos o que tudo isso significa, valorizando todos os elementos acima mencionados e outros que por falta de espaço não foi possível apresentar, poderíamos chamar essa transição de uma ruptura paradigmática, que precisa ser tratada com a complexidade que lhe é devida, pois, apesar de Kate Raworth afirmar que a ferramenta mais poderosa em economia é o lápis, ela deixa claro que a economia é uma relação entre seres humanos e não cabe numa equação.

 

Referências Bibliográficas

 

ACOSTA, Alberto. Bem Viver: Uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária e Elefante Editora, 2016.

ARENDT, Hannahh. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2009.

MARÇAL, Katrine. O Lado invisível da Economia: uma visão feminista. Tradução: Laura Folgueira. São Paulo: Editora Alaúde, 2017.

OSTROM, Elinor. Governing the commons: the evolution of institutions for collective action. Indiana university: University press, 1990.

PAPA FRANCISCO. Carta Encíclica Laudato Si'': sobre o Cuidado da Casa Comum. Roma: Cidade do Vaticano, 2015.

POLANYI, Karl. A subsistência do homem e ensaios correlatos. Rio de Janeiro, Contraponto, 2012.

RAWORTH, Kate. Doughnut economics: seven ways to think like a 21stcentury economist. Chelsea Green Publishing, 2017.

STRASSMANN, Diana. A economia feminista. In: PETEERSON, Janice; LEWIS, Margareth (orgs). Feminist Economic. Northampton/USA: Edward Elgar, 1999. Traduzido por Maria Giuseppina Curione.

 

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