Morte ou reinvenção da democracia? Desafios para o futuro de um sistema político

Tendo em perspectivas as conjunturais brasileira e global, XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e XXI Simpósio Internacional IHU abordarão “O Futuro da Democracia e o Novo Regime Climático: amaças (auto) críticas e potencialidades”

psol.org

Por: João Vitor Santos | 08 Setembro 2022

 

Em 2018, Steven Levitsky, professor de Ciência Política da Universidade Harvard, já dizia que as democracias ocidentais estavam moribundas. Ou melhor, sob ameaça de morte. Tal ameaça, segundo aponta em seu livro Como as democracias morrem (Zahar, 2018), não se constituiria por golpes de Estado como antigamente, com canhão na rua e tropa perfilada avançando para o fechamento do Congresso. Na verdade, o tal atentado contra a democracia seria mais parecido com o novo coronavírus, um organismo microscópio inoculado quase imperceptivelmente. Quando o paciente se desse por conta, já estaria de cama e, quando ainda estivesse apostando em chazinhos, já evoluiria para quadros terríveis e morte. E o pior: quando nos déssemos conta, estaríamos tão aturdidos que mal saberíamos como reagir. “As democracias morrem por ataques sutis e sistemáticos contra as instituições”, apontou o professor em entrevista reproduzida no site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

 

Edição em português da obra de Levitsky, escrita em parceria com o colega Daniel Ziblatt | Imagem: divulgação

 

Seguindo com o pensamento do britânico, o tal vírus a ser inoculado em instituições que levaria à morte da democracia poderia ser, no caso brasileiro, o desfacelamento do Judiciário. “‘Jogo duro constitucional’ é usar as instituições como arma política contra o seu oponente. Usar a letra da lei de maneira a diminuir o espírito da lei. É fruto da polarização: quando os dois lados começam a temer e desprezar o outro, eles passam a lançar mão de qualquer meio necessário para impedir que o outro vença”, explicou o professor na mesma entrevista. Mas, lembremos que a citação é de 2018, ainda poucos anos antes da investida do Governo Bolsonaro e de seus seguidores ao Supremo Tribunal Federal – STF. Em 2021, no terceiro ano desse governo, a questão mudava, como apontou o historiador Adriano de Freixo, em entrevista ao IHU. “A questão hoje é outra: é saber se esse processo de desdemocratização culminará ou não em uma ruptura institucional explícita, como defendem os setores mais radicalizados do bolsonarismo. E a resposta é sim: há sempre esse risco”, disse na época.

 

 

Um ano antes, em 2020, ano em que a pandemia de Covid-19 no Brasil avança rapidamente, o professor Roberto Romano – que, por sinal, veio a falecer em decorrência da Covid-19 em julho de 2021 – alertava que não era somente sobre o Judiciário que o governo agiria, mas também no Congresso. Diante de rompantes autoritários do presidente da República, Romano chamava atenção sobre como os poder constitucionais eram corroídos por ondas que negavam leis, regras e até a ciência em nome de uma ideia torta de liberdade. Pois, como bem lembrava, insufladas desde um QG em pleno Palácio do Planalto, “massas brasileiras são movidas pela desobediência às leis, à ordem institucional, às informações científicas e aos relatos dos jornais que ainda resistem ao poder mentiroso”.

 

 

Quando Levitsky escreve seu livro, está embebido no contexto na ascensão de Donal Trump, nos Estados Unidos, e de Boris Johnson, no Reino Unido, entre outros líderes de extrema-direita no mundo, e reconhece ainda saber da maquinaria que eleva Jair Bolsonaro ao poder. Mas e agora, no último ano de governo, na iminência de eleições e diante de fluxos em influxos progressistas pelo mundo, especialmente na América Latina, que ainda tenta compreender o caso chileno? Será mesmo que as democracias ainda correm riscos de morte? Ou será que a velha democracia como conhecemos está mesmo com os dias contato e vivemos a emergência de reinvenção depois dessas experiências e da emergência de problemas do século XX?

 

 

 

A resposta para essas questões não são nada fácil, mas essas e outras tantas questões formam o pano de fundo que deve instigar os debates do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e XXI Simpósio Internacional IHU, intitulado “O Futuro da Democracia e o Novo Regime Climático: ameaças, (auto) críticas e potencialidades”. Promovido numa parceria entre IHU e o Programa de Pós-Graduação em Filosofia – Unisinos, o evento abre nessa terça-feira, dia 13-06, com palestras online, na modalidade livre. Com palestrantes do Brasil e do mundo, as atividades se estenderão até dia 29 de novembro. Saiba mais através da página reproduzida abaixo.

 

 

 

Novo regime climático, um teste à democracia?

Agora, pensemos que as transformações do século XXI não se dão somente ao aspecto político, especialmente no avanço da extrema-direita. Vivemos, por exemplo, um verdadeiro caos climático que não começou os últimos governos e nem nas últimas décadas. Evidente que a forma como as coisas foram conduzidas sob a batuta da extrema-direita e seus negacionismos pioram o cenário, mas nem tudo se reduz a isso. Do contrário, bastaria defenestrar a extrema-direita e o planeta estava salvo. Talvez, uma lição a ser aprendida é que não fomos lá muito democráticos com as outras formas de vida e com a própria Terra.

 

Nesse sentido, talvez fosse importante incluir esse sujeitos não humanos num sistema democrático global, baseado especialmente pela convivialidade. Como aponta Aliny Pires, em entrevista concedida em 2021 ao IHU, a natureza pode sim ensinar muitos caminhos à humanidade. “A biodiversidade oferece soluções extremamente importantes, que estão centradas em conceitos, como o de 'adaptação baseada em ecossistemas' e 'soluções baseadas na natureza', que podem garantir uma maior resiliência da nossa sociedade, contemplando aspectos que, ao mesmo tempo, conservem a biodiversidade, nos protejam do clima e sejam capazes de promover bem-estar para as pessoas”, explicou, na entrevista que reproduzimos abaixo.

 

 

Agora, é preciso de rompamos com a perspectivas cândidas e edílicas na relação em humanos e natureza. Não se trata de pensar em agir como a protagonista do contata de fadas Branca de Neve que fala com passarinhos e é protegida por esquilos e cervos quando se perde na floresta. Trata-se de assumir uma postura política na relação com a natureza e todos os outros viventes, muito mais como uma ideia de cosmopolítica dos animais, de Juliana Fausto, dilatada para toda natureza. “A política diz respeito a muito mais agentes, muito mais seres do que se costuma afirmar”, aponta Juliana, em conferência realizada no IHU.

 

 

 

 A provocação de Juliana é no sentido de “retrabalhar a noção de política, pensando que existem outros humanos e outros seres, prestando atenção aos animais na construção dessas políticas”. Então, por que não pensarmos noutra democracia que dê cota de tudo isso? Quem sabe, essa não possa ser uma saída para o estado de crises que parecemos mergulhados no século XXI, que tem fortes marcas na política, mas que vão muito além. “Trata-se de uma crise que é transversal à ciência e à política. Tudo isso vem se intensificando e os tais populistas de direita, negacionistas e conspiradores são uma reação a esta crise. Todos esses atores começam a se proliferar no vácuo da crise da expertise e da ciência regulatória”, analisa a professora e pesquisadora Letícia Cesarino, também em conferência realizada pelo IHU.

 

 

 

Afinal, o próprio Bruno Latour, com sua ideia de "aterrar", enquanto viventes, ilumina algumas mudanças possíveis nesse sentido. É como Letícia, leitora de Latour, coloca: “Não me parece possível voltar a uma configuração onde há cientistas representando o mundo não humano, políticos representando os humanos e cada um do seu lado, onde cada representante ‘fala’ pelos seus, chega-se a um acordo e a coisa ‘funciona’. É preciso reintermediar, há um processo de crises das representações e das expertises, mas é preciso, reitero, reconstruir as mediações, sob pena de cairmos em um estado de guerra de novo”. Seria o caso, então, de pensar uma política que leve em conta o novo regime climático? Para Letícia, é nesse sentido. “Proponho uma questão um pouco mais especulativa, mas é interessante pensarmos não somente sobre as políticas da natureza, mas sobre a natureza da política”, completa, na entrevista que reproduzimos abaixo.

 

 

 A digitalização da vida requer uma outra democracia?

 

Nesses solavancos que as democracias ocidentais tem sofrido, não se pode também perder em perspectiva a centralidade das tecnologias da informação e do mundo que passa a ser conectado em rede. Otávio Z. Catelano, doutorando e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Integrante do Grupo de Estudos em Política Brasileira (PolBras), observa que “a velocidade, a comunicação instantânea e as novas formas de interação das novas Tecnologias de Informação de Comunicação (TICs) podem estar transformando a democracia representativa a partir de mecanismos sobre os quais não estamos nos debruçando hoje”.

 

Em artigo publicado pelo site do IHU, e que reproduzimos abaixo, ele concluir que “teremos em mãos os elementos necessários para observar os comportamentos individuais e coletivos que estão mudando. Aparentemente, essas mudanças estão 'causando as' ou 'sendo causadas pelas' transformações da democracia representativa. E, para a retomada da consolidação democrática no nosso país e no mundo, saber diagnosticar qual das duas opções é a correta faz toda a diferença”.

 

 

 

É por isso que uma discussão acerca da democracia em nossos tempos também não pode deixar de levar em conta esse mundo digital. É por isso que XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e XXI Simpósio Internacional IHU - “O Futuro da Democracia e o Novo Regime Climático: amaças, (auto) críticas e potencialidades” abre com uma conferência que trata justamente dessa temática. Sob título “A digitalização da vida e o futuro da democracia”, o professor Massimo Di Felice, da Universidade de São Paulo – USP, abre as atividades com sua palestra na próxima terça-feira, 13-09, às dez da manhã.

 

Massimo Di Felice (Foto: Arquivo pessoal)

 

Não é a primeira vez que Di Felice aborda o tema no IHU. Em entrevista concedida em 2021, ele já anunciava que os muros da pólis haviam caído. “Essas três transformações, a pandemia, as mudanças climáticas e as inovações tecnológicas digitais, constituem as evidências de um protagonismo dos não humanos”, disse, na entrevista concedida à Profa. Dra. Eliane Schlemmer, do Grupo de Pesquisa em Educação Digital - GPe-dU Unisinos. Assim, para ele, as transformações veem por uma outra ideia de cidadania, a digital. “A minha ideia de cidadania digital tem a ver com a necessidade de repensar a morfologia do social e, consequentemente, a ideia ocidental de política, de governança e de democracia”, explica.

 

 

Em entrevista mais recente, de abril desse ano, concedida ao IHU, avança na ideia de cidadania digital. “A ideia de cidadania digital contribui ao debate internacional contemporâneo, no âmbito das ciências humanas e sociais, indicando a 'natureza digital' (a-natureza) e as especificidades informativas destas novas ecologias, produzidas pelo processo de datificação e, por tanto, pelos processamentos de interações e data em redes”. Assim, observa que “a nossa interação com o mundo, com a biosfera, com as florestas, com o clima, com os espaços urbanos é hoje uma interação datificada, isto é, produzida em simbiose com softwares, algoritmos, sensores e big data”.

  

 

E, daí, surge a emergência de pensar o futuro da democracia em meio a uma digitalização da vida, tema de sua fala na abertura do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e XXI Simpósio Internacional IHU.

 

 

 

Saiba mais sobre o professor Di Felice

 

Possui graduação em Sociologia pela Università degli Studi La Sapienza, doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Paris Descartes V, Sorbonne. É professor da USP e professor visitante na Università Roma III (Itália), na Université Paul-Valéry Montpellier III (França) e na Universidade Lusófona (Portugal). É coordenador do centro internacional de pesquisa Atopos da USP e diretor científico do Instituto Toposofia de Roma.

 

Massimo Di Felice (Foto: Reprodução Youtube)

 

Sua obra mais recente é A cidadania digital: a crise da ideia ocidental de democracia e a participação nas redes digitais (São Paulo: Paulus, 2020). É autor também de Net-Ativismo. Da ação social para o ato conectivo (São Paulo: Paulus, 2017). Ainda destacamos Redes digitais e sustentabilidade - as interações com o meio ambiente na era da informação (São Paulo: Annablume, 2012), Paisagens pós-urbanas: o fim da experiência urbana e as formas comunicativas do habitar (São Paulo: Annablume, 2009) e Do público para as redes (São Caetano do Sul: Difusão, 2008).

 

Entrevistas realizadas pelo IHU com Massimo Di Felice

 

 

Artigos de Massimo Di Felice reproduzidos pelo IHU

 

 

Confira as próximas conferências do XXV Colóquio Internacional de Filosofia Unisinos e o XXI Simpósio Internacional IHU

 

 

 

 

 

 

  

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