Roberto Romano, uma vida atravessada pela história

Robermno Romano, em 2016, durante conferência no IHU | Foto: Ricardo Machado - IHU

23 Julho 2021



Roberto Romano nasceu na pequena cidade de Jaguapitã, no Norte do Paraná, próximo à divisa com São Paulo. Filho da comunhão de uma família paulista que ia em direção ao Sul e de uma família gaúcha que seguia em direção ao Norte, cresceu em uma região predominantemente rural. A aura de tranquilidade que cerca a vida no campo não se traduzia em realidade na pequena cidade na qual Romano nasceu e cresceu, onde desde a infância aprendeu a conviver com a violência. “A região onde vivia quando pequeno era muito violenta, com grilagem, bandidagem, etc., o que levou meus familiares a retornarem a São Paulo. Havia também muitas doenças, a principal delas chamada Moisés Lupion , que era governador do Paraná na época e que tratava muito mal os professores e muito bem as empreiteiras, como é o caso até hoje”, conta Romano, cuja mãe era professora.

De volta a São Paulo, Roberto Romano, juntamente com sua família, foi morar na cidade de Marília, no sudoeste do Estado, onde fez o ginásio, equivalente ao ensino médio, e entrou em contato com o professor e filósofo católico Ubaldo Pupi , que liderava as pessoas católicas de esquerda da região. “Entrei para a Juventude Estudantil Católica – JEC com 16 ou 17 anos, quando ocorreu a tragédia do Golpe Militar de 1964. Houve muita perseguição política na cidade, e o professor Ubaldo foi preso e perdeu o emprego na faculdade”, explica.

O perfil é de autoria de Márcia Junges e Ricardo Machado e publicado pela revista IHU On-Line, no. 435, 16-12-2013

 

Regime Militar

O militarismo no Brasil começava a espalhar sua forma de governo sobre o país, e os efeitos de um dos períodos mais sombrios de nossa história começavam a emergir. Em Marília, o Bispo Dom Bressane de Araújo , apesar de conservador, nas palavras de Roberto Romano, era muito culto e não aceitava a campanha de perseguição contra os religiosos católicos de sua diocese. “Sempre que alguém ia delatar outrem na Igreja, o bispo dizia: Meu filho, faça uma declaração no cartório e depois me devolva”, relata Romano, e diz que depois de um tempo ninguém mais apareceu para fazer denúncias.

 

Dominicanos

Quando Romano estava às vésperas de completar 20 anos, muito identificado com a realidade dos dominicanos, considerou que tinha vocação religiosa e foi para Juiz de Fora, em Minas Gerais, no Convento dos Dominicanos, onde permaneceu até 1967. Depois disso retornou a São Paulo, para se preparar ao noviciado, quando fez vestibular para o Instituto de Filosofia e Teologia de São Paulo, iniciativa que tentou reunir as ordens em um curso de Teologia e Filosofia. “Não fiquei muito satisfeito com o curso de Filosofia. Havia dominicanos que faziam Filosofia na Universidade de São Paulo – USP. Aí pedi autorização para fazer vestibular lá”, esclarece.

 

Prisão e morte

O ano em que Romano fez vestibular para Filosofia na USP coincidiu com o assassinato de Carlos Marighella, em 1969. Na época os dominicanos eram muito próximos ao movimento Ação Popular, criado por Betinho, que se pretendia socialista. No entanto, após uma série de debates internos, parte do grupo decidiu-se por um tipo de postura marxista, o que levou os dominicanos a se aproximarem da Ação Libertadora Nacional - ALN, criada, justamente, por Marighella e que aceitava os religiosos.

“O Ivo Lesbaupin foi preso. Quando ele disse que ia para o Rio de Janeiro, o clima já estava pesado, pediu-me que caso ele não aparecesse em tantos dias era para ligar para seus pais”, conta. “Passaram os dias e ele não apareceu. Eu pedi ao superior do convento para ir até o Rio de Janeiro para saber notícias dele. O telefone do convento estava grampeado. Quando eu cheguei no Convento do Leme, chamei um colega para irmos até a casa do pai do Ivo, e na porta mesmo fomos presos pelo Centro de Informações da Marinha – Cenimar”, complementa.

 

Dias de escuridão

A relação de Romano com a ALN era muito tênue, como ele mesmo conta, resumia-se a ajudar as pessoas a fugirem, mas não tinha nenhum vínculo formal com o movimento. “Fui levado e interrogado, mas não tinha muito que dizer, pois não tinha trato com a ALN. Fui transferido do Rio de Janeiro para São Paulo, onde encontrei o Ivo na cela do Departamento de Ordem Política e Social - DOPS  com o rosto totalmente esfacelado. Só o reconheci porque ele usava a mesma camisa xadrez canadense de quando saiu do convento. Quando o vi, pensei — Eu conheço essa camisa”, recorda Romano.

 

Roberto Romano (Foto: Ricardo Machado | IHU)

 

Repressão

Quando estava em São Paulo, Romano encontrou Frei Betto, que havia sido preso no Rio Grande do Sul e foi encaminhado ao Dops paulista. “Fiquei mais ou menos dois meses no Dops, depois fomos para o presídio Tiradentes. Meses depois, Frei Tito, que havia sido muito torturado, tentou suicídio. Até que houve uma greve de fome para diminuir o rigor da repressão”, recorda.

 

Desespero

A conjugação entre inexperiência, desespero e dor levou Roberto Romano a tentar suicídio. “A situação ficou de tal modo insuportável que eu, inexperiente e tolo, tentei suicídio. Fui socorrido por Dom Paulo Evaristo, a quem devo a vida”, relata. “Depois disso fomos ouvidos pela segunda auditoria militar, e o Ivo, o Fernando e o Betto foram transferidos para o presídio de Presidente Venceslau. E eu fui liberto em um regime em que a pessoa é solta, mas tem que assinar um livro toda semana. Aí voltei para a universidade e continuei o curso de Filosofia, ainda como dominicano”, explica. Após o julgamento, Romano foi absolvido por absoluta falta de provas, sendo que recentemente recebeu um documento em que o Estado brasileiro informa que lhe concedeu anistia e reconhece o regime de exceção praticado pelos governantes da época.

 

A Igreja e o Regime

Romano conta que ao final da ditadura militar passou-se a veicular que a Igreja como um todo resistiu e defendeu os direitos humanos. “Houve corajosíssimos cardeais, bispos, religiosos e leigos que agiram quase profeticamente em defesa dos direitos humanos e da fé cristã no sentido autêntico, Dom Paulo foi um deles, assim como Dom Tomás Balduíno”, pondera.

Um dos exemplos lamentados por Romano foi um episódio ocorrido no presídio de Tiradentes, em que Dom Vicente Scherer foi visitar os dominicanos e junto com os religiosos havia um preso da ALN que tinha sido alvejado nas pernas por tiros de metralhadora. “Esse detento estava com a perna engessada e necrosando. Dom Scherer viu tudo. Quando ele foi embora, Frei Betto escreveu-lhe uma carta pedindo que intercedesse para que o preso fosse encaminhado ao hospital, e a resposta foi dramática: ‘não podemos fazer quase nada porque ele é terrorista, pegou em arma e tem que receber a punição necessária’. Esta é uma atitude que não é de um cristão, é uma atitude pesada”, considera.

 

Visitas

Segundo Romano, Dom Paulo nunca assumiu uma posição política, mas sempre esteve presente com os religiosos. Após a tentativa de suicídio, Dom Paulo visitava Roberto Romano com alguma frequência no presídio, até que um dia teve uma surpresa desagradável, quando outro monsenhor foi visitá-lo. “Eu estranhei quando Dom Paulo não veio, pois ele sempre vinha. Aí o monsenhor que veio me visitar disse: ‘nós decidimos que o Dom Paulo não pode vir’. Mas nós quem? Não tive resposta”, recorda.

Após o episódio de tentativa de suicídio, Romano foi internado no Hospital Militar. Dom Paulo o visitou várias vezes. “A ida de Dom Paulo ao hospital era muito significativa, pois era um claro recado de que ele sabia onde eu estava, com quem eu estava e como eu estava. Isso era um aviso direto para qualquer tentativa mais truculenta que existia na polícia naquela época.”

 

Insensibilidade eclesiástica

A instabilidade política e a falta de sensibilidade para entender a complexidade do momento histórico que o Brasil vivia levaram representantes da Igreja a posturas discutíveis. “Chegou a um ponto que Dom Agnelo estava de tal modo insensível ao que estava acontecendo que ele fazia campanha para desmentir a imagem do Brasil. Isso foi acentuando de tal modo que o Papa Paulo VI percebeu o erro e tomou uma posição; chamou o Cardeal para Roma e nomeou D. Paulo como arcebispo metropolitano de São Paulo”, conta Romano. “Se o Estado precisa da legitimidade para ser obedecido, a Igreja precisa muito mais para ser aceita, sobretudo aquilo que é fundamental à Igreja, que é servir às pessoas, o desejo de pacificar, consolar, proteger”, complementa.

 

Plateia na conferência de Roberto Romano no IHU (Foto: Ricardo Machado | IHU)

 

Pena de morte

“Chamávamos o Frei Guilherme de Nery Pinto de ‘a revolução na cela’, porque ele estava a par de tudo o que acontecia na teoria e no mundo, sem mesmo sair do convento. Ficávamos horas conversando com ele e trocando ideias sobre tudo. Quando saiu o catecismo com João Paulo II  ele dava margem à admissão de pena de morte, embora não fosse exatamente como a imprensa publicou na época, mas mesmo assim era uma coisa muito complicada do ponto de vista doutrinário”, relata Romano.

Na ocasião Frei Guilherme ficou muito bravo com o fato, pois em sua avaliação a possibilidade de anuir à pena de morte era um retrocesso muito significativo. Romano, então, sugeriu que ele escrevesse um texto para publicar no jornal Folha de São Paulo. Durante cerca de cinco meses Frei Guilherme e Roberto Romano escreveram o texto, que passou por muita reflexão e edição até que chegasse na versão a ser publicada. Romano levou, pessoalmente, o artigo ao editor do jornal, que preferiu não publicar. “O editor perguntou se o texto era importante e se Frei Guilherme era importante. Eu respondi que ele era um dos nomes mais importantes do Brasil, e mesmo assim ele não publicou. O que demonstra uma tolice jornalística”, descreve Romano, que depois acabou publicando o artigo em um jornal da periferia de São Paulo. “As pessoas dizem que os donos das grandes empresas jornalísticas são os piores, mas penso que a coisa é um pouco mais que isso. Além dos donos, há essas pessoas que decidem e que os donos nem sabem o que está acontecendo. Decidem sem o menor critério e sem a menor tentativa de entender o que está acontecendo. Quando se fala em liberdade de expressão, tem que saber quem se está defendendo; às vezes, a pauta do editor é pior que a do dono do jornal”, avalia.

 

Cotidiano

Os anos mais combativos contra o Estado na luta pelos direitos humanos deram lugar a um período mais ameno na vida de Roberto Romano, pelo menos no que tange às ações mais diretas. Nos últimos anos Roberto Romano tem dedicado seu tempo às atividades acadêmicas de aula e pesquisa. Atualmente vive em São Paulo, capital, no bairro Jardim Paulistano, que como ele mesmo define “não é rico como o Jardim Europa, nem pobre como os outros jardins”.

“Eu e minha mulher gostamos muito de ir ao cinema, ir ao teatro e visitar as pessoas. Agora que me aposentei, estamos com plano de passar um período em Boston, nos Estados Unidos”, conta. Casado com Maria Sylvia de Carvalho Franco, socióloga, autora do livro Os homens livres na ordem dos escravocratas (São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 1969) e egressa da turma de Florestan Fernandes. “Por ocasião do regime militar, ela foi transferida para a Filosofia na USP, onde ajudou a manter firme o Instituto”, destaca, orgulhoso. Roberto Romano tem dois enteados, Luíza Moreira, que é professora nos Estados Unidos, e Roberto Moreira, cineasta e professor na USP. Duas netas, uma de vinte anos e outra de sete, completam o núcleo familiar.

Por debaixo dos cabelos brancos de Romano há uma vida cheia de histórias, de luta e de resignação resistente, de estudos e de esforço compreensivo da realidade social, de passado e de presente. Aos 67 anos de idade, Roberto Romano atravessou boa parte de sua vida lutando contra violência, sem violência. Ele parece ser um daqueles exemplos vivos de que o presente só faz sentido quando visto pelas lentes do passado.

 

Leia mais