Por uma igreja sinodal: reflexões teológico-pastorais. Artigo de Eliseu Wisniewski

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04 Agosto 2022

 

"A sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja é uma percepção essencial que recupera a tradição mais original, que compõe a consciência cristã e possibilita o diálogo com o mundo contemporâneo", salienta Eliseu Wisniewski, Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro "Por uma Igreja sinodal: reflexões teológico-pastorais" (Paulinas, 2022, 248 p.), organizada por Francisco de Aquino Júnior e João Décio Passos.

 

Eis o artigo.

 

Estamos vivendo tempos de discursos renovadores da Igreja e sobre a Igreja, dando continuidade à tradição de aggiornamento inaugurado pelo Vaticano II. O processo sinodal pode ser o momento mais crucial do resgate dessa tradição. Graças ao papa Francisco, estamos debatendo sobre experiências sinodais na Igreja. A sinodalidade traduz em seu significado profundo e concreto o desafio de reforma permanente da Igreja. A sinodalidade exige conversão de mentalidades, mudança de posturas e renovação institucional da Igreja. Tudo isso exige fé e reflexão, discernimento e estudo. Este é o propósito fundamental das reflexões que compõe a obra: Por uma Igreja sinodal: reflexões teológico-pastorais (Paulinas, 2022, 248 p.), organizada por Francisco de Aquino Júnior e João Décio Passos, ambos doutores em Teologia.

 

Capa do livro "Por uma Igreja sinodal: reflexões teológico-pastorais" de Francisco de Aquino Júnior e João Décio Passos

 

Os autores que participam das reflexões desta coletânea oferecem perspectivas diferentes sobre a temática sinodal – agregadas em três partes: dimensão histórico-social, teológica e pastoral:

 

1) Ney de Souza, no capítulo “Dimensões históricas da sinodalidade” (p. 21-40), apresenta um quadro panorâmico sobre as dimensões da sinodalidade ao longo da história: a) dos primórdios do cristianismo à cristandade medieval (p. 22-27); b) da cristandade medieval à sociedade industrial (p. 27-31); c) sociedade contemporânea, Vaticano II e sinodalidade (p 31-35). Souza esclarece que no primeiro milênio, a sinodalidade teve uma marca mais acentuada, tendo nesse período o desenvolvimento das igrejas locais e a organização dos sínodos diocesanos (p. 21), diante disso, é fundamental voltar às fontes que retratam a sinodalidade na Igreja primitiva, tendo os pés fincados na realidade do tempo presente (p. 37).

 

2) O texto de Alzirinha Souza, “Do Concílio Plenário à Assembleia Eclesial: a evolução da experiência da sinodalidade na América Latina” (p. 41-53), ostra como o conceito de ser Igreja em dois momentos da história: o Concílio Plenário (p. 41-47) e a Assembleia Eclesial Latino-Americana (p. 47-51) impacta a concepção dos eventos sinodais. A autora observa que uma análise detalhada nos permite perceber que, embora a vida eclesial e os caminhos da teologia nos pareçam cíclicos, a Igreja avança de acordo com seu tempo. No caso das Conferências Episcopais, o elemento comum que se observa ao longo de toda a história da igreja é o desejo, por parte de grupos de bispos de determinadas regiões que se organizam, de fazer frente aos desafios pastorais de cada época (p. 41). Assim, comparados os dois momentos históricos, o do Concílio Plenário e o atual da realização da Assembleia Eclesial, evoluímos muito, contudo, isso não é ainda o bastante para nos afirmarmos como eclesialidade sinodal (p. 51).

 

3) O capítulo “O tradicionalismo antissinodal” (p. 55-68), de João Décio Passos, oferece um ângulo sociológico para aproximar da questão da sinodalidade – mostrando que os desvelamentos dos processos histórico-sociais, que caracterizam o cristianismo com suas elaborações, expõe não somente uma dinâmica do passado como também, precisamente, sua dinâmica permanente. Como todo sistema religioso, cristão se encontra em permanente construção (p. 56-59). A negação desse dado pode esconder tanto sua realidade social e histórica como negar sua essência teológica, que afirma a encarnação histórica da verdade e o seu discernimento em cada tempo e lugar. O tradicionalismo constitui uma dessas negações, na medida em que se fixa em algum momento histórico específico o único e imutável parâmetro de verdade e vivencia da fé (p. 59-64). Passos, examina como a noção e a prática de sinodalidade são inerentes à consciência eclesial renovadora, destacando que a sinodalidade é antitradicionalista e, no campo contraditório, os tradicionalistas são antissinodais (p. 65).

 

4) “Experiências sinodais” (p. 69-89), de Manoel Godoy, tem como ponto de partida o Documento Preparatório para o Sínodo de 2023 – este trouxe alguns passos significativos para que o processo marche no sentido de impregnar a Igreja em sinodalidade em sua forma, estilo e estrutura – o autor repassa os oito passos propostos por este Documento comparando-os com a caminhada eclesial latino-americana (p. 72-75), mais concretamente na experiência da I Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe (p. 75- 77), na experiência das Comunidades Eclesiais de Base (p. 77-79), na experiência dos Encontros Intereclesiais das CEBs (p. 80-85), na experiência das Assembleias dos Organismos do Povo de Deus (p. 85-87).

 

5) Francisco de Aquino Júnior, em “Sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja” (p. 93-110), explicita em que sentido Francisco fala de sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja (p. 101-107) e quais os fundamentos teológico-eclesiológicos dessa afirmação (p. 94-101). Aquino Júnior destaca que a expressão “sinodalidade” tem se tornado cada vez mais uma categoria eclesiológica central e decisiva no processo de renovação/reforma eclesial desencadeado pelo Papa Francisco. Ela expressa e indica o “caminhar juntos” de todo o povo de Deus na diversidade de seus carismas e ministérios. Trata-se, no fundo, de uma retomada e de um aprofundamento da eclesiologia conciliar, desenvolvida a partir e em tornoda categoria “povo de Deus” e, isso justifica o processo de renovação/reforma eclesial desencadeado por Francisco, que bem pode ser caracterizado em termos de conversão missionária sinodal (p. 107).

 

6) O texto “Ser sinodal é ser ministerial” (p. 111-122), de Celso Pinto Carias, versa sobre o caráter ministerial de toda a Igreja. Descrevendo os ministérios como lugar de serviço (p. 112-116), e, apontando quatro eixos da ministerialidade que consideramos fundamentais para uma Igreja verdadeiramente sinodal: ministério da Palavra (p. 117-118), da liturgia (p. 118), da coordenação (p. 119), da solidariedade (p. 120-121), Carias ressalta que o caráter institucional da Igreja não elimina a condição de uma maior participação ministerial de todo o Povo de Deus na busca de ser sinal do Reino no meio do mundo (p. 112).

 

7) “Sinodalidade made in América Latina” (p. 123-140), é o texto em Agenor Brighenti ostra como o exercício da sinodalidade no caminhar da Igreja da América latina e do Caribe, passa por três fases a primeira com a realização do Concílio Plenário Latino-Americano (1898) e da I Conferência Geral dos Bispos no Rio de Janeiro (1955), durante o período pré-conciliar – nesta fase , a sinodalidade acontece nos parâmetros de um “caminhar juntos” com o Papa, chefe da Igreja universal, da qual as dioceses são parceles e os bispos, seus colaboradores (p. 124-128). A segunda com as Conferências de Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), no período da primeira recepção do Vaticano II, em perspectiva libertadora, a sinodalidade ficou restrita ao exercício da colegialidade episcopal, por meio das Conferências Episcopais e do Sínodo dos Bispos (p. 128-132). A terceira, com a realização do Sínodo da Amazônia (2019) e da I Assembleia Eclesial da América Latina e Caribe, que inauguram um processo de “segunda recepção” do Vaticano II e da tradição eclesial libertadora em chave sinodal, em um novo contexto sociocultural e eclesial, onde a sinodalidade é situada no exercício do sensus fidelium, do Povo de Deus como um todo, no seio de uma Igreja toda ela ministerial e na corresponsabilidade de todos os batizados (p. 132-137).

 

8) Em “Igreja sinodal em saída para as periferias: um olhar para o projeto eclesial de Francisco”(p. 141-155), Edward Guimarães, oferece uma caracterização da visão eclesiológica do papa Francisco: uma Igreja em saída, Igreja como hospital de campanha, Igreja samaritana, Igreja poliédrica, Igreja pobre para os pobres (p. 144-145), elegendo em seguida, três traços ou aspectos, estritamente interligados pelo mesmo impulso do Espírito Santo, para expressar o profético projeto de reforma da Igreja que vem sendo impulsionada pelo papa Francisco, para que esta se torne, de fato, uma Igreja para hoje atenta e fiel a sua missão e que não deixa ninguém para trás: 1) uma Igreja sinodal (p. 145-147) ; 2) uma Igreja sinodal em saída (p. 147-150); 3) uma Igreja sinodal em saída para as periferias (p. 150-152).

 

9) No capítulo “Sinodalidade depois do Vaticano II” (p. 159-173), Cleto Caliman busca fundamentar mais profundamente e até mesmo ampliar o horizonte do tema sinodalidade, apresentando para isso algumas premissas: a) premissa histórica (p. 160-163); b) premissa teológica (p. 163-164); c) premissa eclesiológica (p. 164-168); d) compreensão da sinodalidade (p. 168-171); e) compreensão e prática da sinodalidade no pós-concílio na América Latina e Caribe (p. 171-172). Caliman observa que no Vaticano II, a sinodalidade chegou como colegialidade, em uma abordagem claramente jurídica com a finalidade de reequilibrar a abordagem inacabada do Vaticano I, o qual atacou o tema do ministério do Bispo de Roma, o Papa, em dois pontos-chave: o primado e a infabilidade do magistério supremo do bispo de Roma na qualidade de chefe supremo da Igreja e sucessor de Pedro. Essa abordagem inacabada sofre a falta da doutrina sobre o episcopado. O Vaticano II veio suprir a falta de um horizonte mais amplo da visão eclesiológica do Vaticano I. Assim, o capítulo III da Lumen Gentium, de modo mais específico o número 22, se ocupou do caráter colegial da ordem episcopal (p. 159).

 

10) Paulo Suess, em “O longo caminho da conversão sinodal à participação eclesial” (p. 175-191), observa que a conversão transformadora se tornou tarefa das conferências episcopais continentais pós-conciliares, na América Latina e no Caribe, descritas com os locais de sua realização em Medellín, Puebla, Santo Domingo e Aparecida, isso porque, até receber a sua configuração mais explicita da sinodalidade pelo magistério do papa Francisco, a conversão pastoral percorreu um longo caminho construtivo nas Conferências Episcopais Latino-americanas (p. 177-180). Em segundo lugar, destaca que na esteira da sinodalidade, a conversão pastoral é conversão integral da própria Igreja, incluindo sua conversão sociopolítica, cultural e ecológica (p. 181-185), implicando um novo protagonismo de cada um dos batizados (p. 186). Nesta perspectiva realizou-se a VI Conferência Episcopal em I Assembleia Eclesial (p. 185), esta por sua vez exigiu cinco discernimentos: continuidade (p. 186-187), consenso (p. 187-188), clericalismo (p. 188-189), participação (p. 189-190)e autonomia (p. 190-191).

 

11) “Igreja de batizados: Igreja sinodal” (p. 193-207), é o texto de autoria de Mario de França Miranda. Afirmando não só a historicidade do cristianismo como também sua capacidade de se expressar diversamente a atuação original divina ao longo das transformações históricas (p. 193-197), o autor chama a atenção para a questão de uma nova configuração eclesial (p. 197-199), tendo-se em conta que o cristianismo é uma realidade histórica que inevitavelmente, no curso do tempo, se transforma e se explica, se expressa e se constitui (p. 198). Confronta, por isso, o tema da sinodalidade com o papel do Espírito Santo na vida de cada batizado (p. 199-205), é ele que possibilita nossa fé, que nos faz estar em comunhão com os demais, que possibilita a comunidade eclesial, que nos capacita para a missão, que nos doa o carisma supremo da caridade fraterna, nos faz discípulos de Jesus, cristãos (p. 200). Miranda destaca ser fundamental resgatar o papel do Espírito Santo numa configuração sinodal da Igreja para corrigir a ênfase unilateral da dimensão doutrinal e jurídica, própria da tradição eclesiológica ocidental. Assim sendo, a Igreja estruturada pela própria ação do Espírito Santo é uma Igreja na qual todos os seus membros possuem igual dignidade, todos, pelo Espírito Santo recebido no batismo, são membros ativos na missão evangelizadora que constitui o sentido último da própria Igreja (p. 205-207), ou seja, uma igreja sinodal com a participação ativa de todos os seus membros, embora exercida diversamente segundo as possibilidade de cada um, configura mais perfeitamente o que deva ser a Igreja como Povo de Deus, a irradiar os desígnios de Deus para a humanidade através do anúncio do Reino de Deus (p. 205-206).

 

12) Em “Sinodalidade e diferença de gênero: caminhando juntos, homens e mulheres” (p. 209-224), Maria Clara Bingemer examina como a proposta da sinodalidade pode ajudar a uma maior integração entre homens e mulheres na Igreja, entendendo-se coo companheiros de um mesmo caminho, respeitando-se nas suas diferenças e relacionando-se através delas (p. 209-210). A autora salienta que neste esforço de caminhar juntos, as mulheres têm papel imprescindível nem sempre reconhecido. A sociedade ocidental e especialmente a latino-americana têm uma marca sexista patriarcal em todos os domínios: familiar, profissional, social e eclesial, o que dificulta a sinodalidade. Bingemer se detêm na história dessa dívida pendente em relação às mulheres na sociedade e especialmente na Igreja latino-americana (p. 210-217). A partir daí levanta algumas pistas teológicas em vista de contribuir para promover uma Igreja mais sinodal (p. 217-223).

 

13) No texto “Igreja sinodal como ‘Igreja pobre para os pobres'” (p. 225-238), Joaquim Jocélio de Souza Costa discorre sobre a sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja, explicitando que ela diz respeito à sua natureza e missão (p. 225). O caminhar junto é caminhar com os pobres (p. 226). Em seguida, o autor apresenta esse caminhar juntos como saída para as periferias, especificando que esse caminho se faz junto com os pobres, constituindo uma Igreja pobre - sua natureza (p. 226-231); e que, ao mesmo tempo, por ser uma constante saída para as periferias, constitui a Igreja para os pobres - sua missão (p. 231-236).

 

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O atual momento eclesial voltado para a sinodalidade está carregado de potencialidades renovadoras. A sinodalidade como dimensão constitutiva da Igreja é uma percepção essencial que recupera a tradição mais original, que compõe a consciência cristã e possibilita o diálogo com o mundo contemporâneo. Esta obra é indispensável. Grandes e novos nomes da reflexão teológica aí se encontram. As provocantes e bem elaboradas reflexões aí contidas ajudaram a suscitar o debate em torno da sinodalidade missionária acolhendo o pedido do papa Francisco que retomou as grandes intuições do Concílio Vaticano II.

 

Cada artigo conserva sua própria autonomia e pode ser lido independentemente, comprovando como “na sinodalidade se manifestam dimensões diferentes e ricas do ser Igreja. É dizer o mesmo, em diferentes dimensões (...). Por isso, a própria obra deseja ser um caminhar junto, cada um dizendo e escutando, todos escutando e dizendo, no desejo do movimento sinodal; a Igreja em movimento de sinodalidade” (p. 10-11), sinodalidade/dinamismo eclesial que deve caracterizar não apenas uma assembleia eclesial, mas toda a vida e missão da Igreja em sua totalidade.

 

Conjugando a dimensão histórica-social, teológica e pastoral esta obra sacia nosso desejo de conhecer melhor esse momento importante da vida da Igreja – cumprindo a função de ser “um acervo rico de conteúdos a serem apropriados em atividades formativas e pastorais” (p. 18). Por fim, o livro deixa-nos diante do desafio da “verdadeira conversão de todos” (p. 16), “a conversão missionária sinodal da Igreja” (p. 107), além do esforço de passar dos “discursos às práticas” (p. 13), tendo-se em conta que “a esfera dos discursos sobre a sinodalidade permanecerá legítima e cobrando traduções concretas na vida da Igreja, durante e depois do Sínodo” (p. 16). Fica a todos/as o convite: apropriar-nos destas reflexões e processualmente pô-las em prática, “seguindo os impulsos do Espírito Santo, que nos inspira, acompanha e sustenta ao longo de todo o processo” (p. 207).

 

Referências

 

AQUINO JÚNIOR, Francisco; PASSOS, João Décio (Orgs.). Por uma Igreja sinodal: reflexões teológico-pastorais. São Paulo: Paulinas, 2022, 248 p. ISBN 9786558081432. (Coleção Igreja em saída).

 

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